Por Gonçalo Duarte Gomes
… e o resultado é “porreiro”. Por uma questão de sanidade e higiene mental, e ainda que os ache fundamentais, optei por ignorar os debates entre candidatos às eleições presidenciais, que terão lugar este mês – uns e as outras, bem entendido. Mas também porque o resultado, em democracia e despistada a existência de fraudes ou condicionamentos, será sempre o correcto, independentemente de debates que, numa sociedade tão mediatizada – ainda que por vezes mal informada – como a nossa, dificilmente modelarão votos. Mas há coisas demasiado atraentes – mesmo que de forma mórbida – para se perderem. Foi o caso do debate entre Vitorino Silva, mais conhecido como Tino de Rans, e André Ventura, mais conhecido como Adolf de Algueirão-Mem Martins. Porque era um duelo de titãs mediáticos (em diferentes estilos, é certo) e, pessoalmente, porque eram aqueles cujo discurso menos conheço na abordagem à temática presidencial, já que os outros são mais familiares, seja na sua individualidade ou nos blocos que representam. Este frente-a-frente, bem vistas as coisas, opôs um popular a um populista, soando mais a uma entrevista de café, uma auscultação das massas, do que a uma discussão de ideias programáticas para o exercício da mais importante magistratura do nosso edifício democrático. E, de caminho, mais do que outra coisa qualquer, acabou por ser uma representação do estado da política em Portugal. Porque Vitorino e André, sentados à mesa, discutindo afincada, ainda que educadamente, o título de candidato mais representativo do "povo", procuraram demarcar-se das "elites" e dos seus putativos candidatos, certos da premissa de que aquelas e aqueles lhes retribuem a atenção. Ora, gosto de acreditar que, se Platão fosse português, vivendo neste tempo que é o nosso, seguramente construiria uma alegoria, neste caso não da caverna mas antes do vão de escada, qual clássica porteira do imaginário urbano de antanho. E, neste bate-boca de escadaria social, seguramente veria que estes debatem aquilo de que os outros não querem saber, os outros discutem coisas que a estes nada dizem, e uns e outros falam de tudo menos do país e do papel que um Presidente da República pode desempenhar nele e no seu futuro. A uma parte significativa do eleitorado, não militante de nenhuma das facções em confronto, restará portanto não uma escolha, mas um ingrato papel de minimização de estragos, escolhendo um mal menor ou afirmando a ausência de escolhas que o representem – o voto em branco. Que isto suceda num momento de profunda e global crise social, cultural, económica, anímica e democrática, não pode deixar de ser significativo, mais que não seja para quebrar enganos e rasgar atávicos paninhos quentes sobre a crise que se abateu – por culpa própria e dos seus actores – sobre as instituições e os processos do nosso regime político. Correndo o risco de ser demasiado exigente face ao que um Presidente da República deve ser – quando a experiência acumulada aconselha precisamente o contrário – e, consequentemente, quanto aos temas que devem preencher o debate que alimenta e informa o respectivo sufrágio, parece-me que estamos no ponto zero de energia da política, que está transformada num somatório de agendas desgarradas, que se confrontam oligarquicamente, em que as pessoas são apenas meios para atingir fins, e não os fins que justificam os meios, não se vislumbrando todo para lá da soma das meras partes, esvaziando-se qualquer conjunto. Não obstante (e correndo o risco de ser injusto para outros, por ignorância dos mesmos), acho que deste debate resulta um momento marcante, do hipnotizante gesto de candura e sedutora simplicidade com que Vitorino retirou do seu bolso quatro pedrinhas, para ilustrar um argumento de profundo humanismo – tónica que marcou todo o seu discurso, com uma naturalidade tocante, pleno de metáforas eloquentes, que me parece tê-lo guindado à condição de inequívoco vencedor do debate, ainda que sem beliscar o oponente e sem convencer ser a pessoa indicada para este cargo em particular, sem prejuízo da competência para outros. Mas, olhando as quatro pedras, não pude deixar de registar a brutal epifania nelas materializada, como a luz que, precisamente na platónica caverna, mergulha o Homem nos dilemas resultantes da confrontação entre representação e realidade. Porque, no fundo, tudo se resume a calhaus, em variados sentidos. Os que se escolhem porque parecem contundentes, para atirar em protesto, numa lapidação. Os que se escolhem porque são iguais aos que sempre se escolheram para lastro. Os que tendo a exacta mesma forma de outros que rolaram para o abismo, se dizem diferentes. Os polidos, cuja ausência de arestas gera conforto. Mas também os calhaus com olhos. Que não vêm. Uns aos outros. À realidade. Poder escolher acaba mesmo por ser a única, e grande, nota positiva. Bem-vindo, 2021.
2 Comments
Miguel
7/1/2021 22:57:16
Pouco poderia acrescentar a uma excelente análise com a qual genericamente concordo, creio apenas que os níveis de abstenção irão rivalizar de perto com os de covid que infelizmente vamos tendo, espero enganar-me em relação a ambos no futuro próximo.
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Gonçalo Duarte Gomes
11/1/2021 10:44:44
Miguel, a abstenção, ainda para mais num anunciado contexto de confinamento, poderá, de facto, atingir novos máximos históricos.
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