Por Gonçalo Duarte Gomes Nestes tempos de pandemia, estamos marrecos de ouvir dizer como nada poderá voltar a ser como dantes. No entanto, no Algarve, o desconfinamento ofereceu-nos um déjà vu territorial e paisagístico dos grandes. Isto porque, desconfinadas e cheias de pica, voltam à carga, entrando novamente em fase de consulta pública, duas delicatessen turístico-imobiliárias da região: a cidade lacustre de Vilamoura (após suspensão do procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) em Setembro passado) e a UP3 de hotelaria tradicional de Portimão, em João d’Arens (chumbada em sede de Declaração de Impacte Ambiental (DIA), há coisa de um ano). Estes projectos conheceram tramitações distintas. No caso da cidade lacustre, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, identificando impactos negativos sobre o ambiente... fugiu à questão, suspendendo o processo em vez de o chumbar. No caso dos hotéis em João d’Arens, houve um efectivo chumbo, por parte da mesma autoridade de AIA. Já se sabe que estes projectos, pela sua natureza meramente especulativa, são pacientes. Muitas vezes são ficheiros, referências em carteiras de investimento, não ocupando no imaginário dos seus promotores sequer uma geografia, mas antes um numerário imaginado. Ao genius loci sobrepõe-se o genius pecunia. Este seu ressurgimento funciona como um bálsamo para aliviar os medos daqueles que temiam (não muito, acredito) que, no Algarve, esta crise nos fizesse repensar o modelo económico que, quando mais precisávamos, nos deixou – de forma totalmente previsível, diga-se – de mão estendida. Calma, gente! O mal do mundo (e da região, por arrasto) não é o sistema que, pela combinação das suas variadas características (umas boas, outras más, como em tudo), nos deixa totalmente expostos em alhadas desta natureza: insustentável e voraz rapinagem dos recursos e valores naturais gerando desequilíbrios ambientais (partilhada por marxismo e capitalismo, pelo que certos moralistas sectários bem podem enfiar a viola no saco), interdependências económicas intrincadas e quase sempre mal sustentadas, dependência total de factores externos, etc.. Não, o mal do mundo era convivermos, socializarmos, beijarmo-nos, abraçarmo-nos, tocarmo-nos (uns aos outros, bem entendido), caminharmos. No fundo, o que andava a lixar o mundo era sermos humanos, sermos gente senciente. Agora que conseguimos purgar um pouco dessa peçonha nojenta que é a empatia, filtrando a vida com ecrãs, transmitindo-a em banda larga, mascarando e higienizando tudo o resto, melhorámos um pouco. E portanto podemos continuar o “business as usual”, mas em modo “clean & safe”, porque há um “seal of quality” na porta, mesmo ao lado do “english spoken”, que diz que sim. Acresce que a imersão no baptismo redentor que é a condição turística, seja ela conferida pelo paramento litúrgico da pulseira “all-included” ou pelo sacramento do “check-in” (não separe o homem o que o Visa uniu), expia todos os pecados – pessoas na praia nem pensar, turistas pode ser. Não vou aqui entrar em pormenores formais destes dois projectos, até porque já foram amplamente debatidos e, neste momento, não se alteraram em substância, sem prejuízo das questões de pormenor entretanto alteradas. Interessam, fundamentalmente, ao nível da política territorial. Para lá dos projectos considerados na sua individualidade, as decisões em sede de processos de AIA têm sempre, e cada vez mais, uma dimensão política, de gestão dos recursos e do património regional – no caso – e de construção de um projecto de futuro. Nesse quadro, e perante a dramática lição dos últimos meses, são projectos como estes que servem os interesses do Algarve? Pelas localizações em zonas sensíveis do ponto de vista biofísico que fazem adivinhar socialização de encargos apesar da privatização dos lucros, pelo seu enquadramento no contexto de alterações climáticas (não desfazendo da fé que a AMAL tem no seu festival climático – pode ser entendido como actividade política, o que é bom, como sabemos – talvez seja melhor ter um plano B), pelas tipologias desadequadas das aptidões paisagísticas, pelo modelo económico que ajudam a perpetuar, e que tão frágil e socialmente irresponsável se revelou? O Algarve tem um péssimo histórico de décadas de omissão política das entidades com responsabilidades territoriais, perfeitamente passivas perante a alienação do capital natural da região. Provavelmente não por vontade própria, mas por determinação sistémica. Quando, no ano passado, estes projectos – de formas diferentes, como se viu – foram travados (juntando-se a outras decisões similares), pareceu estar a interromper-se a condição de orfandade paisagística. Pareceu dar-se uma viragem política, afirmando (mais de uma década depois da ratificação nacional da Convenção Europeia da Paisagem!) a paisagem como conceito ecológico e operativo de gestão e como mais do que mero cenário. Num Algarve “aconselhado” por uma angústia social e económica que em muito é ampliada pela quase exclusiva aposta em iniciativas como estas, vamos agora poder testar essa teoria. Entretanto, participe nas consultas públicas disponíveis no portal partipa.pt, através dos respectivos links:
Loteamento da UP3 de Portimão Loteamento da Cidade Lacustre, Vilamoura
2 Comments
Miguel
16/5/2020 12:57:50
Se algo de positivo poderá surgir caro Gonçalo será mesmo uma cada vez maior consciência ecológica associada ao pensamento de "temos de mudar" e "nada será como dantes", se isso se materializar em atitudes cidadãs mais activas, teremos ganho algo de significativo.
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Gonçalo Duarte Gomes
16/5/2020 20:17:30
Miguel, o percurso que nos trouxe até ao actual momento não padeceu propriamente de falta de consciência nas pessoas. Parece-me mais um problema de falta de acção - embora no caso de João d'Arens claramente não.
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