Viagens singulares no Reino do Algarve: condições de mobilidade (no séc. XIX e no séc. XXI)27/5/2020 Por Andreia Fidalgo Agora que já se definiram as regras de acesso às praias, e depois de um longo período de confinamento, não há quem não sonhe com uma bela quinzena de férias espraiado num belo areal, aquecido pelo sol estival e refrescado por revitalizantes banhos de mar. Claro que neste cenário apetecível, o Algarve volta a estar na mira das atenções. É do interesse de todos os algarvios e, também, de todos os portugueses, que a região mais afectada pelo impacto económico da Covid-19 recupere um pouco do fosso de precariedade para o qual resvalou em poucas semanas. É natural que, neste momento, as preocupações estejam centradas no turismo, e em garantir aos futuros visitantes da região, sejam eles nacionais ou estrangeiros, que estão perante um destino Covid Free, do qual podem usufruir sem medo de contaminações, desde que todas as regras de segurança e higiene sejam respeitadas. O turismo é uma prioridade. Mas existem outras, que não só lhe estão associadas, como dizem também respeito à qualidade de vida dos cidadãos que residem neste cantinho sul de Portugal. Uma delas é, evidentemente, a saúde. Ainda tenho alguma esperança – ténue, mas tenho! – de que este surto pandémico retire das calendas gregas o almejado Hospital Central do Algarve, que tanta falta faz à região. Uma outra prioridade é, sem dúvida, a melhoria da rede de transportes públicos e das condições de mobilidade sustentável dentro da região, problema crónico que, volta e meia, vem ao de cima para nos recordar do desprezo com que o poder central trata as necessidades regionais. Uma vez mais, a História relembra-nos que os problemas de mobilidade não são novos. Porém, em séculos passados, além das dificuldades de circular dentro da região, ainda se acrescia o problema de circular para fora dela. Aliás, se o Algarve padeceu, durante séculos, de um isolamento crónico que lhe conferiu a singularidade histórica de ter sido um Reino à parte, sem rei, e sem nunca o ser efectivamente, isso em muito se deveu às dificuldades de acesso à região e à precariedade das ligações terrestres ao Reino de Portugal. Antes da ferrovia – que a este lugar ao sul chegou tarde e se desenvolveu muito lentamente – a viagem de Lisboa até Faro era uma verdadeira aventura, quase diria que reservada aos mais audazes. Não resisto em relembrar, a este propósito, o magistral conto de Manuel Teixeira Gomes, intitulado Gente Singular, que apesar de ser datado de 1909, alude a uma realidade anterior à chegada da linha do caminho-de-ferro a Faro, que só se concretizaria em 1889: Duríssima travessia! Ainda mais penosa seria uma viagem que se fizesse exclusivamente por terra. A serra, não muito elevada, mas muito ampla e densa, apresentava dificuldades diversas que tornavam a viagem morosa. A este propósito, deixa-nos Silva Lopes na sua Corografia do Reino do Algarve, de 1841, uma indicação mais precisa do que seria sair do Algarve para rumar a Lisboa (ou de Lisboa para entrar no Algarve, se lermos inversamente), no meado do século XIX. Dos vários trajectos sugeridos pelo autor, fiquemo-nos apenas pelo primeiro, como ilustrativo: de Faro havia que seguir para Loulé, passando por S. João da Venda; a partir de Loulé, haveria que seguir pelo barrocal, num “péssimo caminho pedregoso até à Ponte da Tôr” e daí em direcção à Corte Neto; já em plena serra, haveria que passar várias vezes a vau o Rio Seco até à ladeira do Barranco do Demo, onde “há uma excelente fonte de água férrea debaixo de frondosos freixos”; um pouco a seguir, havia que tomar o caminho até Águas da Rainha e, deixando para trás o Rio Seco, encontraria a Ribeira do Vascão, que também teria de se passar a vau, transpondo o limite entre o Algarve e o Alentejo. Todo este percurso feito por caminhos estreitos, pedregosos e/ou de terra batida, acidentados, sinuosos, com subidas e descidas, passando por dentro das ribeiras… A expressão “passar as passinhas do Algarve” encontra nesta realidade duríssima de mobilidade um excelente exemplo. Imagine-se o leitor um figo ou uma uva, a secar ao sol, no pico do Verão, num qualquer trajecto, quer fosse para sair do Algarve, quer fosse para chegar a uma qualquer terra, especialmente do interior algarvio… Evidentemente, o estado precário das vias de comunicação algarvias era resultado de séculos de falta de investimento e de interesse pela região, esquecida pela Coroa desde os tempos áureos dos Descobrimentos. Nessa época, o Algarve ganhara protagonismo porque a via de circulação privilegiada era o mar; porém, isso em pouco contribuiu para o desenvolvimento das condições de mobilidade na região, quer na comunicação das localidades entre si e com o interior algarvio, quer na ligação ao Reino de Portugal. E a via marítima permaneceu, durante séculos, como a forma mais rápida e cómoda de sair do Algarve, ou de vir até à região. O Marquês de Pombal reconheceria a frágil condição dos acessos à serra quando na década de 70 do século XVIII empreendeu o projecto de Restauração do Reino do Algarve. Por isso, iria mandar que se arranjassem os caminhos entre as quatro léguas que separavam Monchique e Vila Nova de Portimão, para facilitar a circulação de pessoas, mas sobretudo com proveitos económicos, pois interessava que as madeiras de castanho e os frutos de Monchique pudessem mais facilmente alcançar o porto de mar de Portimão, para fins comerciais. Algumas décadas depois, nos inícios do século XIX, o Bispo D. Francisco Gomes de Avelar também se preocuparia particularmente com a falta de estradas e caminhos e com os maus passos das ribeiras. Por isso mesmo, este prelado publicaria, em 1809, as Instruções que deverão observar os inspectores na reparação das estradas, e foi realmente graças à sua acção que muitas das estradas algarvias foram melhoradas e muitas pontes das ribeiras foram construídas. Um bom exemplo pode ainda ser observado actualmente na Calçadinha de São Brás de Alportel, cuja origem remonta à época romana e que era a mais importante via de ligação de Faro ao Vale do Joio, nas faldas da serra algarvia; aí, ainda é visível parte do troço recuperado após as ordens de Avelar e cujo desenho corresponde exactamente às ilustrações que integram as referidas Instruções. Apesar destas intervenções pontuais, a que se somam outras mais, as dificuldades de circulação persistiram até à segunda metade do século XIX, altura em que o programa de obras públicas da monarquia constitucional chegou à região. A Estrada Real nº 78, antepassada da EN 125, que deveria ligar Lagos a Vila Real de Santo António, começou a construir-se me 1856, e em 1874 estaria praticamente concluída. Nos finais do século XIX inicia-se a construção daquela que viria a ser a ligação privilegiada ao Alentejo, a mítica e histórica Nacional 2, apenas concluída na centúria seguinte, e remodelada e assim designada durante o Estado Novo.
O século XX trouxe evoluções tremendas, que acompanharam o desenvolvimento dos meios de transporte. Nas primeiras décadas consolidou-se a ferrovia, que chegou a Olhão em 1904, a Tavira em 1905 e a Vila Real de Santo António em 1906 – a Lagos só chegaria em 1922. Ir ou vir do Reino de Portugal para o Reino do Algarve passou a ser mais fácil. Circular dentro da região, também. O boom do turismo ditaria as restantes evoluções, a partir da década de 60, com a inauguração do aeroporto de Faro em 1965 e o subsequente desenvolvimento da rede viária. Não nos podemos queixar, hoje, da falta de acessibilidade, e o Algarve não só já não se encontra isolado neste seu lugar ao sul, como é o destino turístico privilegiado de muitos portugueses e estrangeiros. Não significa, porém, que não existam problemas. A rede de transportes públicos de que é dotada a região é absolutamente precária. A começar, desde logo, pela ferrovia, de oferta muito limitada, cujo traçado pouco se modificou ou cresceu desde os primórdios da sua existência, e cuja renovação e electrificação têm vindo a ser sucessivamente adiadas desde há muito. A rede rodoviária de transportes, embora mais diversificada, não se apresenta como uma alternativa viável às necessidades de deslocação, nomeadamente entre localidades algarvias mais isoladas e/ou interiores. Viajar para fora da região em transportes públicos só é realmente cómodo se quisermos ir para Lisboa; na verdade – e em circunstâncias normais –, é muito mais rápido e fácil irmos de Faro a Sevilha do que tentarmos ir de Faro para Évora. As falhas flagrantes na rede de transportes regional têm reflexos negativos nas condições internas de mobilidade da população, que se vê limitada e sem alternativas. Numa altura em que tanto se fala de mobilidade sustentável, da necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, e dos efeitos nefastos da poluição para o meio ambiente, a falta de alternativas não deixa grande opção: quem se quer deslocar, tem de o fazer no seu automóvel – se tiver capacidade para ter/sustentar um –, o que, além de prejudicial ao ambiente, não raras vezes resulta numa afluência excessiva à principal estrada da região, a EN 125, conhecida como uma das de maior sinistralidade no país – situação ainda mais agravada pela cobrança de portagens na Via do Infante. Curiosamente, um diploma recentemente publicado no suplemento do DR (15/05/2020) passou praticamente despercebido na região. Aí estabelecem-se as regras de aplicação e distribuição pelas 21 CIM de 15 milhões de euros, já previstos no Orçamento de Estado para 2020, no âmbito do Programa de Apoio à Densificação e Reforço da Oferta de Transporte Público. Este programa visa "promover o reforço dos atuais serviços e a implementação de novos serviços de transporte público, regular e flexível, que resultem em ganhos em termos da acessibilidade dos territórios e das suas populações aos principais serviços e polos de emprego". À AMAL ficou atribuída a segunda maior verba, acima de um milhão de euros (1,272 ME), o que não é de espantar, visto que o critério para a distribuição dos 15 ME foi o volume de utilização automóvel nas deslocações pendulares – neste critério, só a região de Coimbra ultrapassa a do Algarve. Será este o incentivo necessário para dotar a região de melhores condições de mobilidade e de uma rede de transportes que realmente corresponda às necessidades da população residente e visitante? A História relembra-nos que, por vezes, o caminho para a evolução pode ser lento… mas é inevitável.
6 Comments
Luís Silva
28/5/2020 08:53:03
Gostei do artigo, cumps
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Andreia Fidalgo
31/5/2020 07:41:23
Caro Luís Silva, muito obrigada! Regresse sempre ao Lugar ao Sul para futuras leituras.
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Miguel
28/5/2020 14:44:00
Mais uma contundente análise Andreia, e infelizmente mais um problema com o qual o Algarve se depara, tão importante quanto a questão da saúde pública local, que em tempos mais recentes só por milagre não tem escalado.
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Andreia Fidalgo
31/5/2020 07:48:59
Caro Miguel, uma vez mais agradeço a sua leitura atenta e os sempre tão pertinentes comentários. De facto, é verdade. Volto sempre a insistir na ideia de que não podemos admitir a existência de cidadãos de 1ª categoria e de cidadãos de 2ª categoria neste país. E infelizmente a realidade algarvia, com as suas nuances, é extensível a outras regiões do país, nomeadamente ao Alentejo, de onde sou oriunda, e que também muito me preocupa. O "centro" tudo absorve... Mas esta retórica do centro-periferia tem de ser ultrapassada de uma vez por todas. Quando é que será que se vai entender que a aposta no desenvolvimento sustentável de uma região como o Algarve é uma questão estratégica que beneficia o todo?
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Elsa
29/5/2020 10:34:11
Excelente artigo Andreia. Realmente a zona turística de excelência não combina, em nada , com a oferta dos transportes públicos ...O contexto actual de combate às alterações climáticas e as verbas disponíveis para tal, são propícios a uma mudança estratégica, ...assim ela seja convenientemente aproveitada ..
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Andreia Fidalgo
31/5/2020 07:50:37
Cara Elsa, esperemos que assim seja! Que se aproveitem os ventos de mudança para realmente se mudar algo, em vez de se perpetuarem os modelos antigos, como até agora se tem feito. Muito obrigada pela leitura e pelo comentário.
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