Por Gonçalo Duarte Gomes Corria o ano de 1853, quando o Estado Português, já no ocaso do reinado da Rainha D. Maria II, lançou um plano de fomento florestal, com distribuição gratuita de sementes, ficando as Câmaras Municipais com a responsabilidade de organizar os projectos de povoamento florestal. A fazer fé em informações difíceis de confirmar, precisamente num dia 23 de Março, como este em que nos encontramos. Mais facilmente verificável é a criação de uma comissão, em Novembro desse mesmo ano, já no reinado de D. Pedro V e por ordem de Fontes Pereira de Mello, então Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, para elaborar um Código Florestal que coligisse a legislação dispersa relativamente a essa matéria e a harmonizasse com "os principios da sciencia". Três coisas se destacam então: desde há pelo menos 165 anos que andamos a tentar perceber o que fazer em termos da floresta, desde há pelo menos 165 anos que a legislação é ao quilo e anda desfasada do conhecimento técnico sectorial que pretende regulamentar e desde há pelo menos 165 anos que a criação de uma comissão é panaceia para todos os males. Basicamente, uma gestão do País que assenta num princípio semelhante ao de querer ganhar o Euromilhões, mas sem jogar... Foi entregue esta semana o relatório de avaliação dos incêndios ocorridos entre 14 e 16 de Outubro do ano passado, elaborado pela comissão técnica independente coordenada pelo Prof. João Guerreiro (disponível aqui). A julgar pelas reacções que vão sendo conhecidas, este bem mais incisivo do que o anterior, referente aos incêndios ocorridos na zona do Pinhal Interior, o que se mede bem pelos rabos que começam a fugir à seringa, questionando o trabalho desenvolvido, como é o caso do ex-Secretário de Estado da Administração Interna... Vem isto provar que esta ou qualquer outra comissão técnica independente pode produzir os melhores e mais credenciados documentos, desde que não quebre essa autêntica regra de ouro portuguesa, que é o celibato em que morre costumeiramente a culpa. Não falo sequer de questões técnicas, pois independentemente de diagnósticos, recomendações, propostas, comissões ou grupos de trabalho, a aposta governamental continua a ser feita em medidas avulso, sem qualquer enquadramento numa abordagem integrada ao problema do ordenamento e desenvolvimento territorial. Isto é assim com as florestas, com a gestão do litoral, com o urbanismo, com as infra-estruturas, com a coesão territorial, mais ou menos com tudo o que implica estratégia, pensamento estruturado e de longo-prazo. Basicamente, com tudo o que implica projectar o futuro de um País, solidário no presente e no futuro, com os actuais e os vindouros. Mais fácil e interessante é ir gerindo um ligeiro concurso de popularidade, sempre na óptica do assegurar um lugar nas listas da próxima votação do público, que ocorre de quatro em quatro anos, e não tanto da administração da res publica em si. Portanto, comichão, com ligeira brotoeja mas efeitos efémeros, tudo bem. Comissão, a escarafunchar feridas profundas com dedos incisivos… é melhor não. De qualquer forma, e regressando afinal a aspectos técnicos, pessoalmente esperava mais do ponto intitulado “gestão da paisagem”, já que a tónica é centrada na elaboração de planos florestais, numa perspectiva sectorial estanque, desgarrados de um processo de revitalização e humanização das paisagens "rurais". Ainda para mais quando planos não passam de papel se não estiverem respaldados por pensamento e vontade política... Nesse capítulo, podemos por exemplo tirar azimutes das recentes declarações do Primeiro-Ministro, acerca de fogos: "Um dos maiores problemas do País é a péssima qualidade da nossa informação, que só acorda para os problemas a meio das tragédias, esquecendo-se habitualmente do problema na hora certa de prevenir que a tragédia possa vir a ocorrer." Pois… Sendo certo que não podemos negar totalmente a afirmação de António Costa em vésperas do Dia da Liberdade de Informação, não é menos factual que não foram os jornalistas a ir de férias no calor da coisa para fugir ao cheiro dos cadáveres carbonizados que se iam acumulando sob a comatosa omissão do Governo, não foram os jornalistas a preferir organizar focus groups para medição da popularidade, não foram os jornalistas a promover a dança das cadeiras nas estruturas de protecção civil a dias do início dos períodos críticos de risco, não são os jornalistas que têm responsabilidades políticas nas (más) opções que são tomadas desde há mais de uma década! Não que este Governo seja o culpado, pelo menos integralmente. É inteiramente responsável, mas apenas parcialmente culpado, num processo cujo desnorte data de há pelo menos… 165 anos. A longevidade dos caos sectoriais que nos moldam (ou toldam) deve fazer-nos reflectir. Não numa perspectiva catastrofista ou terminal, já que os processos paisagísticos seguirão o seu curso, independentemente das opções que tomemos ou deixemos de tomar. O que está em causa são as implicações e os custos sociais e económicos do curso desses processos, condicionados por essas opções, sejam elas por acção ou omissão. Porque ou gerimos efectivamente paisagens, assumindo um papel consciente e responsável enquanto agentes modeladores que somos, ou nos resignamos ao papel de inconscientes passageiros de um carro que segue desgovernado ladeira abaixo. No caso do fogo, temos que decidir se continuamos a arder descontroladamente e com vítimas ao sabor de uma autêntica lotaria macabra ou se retomamos modelos de paisagem em equilíbrio face a esse elemento natural. No caso do litoral, optar entre continuar a brincar ao saco de plástico aos trambolhões na rebentação das ondas ou recuperar a noção e o respeito pelo real poder da água enquanto modelador da terra e o risco perante o qual nos coloca. No caso do urbanismo, escolher entre viver em urbes reais ou reais e favelados amontoados de edifícios. E assim sucessivamente, nas diversas matérias relativamente às quais temos que decidir se afinal nos interessam mesmo ou não, e numa lógica da base para o topo, já que ficar à espera que quem anda a tratar da sua vidinha trate da nossa é uma quimera – como o Algarve sente na pele todos os dias. Já que estamos numa de recuar 165 anos, precisamos de republicanas cortes, para aclamar não um rei, mas um real projecto de futuro para as nossas paisagens. Por muita comichão que possa causar.
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