Por Gonçalo Duarte Gomes Numa altura em que no Algarve tanto se discute água, regadio, culturas agrícolas e outras coisas que tais, eis que surge a criatividade humana, descomplicando o que antes parecia difícil. Surgiu, aqui há dias, numa sessão de apresentação realizada a propósito da consulta pública da proposta de Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, a ideia de afectar terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN) à instalação de explorações aquícolas. O conceito subjacente é simples: sendo o Algarve a região turística que é, a brutal pressão urbanística que incide sobre o litoral deixa pouco espaço ao que quer que seja. Vai daí, há quem queira instalar em terra equipamentos e estruturas associadas à aquacultura e… não tenha onde! Olhando em volta, o que é que se encontra de cantinhos disponíveis? As manchas de terrenos que, afectos à RAN, foram – sabe-se lá como! – resistindo aos ímpetos de betoneira, pois está claro! Recorrendo a um entendimento lato do que é a RAN e daquilo para que serve, apostando numa concepção lata de “reserva alimentar”, por oposição à mais estrita ideia agrícola, serviriam então estas bolsas de solos para estabelecimento de áreas de aquacultura (também aqui aparentemente com liberdades criativas na interpretação do conceito, regra geral aplicado em zonas de águas interiores e/ou de transição, como a Ria Formosa). Ordenamento do território, dizem. Em 1982, aquando do estabelecimento e criação da Reserva Agrícola Nacional, com o contributo decisivo de Gonçalo Ribeiro Telles, foi materializada uma visão estratégica, com o objectivo de salvaguardar os melhores solos agrícolas do País, consagrando-o como valor patrimonial essencial à permanência da Nação e recurso de segurança alimentar. Portanto, a ideia é reservar o solo pelo seu potencial produtivo, enquanto suporte de vida, e não apenas como suporte físico de fundação ou assentamento para tanques, bombas, casinhotos e afins – partindo do pressuposto optimista que a inovação não chega ao ponto de criar planos de água salgada em zonas mais interiores… Ou seja, isso sim, era verdadeiramente um acto de ordenamento do território. Inscrever na paisagem uma estratégia, em que a capacidade de produzir a partir da fertilidade do solo – e não a mera capacidade de produzir em cima de terra – ficava salvaguardada, ao serviço da geração presente e das vindouras. O Algarve não é extensivamente bafejado em termos de terras agrícolas, tendo hoje em dia cerca de 21% da sua área afecta a esse uso (ver aqui), sendo parte fruto da conversão de matos mediterrânicos. O sucesso desta actividade na região (que já originou saldo positivo na balança comercial, como ainda esta semana a Andreia aqui demonstrou), construiu-se historicamente sobre uma interpretação das condicionantes de solo e clima, a partir da qual foram apurados processos e técnicas construtivas para modelação de terrenos, acompanhados de criteriosa selecção de culturas, e sempre com grande respeito pela escassez do espaço útil e das terras com potencial produtivo – um traço cultural tipicamente mediterrânico. No ano passado, dados do Instituto Nacional de Estatística indicavam que, ao nível de soberania e défice alimentar, Portugal era auto-suficiente em leite, ovos, azeite, vinho, arroz e tomate para indústria, ao passo que se mantinha deficitário nos restantes produtos agrícolas, nomeadamente nas carnes, frutos, cereais (excepto arroz), batata, leguminosas secas, sementes e frutos de oleaginosas (excepto azeitona) e gorduras e óleos vegetais (excepto azeite), resultando num grau de auto-aprovisionamento* de aproximadamente 75%. No peixe, importa lembrar que o bacalhau, com base em dados de 2018, representa cerca de 500 milhões de euros de importações na balança comercial portuguesa. Para a soberania alimentar nacional, arrisco especular que o contributo do Algarve será residual (aceitam-se correcções). Se o crédito externo fechar ou for dificultado – devido a, por exemplo, uma pandemia – e as importações alimentares cessarem ou diminuírem por não haver mais vendas a fiado, como ficamos? Quem escolhe quem deixa de comer o quê? A aquacultura é uma actividade importante. Gera receita, gera emprego, diversifica a economia regional e está associada ao mar, um dos principais recursos da região, contribuindo para a auto-suficiência alimentar e para a prevenção da sobrepesca e dos seus impactos devastadores sobre os stocks pesqueiros e sobre toda a ecologia marinha. Mas sendo certo que quem vai ao mar se avia em terra, não é em terra que o mar se ordena – ou, pelo menos, não nestas terras de RAN. Porque comprometer o fundo de fertilidade que a RAN representa é um erro estratégico colossal, e totalmente desprovido de visão, que nos deixa ainda mais mal preparados para situações imprevistas e/ou de emergência, sendo a fome o risco primeiro no horizonte. A monocultura económica do turismo deixou o Algarve apeado em tempos de pandemia, demonstrando à saciedade que não é uma aposta sustentável, dada a tremenda vulnerabilidade que revela face a externalidades – o que não impede que os do costume continuem a impingir as mesmas velhas tretas, como se isto fosse só um percalço, e não uma deficiência estrutural. A aplicação dos dinheiros comunitários não resolveu nada de estrutural nesta matéria, fruto de todo um conjunto de circunstâncias que não cabe aqui analisar. Em tempos de novos quadros de apoio, e quando tanto ouvimos falar da “bazuca” de financiamento prestes a ser disponibilizada, e do seu tamanho, temos que acautelar que aqueles que ficam por ela responsáveis não disparam às cegas, nem têm dedos nervosos no gatilho, desejosos de gastar só por gastar, e em ideias mal consolidadas. Sob pena de, no futuro como agora, bazucas se revelarem minas anti-pessoais, e rebentarem com passos em falso. Mais do que o tamanho do martelo, interessa é acertar no prego. E o “prego” é a integração do Algarve e da sua economia no “Pacto Verde" europeu, com um modelo territorial verdadeiramente ordenado, que inscreva nas paisagens uma estratégia coerente e um futuro viável, e não uma manta de retalhos imediatistas – novamente, sem prejuízo do mérito das actividades em causa. Só assim iniciará a transição da sua economia para modelos assentes nos recursos e respeitadores das suas particularidades, em vez de se afundar no atraso de modelos meramente predatórios, quer das paisagens, quer das pessoas. Além de que, bem vistas as coisas, peixe de sequeiro não é a mesma coisa… * capacidade para satisfazer as necessidades de consumo de bens alimentares da população através da produção interna e/ou da importação de bens alimentares, financiados pelas correspondentes exportações
4 Comments
Paulo Penisga
16/10/2020 21:09:40
Excelente artigo. A merecer a atenção de quem decide. O problema, como sempre, são os interesses imediatos e as vistas curtas não estarem atentas às vozes lúcidas e mais avisadas.
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Gonçalo Duarte Gomes
17/10/2020 20:44:53
Paulo, o mais impressionante parece-me ser o desprezo revelado pelas gerações vindouras, uma vez que apenas interessa o aqui e agora.
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Miguel
16/10/2020 23:43:40
Confesso que desconhecia tal "idiotia" peço perdão, ideia, i am speechless, mas ainda assim, um caramelo pela originalidade por mais louca e descabida que possa ser...
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Gonçalo Duarte Gomes
17/10/2020 20:45:44
Caro Miguel, a realidade está constantemente a testar os limites da ficção...
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