Por Gonçalo Duarte Gomes Na melhor década de todos os tempos, leia-se os anos 80 do século XX, num tempo em que as crianças tinham a sorte de não ter a obrigação de ser adultos em ponto pequeno, foi criada uma das mais fantásticas peças do folclore da cultura popular tuga. Um peixinho, um gato que o comeu, um cão que obrigou o voraz felino a esconder-se, e depois um coelhinho, o Pai Natal e um palhaço, todos num comboio em romaria ao circo, naquela que é, ainda hoje, uma das mais belas fábulas do imaginário português e da nossa indústria publicitária. Não sei onde foi concebido este conto moderno, mas sei onde não foi, de certeza: no Algarve. Mas antes de mergulharmos na fantasia, uma dose de realidade.
Em tempo de eleições, ou perto delas, é comum o anúncio de obras e mais obras, a par da inauguração daquelas que, por mera e inocente coincidência, são deixadas para o fim dos mandatos. Como já cheira a autárquicas, o Governo começa a fazer o que pode para ajudar os putativos candidatos, preferencialmente os da sua cor (ou suas cores, já que ainda não se percebe bem quem manda naquilo), como aliás qualquer outro Governo, de qualquer outra cor. Vai daí, e porque são leitores assíduos deste nosso Lugar ao Sul e das reivindicações por mais e melhores transportes que por aqui vamos deixando, os nossos governantes brindaram-nos recentemente (e hoje é dia de mais) com um fartote de anúncios nessa área. Ele é ampliações de terminais aeroportuários e investimentos em portos, ele é o retomar das obras na EN125 (nem que seja só em termos de cenário), electrificações de ferrovia e até novas ligações ferroviárias, na circunstância ao Aeroporto de Faro. Caramba, até há um PADRE a dar dinheiro para obras! Não querendo agora parecer mal-agradecido, devo confessar temer pelo nosso futuro, perante tanta promessa. É que, face ao histórico destas coisas na região, chega-se à conclusão de que os anúncios de infra-estruturas para o Algarve são como as meias que se recebe no Natal (desculpem lá a insistência nesta alusão, mas escrevo estas linhas na ressaca da fugaz queda de neve na região, que traz sempre aquela imagem natalícia...): a intenção é muito boa, mas o pessoal não acha grande graça, até porque ainda tem as de anos anteriores por estrear. Anunciar é fácil, já concretizar e concluir… Ora andando nós a fazer gincana entre os bocados de estrada que existem nesse grande estaleiro que é a EN125 e as crateras importadas de Sarajevo num dia mau que são os buracos da restante EN125 que nem sequer ao ponto de Santa Engrácia chegou, pensar que vamos levar com mais obras até arrepia, mais até do que o gélido e siberiano calor que por aqui anda. Das que mais gostei de ouvir anunciadas foi a da ligação ferroviária ao Aeroporto de Faro que, em conjunto com a electrificação da Linha do Algarve, poderá representar um avanço significativo na mobilidade do Algarve. Mas apenas caso se altere o material circulante e o circuito, no âmbito de um novo conceito, mais próximo de um metro de superfície (modalidade inclusivamente mais coerente com uma região que tem uma Grande Área Metropolitana, mesmo que a martelo). Electrizar por electrizar, é giro e a EDP agradece (pode até ser que pratique aquela filantropia boa com o nosso dinheiro e também faça cá no Algarve um museu catita – mas, ao contrário do MAAT em Lisboa, com acabamentos decentes, por favor, que aquele é só uma vergonha), mas para pouco mais serve do que para nos chocar. Portanto, não acredito muito, pelo que sigo o método de S. Tomé... até porque diz que é obra prioritária, se o ambiente deixar. Desde logo, aquece o coração ver que há aqui um trabalho de preparação, pelo menos ao nível do bode expiatório para eventual incumprimento da promessa, que já está definido, e que, pasmem-se os desatentos, é o mesmo de sempre: o "ambiente". Assim se criam, logo à cabeça, as condições para transferir o ónus de um projecto mal concebido (não seria antes melhor estruturar um projecto ambientalmente integrado, de raíz?) para os valores pré-existentes. No fundo, é como culpar as calças pelo tamanho dos glúteos que nelas decidem unilateralmente procurar cabimento, não o encontrando. Realmente, olhando para o Algarve, o "ambiente" tem impedido tudo por estas bandas, desde resorts em áreas sensíveis do ciclo hidrológico até edificações ilegais em áreas de risco no litoral. Ouvir que o "ambiente" pode ser entrave ao que quer que seja no Algarve é como escutar as virtudes da virgindade pregadas pela casta Cicciolina... Não é menos ternurento – fofinho, quase – ouvir governantes a adoptar um discurso, também ele, tal como o conto que refiro no início, de há 30 ou 40 anos, colocando em oposição dicotómica "ambiente" e "desenvolvimento" – ou têm qualidade ambiental, ou têm obra, ambas em simultâneo nem pensar. Não deixa de ser curioso que só nos preocupemos com os Trumps estrangeiros... Pelos vistos Portugal, o País que até ao Domingo produz engenheiros, não tem técnicos com arte e conhecimento suficiente para conceber obras que se consigam articular e integrar nos valores ambientais com que inevitavelmente interferem. Agora que penso nisso, fica assim explicado o assalto total em curso ao ordenamento do território, que é justamente a organização das actividades humanas no espaço, de acordo com a aptidão dos recursos e valores ecológicos presentes: não sabemos mais. E haver quem pensasse que interesses obscuros eram a causa… Para já, identifico uma “chatice” a menos neste processo, concretamente a Reserva Ecológica Nacional (REN). Basta seguir o exemplo de Grândola e Alcácer do Sal, e meter um lápis azul na mãos dos autarcas, para censurarem a gosto essas trivialidades das “áreas estratégicas de protecção e recarga de aquíferos”, “zonas ameaçadas pelo mar” e outras maluquices de hippies desocupados, sempre com beneplácito governamental. Progresso que é progresso, não se detém por minudências! É por estas e por outras, que, na versão algarvia, a tal história encantadora das Fantasias de Natal perderia algum do seu glamour. É que, contas feitas, peixinho nem vê-lo porque a frota pesqueira foi abatida para que outros pudessem pescar nas nossas águas, e as quotas que sobram não o permitem. Sem peixe, o gato teria morrido à fome, e o cão, na sua busca inglória, teria sido atropelado na caótica EN125. Do coelhinho, só memória, devido à mixomatose e à febre hemorrágica, que assolam as suas populações nas serranias abandonadas. No final, ficaríamos com um Pai Natal apeado porque não há comboio – o ambiente não deixou – para ir ao circo que, de resto, por ter sido desleixadamente autorizado a montar a tenda numa várzea em leito de cheia, em plena REN, foi levado por uma qualquer enxurrada. A única coisa que não faltaria seria palhaços. Muitos palhaços. Todos nós, na verdade.
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