Por Andreia FidalgoNão deixa de ser algo irónico que o dia 13 de Maio, que trouxe ao mundo o Marquês de Pombal, em 1699, adquirisse um simbolismo tão particular a partir de 1917: foi precisamente o dia em que a Nossa Senhora apareceu pela primeira vez aos pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinta, na Cova da Iria, em Fátima. Não que ao Marquês, falecido há mais de um século, tivesse feito grande diferença… mas, decerto que foi um golpe bem duro para aqueles republicanos que bem poucos anos antes aproveitaram a sua imagem política para fazer propaganda anticlerical e anticatólica, e que assistiram, em 1917, ao restauro do fervor religioso no país. Certamente que existe espaço, no dia 13 de Maio, para celebrar Fátima - ainda que, este ano, só mesmo espiritualmente - e para relembrar o Marquês de Pombal. Sobre o primeiro assunto não me atrevo a escrever, mas posso recomendar a leitura do magnífico ensaio histórico de Rui Ramos publicado no Observador por ocasião do centenário de Fátima, em 2017, sob o título “Fátima, cem anos de uma história mal contada”. Pela minha pena, será o Marquês de Pombal a merecer hoje o destaque. Já em várias ocasiões abordei aqui, no Lugar ao Sul, uma das mais importantes linhas temáticas da minha tese de doutoramento em curso: o projecto de Restauração do Reino do Algarve desenhado pelo Marquês de Pombal para a região, nas décadas de 60 e 70 do século XVIII. Na sequência das políticas económicas pombalinas, que visaram retirar o país da crise económica em que mergulhara, o Reino do Algarve foi alvo de um plano de reformas económicas que teve em vista a recuperação das suas potencialidades agrícolas, o aproveitamento das suas abundantes pescarias e o incremento das actividades comerciais. Simultaneamente, o território algarvio sofreu uma reorganização administrativa que deixou marcas até aos dias de hoje, com a criação de novos concelhos como o de Lagoa e o de Monchique, em 1773. Porém, não há dúvida de que a herança mais visível da acção do Marquês de Pombal no Algarve se encontra espelhada na edificação ex-nihilo de Vila Real de Santo António, em resultado de uma estratégia política e económica que visava aproveitar as abundantes e ricas pescarias do sotavento algarvio. Desde os inícios do século XVIII que se havia instalado na praia de Monte Gordo uma numerosa comunidade de pescadores oriundos da Catalunha, atraídos pela abundância de sardinha. Esta comunidade desenvolveu, no decurso dessa centúria, uma lucrativa actividade que beneficiou do aumento significativo do número de xávegas – artes piscatórias de arrasto destinadas à captura da sardinha – aliadas à introdução de técnicas eficazes de conservação do pescado, que permitiam aumentar e rentabilizar o negócio através da exportação. Na década de 60 de Setecentos, Monte Gordo não seria mais do que uma pequena povoação com uma igreja, umas poucas casas de pedra e cal e, sobretudo, muitas cabanas e telheiros debaixo dos quais se fazia a beneficiação da sardinha. Mas, muito para lá da aparência modesta, ali se encontrava um verdadeiro “tesouro oculto”, de acordo com os relatórios que chegaram ao Marquês de Pombal: um “tesouro”, porque constituía uma actividade altamente lucrativa… “oculto”, porque os lucros escapavam por completo ao controlo fiscal das autoridades locais e, consequentemente, aos cofres da Coroa. Para obviar esta situação, Pombal tomaria várias medidas legislativas que resultaram numa autêntica “guerrilha das pescarias” com o vizinho Reino de Espanha. O corolário das intervenções pombalinas ocorreria a 17 de Dezembro de 1773, data em que foi decretada a edificação de uma nova vila que teria em vista substituir as instalações de Monte Gordo. O local não poderia ser essa praia, dada a instabilidade do areal e a força destruidora e imprevisível do mar. Foi então escolhido o sítio do Barranco, na margem direita do Guadiana, no termo da antiga vila de Santo António de Arenilha, onde já se assegurava uma forte presença militar. Aprovada a localização, uma carta régia de 30 de Dezembro de 1773 incumbiu o Governador do Algarve da construção de uma vila regular, com arruamentos dispostos em linha recta, onde se acomodassem todas os edifícios com funções civis e industriais: “nele fareis delinear a dita Vila reedificada com uma competente Praça; na qual a Igreja; a Casa de Câmara; e o Terreiro do Pão tenham o Primeiro lugar sem lhe faltar comodidade para se fazer um amplo Mercado (…). Tomando a mesma Praça por centro, mandareis reproduzir dela em linhas rectas as Ruas necessárias para se formarem as Casas, Telheiros, Lagares e Armazéns das Pescarias”. Desta carta régia, aliada ao local escolhido para edificação da vila, sobressaem três aspectos absolutamente essenciais: a estratégia política do local escolhido para a edificação; a configuração singular do urbanismo da nova vila; e a sua vocação industrial. ![]() Quanto ao local, a vila foi edificada na linha fronteira, na margem direita do Guadiana, voltada para a vizinha Espanha, numa mensagem clara de afirmação do poder político da Coroa Portuguesa. É, acima de tudo, a afirmação do poder perante o Reino vizinho, pois o objectivo último era o de retirar aos espanhóis o controlo e os lucros obtidos pela exploração do pescado em Monte Gordo, redireccionando-os para o erário público nacional. Foi, portanto, uma estratégia de afirmação do controlo do Estado português: doravante, ficaria inviabilizado o contrabando de peixe fresco e todo o pescado passaria por um apertado controlo alfandegário. No que toca à configuração singular do urbanismo, em Janeiro de 1774 chega ao Algarve a primeira planta da futura vila, enviada pelo Marquês de Pombal e concebida pela Casa do Risco das Obras Públicas – a mesma Casa do Risco criada em 1755 para fazer face à urgente construção da capital após o terramoto, e através da qual se desenvolveu o estilo pombalino da baixa lisboeta, o mesmo que iria marcar Vila Real de Santo António. Tratando-se de uma vila edificada de raiz, constituiu a oportunidade perfeita para unir urbanismo e ideologia política. A planta enviada pela Corte representava uma vila rectangular orientada em função do Guadiana: na frente ribeirinha, voltada para Espanha, a Alfândega ladeada pelas Sociedades de Pescarias; no centro, uma praça em quadrado perfeito, formada pelos edifícios das Casas de Câmara e Cadeia, do Corpo da Guarda e da Igreja, e a partir da qual derivavam arruamentos regulares em ângulos rectos onde se localizariam as habitações térreas dos pescadores. Uma vila desenhada segundo os princípios de ordem e racionalidade característicos do Iluminismo. Por fim, trata-se de uma autêntica vila-fábrica: as Sociedades de Pescarias e os armazéns localizados na rua traseira espelhavam a vocação industrial da vila, de transformação e armazenamento do pescado para exportação. As técnicas de salga e conservação da sardinha, desenvolvidas nos telheiros da praia de Monte Gordo e que haviam subsistido como herança dos armadores catalães, foram transferidas para estes novos edifícios com condições materiais mais condignas. Doravante, todo o pescado, especialmente a sardinha, era transportado até ao porto comercial da nova vila, verificado pelos funcionários alfandegários e redireccionado para as sociedades pesqueiras. Aí, a sardinha entrava pelo portão principal, passava por um controlo interno e era transportada para a traseira dos edifícios, composta por um telheiro em forma de U, onde era amanhada, salgada e acondicionada em barricas; estas eram posteriormente depositadas nos armazéns das Sociedades, no lado oposto da rua traseira, onde ficariam a aguardar comercialização. A primeira pedra da nova vila foi lançada a 17 de Março de 1774, dando desde logo início à construção dos edifícios mais emblemáticos: a Alfândega, que desempenha o papel fundamental de registo e controlo do pescado; o Quartel e a Casa de Câmara e Cadeia, destinados às autoridades civis e militares; e as Sociedades de Pescarias, fundamentais para a função industrial da vila. Até a toponímia escolhida para os arruamentos foi pensada ao pormenor, estabelecendo a hierarquização das principais figuras da Família Real Portuguesa, que por essa via apadrinhava, simbolicamente, a fundação. Além disso, formando uma espécie de barreira espiritual em torno da vila, as ruas situadas nos extremos oeste, norte e sul designavam-se por Rua Real de São José, Rua de São Sebastião e Rua de Santo António, respectivamente, invocando os patronímicos de D. José I, de Sebastião José de Carvalho e Melo e o topónimo da antiga vila de Arenilha, Santo António. Não deixa de ser curioso, porém, que numa versão inicial da toponímia que não se chegou a implementar, o próprio Marquês de Pombal se tivesse feito representar de forma mais evidente, em alternativa a alguns membros da Família Real, através de arruamentos designados do Marquês e da Marquesa. Ainda que não se tivessem implementado, a presença simbólica do Marquês ganhou destaque por outra via, no dia de inauguração da vila, em 1776: ocorreu precisamente a 13 de Maio, dia de aniversário do Marquês de Pombal. Os tempos que se seguiram não seriam favoráveis a Pombal: a 24 de Fevereiro de 1777, quando morre D. José, é imediatamente afastado do poder político. O reinado de D. Maria I daria início à Viradeira, que se traduziu na inversão das anteriores políticas pombalinas. O Marquês, sempre controverso na sua acção política, virou persona non grata e foi assim que terminou os seus dias, falecendo a 8 de Maio de 1782. O decurso do tempo viria, porém, a restituir-lhe a devida importância histórica, e a sua figura política viria mesmo a ser sucessivamente enaltecida e aproveitada por liberais e por republicanos.
Em Vila Real de Santo António, que hoje, 13 de Maio, comemora o seu feriado municipal, o legado do Marquês de Pombal encontra-se bastante vivo. Mas, ainda que seja aí que se espelha a face mais visível da acção pombalina no Algarve, seria redutor cingir a herança de Pombal a essa cidade. Através do projecto de Restauração do Reino do Algarve, Pombal marcou de forma indelével a história de toda a região algarvia, percebendo o seu imenso potencial e colocando-a entre as prioridades da agenda política. Algo que, nos dias de hoje, tarda sempre em acontecer…
4 Comments
Joaquim
13/5/2020 12:32:52
Obra sem dúvida imponente, mas não tenho a certeza que a economia do Algarve tenha tido o seu take-off. Anos depois o viajante alemão H. Link descrevia-a como completamente abandonada.
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Andreia Fidalgo
13/5/2020 12:37:49
Caro Joaquim, um dos problemas que discuto na minha tese de doutoramento é precisamente esse: o facto de as reformas não terem surtido o seu devido efeito como alavanca da economia do Algarve. Mas ainda que o projecto tivesse saído malogrado, foi de uma importância notória vários níveis, como o da reorganização administrativa do território, ou o do combate ao poder das elites locais, etc. E, além disso, foi um projecto com contornos únicos a nível nacional. Muito obrigada pela leitura e pelo comentário. Volte sempre ao Lugar ao Sul! Votos de boas leituras!
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13/5/2020 21:31:16
Foi para mim uma grata surpresa, quando eu conheci a historia da Vila, eu moro em Ayamonte, e nunca imaginei a importancia da aquitetura da Vila, embora seja um lugar tam perto para mim....ohlar para Portugal e semtir, quer a historia, quer o desenvolvimiento social e económico ....parabems por o artigo....
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Andreia Fidalgo
15/5/2020 12:00:36
Caro Juan Antonio González Garlito, muito obrigada pela visita ao nosso blogue, pela leitura e pelo comentário. A história da arquitectura e urbanismo de Vila Real de Santo António é, de facto, única! E está em tudo relacionada também com a história de Espanha. Fico feliz de saber que este artigo foi útil para o ajudar a conhecer a história da Vila. Cumprimentos e regresse sempre ao Lugar ao Sul.
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