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Um Hospital das “Luzes” para o Algarve: saúde e assistência em Faro nos finais do século XVIII

13/4/2020

10 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

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No passado ano de 2019, o Hospital de Faro celebrou os seus 40 anos de existência. Inaugurado em Dezembro de 1979, a então recém-nascida unidade hospitalar destinava-se a suprir as carências da população algarvia no acesso aos cuidados de saúde e, simultaneamente, a dar uma resposta mais condigna às necessidades daquela que já então era a região de maior valor turístico do país.

Pouco mais de quarenta anos volvidos após essa inauguração, é seguro dizer que o Algarve mantém actualmente os mesmos problemas que naquela época se pretendiam resolvidos: face ao crescimento populacional e ao desenvolvimento do sector turístico, a região precisa hoje, urgentemente, de um novo hospital que dê resposta às suas necessidades.

Esta reivindicação está longe de ser nova e encerra em si mesma uma longa história, com potencial para nos deixar a todos nós, cidadãos, angustiados e bastante preocupados com a inércia dos decisores políticos e com a aparente incapacidade de priorização das necessidades da região nas agendas governativas.

Esta história, relativamente recente, remonta a 2002, quando por Despacho do então Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, foram criados os Grupos de Coordenação Interdepartamental para o lançamento das parcerias público-privadas, no qual se incluía o Grupo Interdepartamental para o lançamento de uma nova unidade hospitalar no Algarve, a desenvolver no Parque das Cidades Faro-Loulé. Depois de avanços e recuos, esta história atingiria o seu “auge” em 2008, ano em que o então primeiro-ministro José Sócrates lançaria mesmo a primeira pedra do novo Hospital, que estaria pronto em 2013.

Só que não. E a história virou estória…

Volvidas quase duas décadas, o que nos resta é uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, com a diferença de que os problemas estruturais não só não desapareceram, como se adensaram. Esta reflexão é tanto ou mais pertinente no actual contexto em que enfrentamos uma grave pandemia. Não obstante o esforço absolutamente meritório de todos os profissionais de saúde, há que relembrar quão melhor e mais eficiente poderia ser resposta dos serviços de saúde se não se tivessem negligenciado, durante anos, as necessidades da região…

Porém, o que me traz aqui hoje não é um exercício de história contrafactual, por muito interessante que este possa ser. O que me traz aqui hoje é mais um breve apontamento histórico que relembra o Algarve no Século das Luzes e o esforço empreendido nos finais dessa centúria para a construção de uma unidade hospitalar, em Faro, mais adequada às necessidades da época: o Hospital da Misericórdia de Faro.

Antes de mais, convém atentar ao significado mais específico da palavra hospital. Se actualmente o identificamos imediatamente como o local destinado ao atendimento de doentes a fim de proporcionar diagnóstico e tratamento necessário, esta definição não é assim tão linear para períodos anteriores. No Vocabulario Portuguez e Latino de autoria de Raphael Bluteau – considerado o primeiro dicionário da língua portuguesa, publicado entre 1712 e 1728 –, hospital define-se como um “lugar público, em que se curam os doentes pobres” e “em que se agasalham e sustentam os pobres”.

Esta definição relembra-nos que para períodos anteriores, nomeadamente durante a Idade Média e a Idade Moderna, a definição de hospital se encontra intimamente associada à religião cristã: os hospitais eram, antes de mais, locais de caridade que cumpriam importantes funções de acolhimento e assistência aos pobres e desvalidos; destinavam-se, também, ao tratamento de enfermidades, mas de doentes pobres, uma vez que para os grupos sociais mais favorecidos os problemas de saúde eram tratados em casa. Por isso mesmo, os hospitais estavam quase sempre associados a organizações de caridade, como as confrarias e as irmandades.

No caso de Faro, há notícia de um hospital primitivo datado dos inícios do século XVI, anexo à Igreja do Espírito Santo, cuja edificação teria resultado da doação de um benemérito, de nome João Dias. Em 1583, no local da igreja manuelina do Espírito Santo iniciou-se a edificação, por ordem do Bispo D. Afonso de Castelo Branco, da Igreja da Misericórdia, que manteve e integrou o hospital anexo.
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Este hospital da Misericórdia teria servido a cidade de Faro nas duas centúrias seguintes. Mas já no final de Setecentos este cenário alterar-se-ia, pois teria lugar um acontecimento determinante para toda a região algarvia e, em particular, para a cidade de Faro: a nomeação de D. Francisco Gomes de Avelar como Bispo do Algarve, em 1789, cargo que ocupou até ao ano da sua morte, em 1816.
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​D. Francisco Gomes de Avelar, Bispo do Algarve entre 1789 e 1816

D. Francisco Gomes de Avelar (1739-1816) destacou-se de forma notável na sua acção pastoral e incorporou verdadeiramente o espírito do Iluminismo Católico. O Iluminismo foi o movimento intelectual que marcou o Século das Luzes e que se define pelo apelo às luzes da razão – ou seja, da inteligência – a fim de dissipar a ignorância, o erro, o atraso, os preconceitos e todas as injustiças que desses males resultam. Há um apelo e confiança na razão humana esclarecida, através da qual era possível um progresso tanto material, como moral, obtido por intermédio de reformas das instituições e dos comportamentos. O ideário das luzes foi progressivamente penetrando na consciência dos monarcas e seus conselheiros, ministros e outros agentes, traduzindo-se no desenvolvimento de sistemáticas reformas económicas e administrativas que irradiaram em vários estados europeus, tal como aconteceu em Portugal, com o Marquês de Pombal.

Mas não só! Também a Igreja Católica se reformou e o clero protagonizou diversas reformas inspiradas pelo ideário das “Luzes”. O Iluminismo Católico tem por base a ideia de que houve um movimento de reforma eclesiástica no século XVIII, no qual se reafirmaram os dogmas essenciais da Igreja Católica, explicando a sua racionalidade de acordo com a terminologia moderna, e que se repercutiu numa reconciliação do Catolicismo com a cultura da época – nomeadamente através da aceitação das novas teorias económicas, científicas, etc –, visando contribuir para o progresso e reforma geral da sociedade.

A acção de D. Francisco Gomes de Avelar deve ser, pois, entendida neste contexto mais amplo do Iluminismo Católico. Oratoriano esclarecido, todos os seus biógrafos são unânimes em salientar que na sua formação foi crucial a estadia de quatro anos em Roma, onde foi apresentado ao Papa Pio VI e o seu leque de relações e amizades foi ampliado, travando conhecimentos que perduraram toda a sua vida. Aí teve também oportunidade de se sensibilizar para as artes, visitando os monumentos e obras artísticas de Roma, e contactando com artistas que à época aí se encontravam e que granjeavam de uma imensa reputação.

Nomeado Bispo do Algarve em 1789, o cenário com que se deparou quando chegou à região não era, de todo, o mais favorável: um território empobrecido e economicamente deprimido, com grande parte das igrejas em mau estado ainda devido aos efeitos do terramoto de 1755, com falta de estradas e caminhos que servissem a população local e um subaproveitamento crónico dos recursos agrícolas.

Não caberia aqui analisar toda a obra reformista empreendida por este bispo na região, que foi bastante vasta. Porém, no que à cidade de Faro diz respeito, foi pela por iniciativa deste bispo que se reconstruiu o Paço Episcopal, se edificou o Seminário, o Arco da Vila e, também, o novo Hospital da Misericórdia. Para levar a cabo tais obras, D. Francisco Gomes de Avelar chamou a Portugal o arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri, que teria conhecido na sua estadia em Roma, e que acabou por ser o principal divulgador do estilo neoclássico no país, quando, depois da sua passagem pelo Algarve, foi incumbido de dirigir, em 1802 e em conjunto com o arquitecto José da Costa e Silva, as obras do Palácio Real da Ajuda.
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No que ao Hospital da Misericórdia diz respeito, o Bispo ter-se-ia deparado com um espaço exíguo, com duas estreitas enfermarias muito abafadas, que mais serviam para propagar doenças do que para as curar. Condições pouco condignas a que o Bispo sentiu urgente necessidade em acudir.  O novo hospital, projectado pelo arquitecto Fabri, começa a edificar-se em 1795, na lateral norte da Igreja da Misericórdia. Com um espaço bastante amplo, a planta desenvolvia-se em torno de dois pátios interiores, acomodando no piso térreo as áreas de carácter administrativo e no piso superior o internamento e os cuidados de saúde.
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O novo hospital foi desenhado de acordo com os preceitos da época e enquadrado no discurso do progresso das “luzes”. Tinha, portanto, espaços amplos onde a circulação seria facilitada, com janelas rasgadas para permitir uma boa iluminação e ventilação. Uma das soluções dignas de nota foi a utilização de tectos de reixa, no 2º andar, precisamente para permitir a ventilação do espaço. Solução esta que, além do seu carácter funcional, em última instância reflecte o respeito e a integração de materiais e técnicas regionais no novo edifício neoclássico do hospital.
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Também a fachada do edifício foi concebida para criar um conjunto harmonioso, obedecendo aos critérios de racionalidade das Luzes. Foi, por isso, perfeitamente alinhada com a fachada da Igreja da Misericórdia, ajudando a definir o enquadramento urbanístico da outrora designada Praça da Rainha, actualmente Jardim Manuel Bivar. Nesta fachada, o piso inferior desenvolve-se ao longo de uma ampla galeria composta por nove arcos de volta perfeita de grande unidade rítmica, através da qual se fazia o acesso ao interior do hospital.
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Praça da Rainha na década de 50 do séc. XX. Merece particular destaque para o conjunto formado pela Igreja e Hospital da Misericórdia.

A fachada deste edifício é, de resto, o elemento que ainda permanece mais fiel à traça original, dado que todo o espaço interior se foi descaracterizando com a utilização permanente do espaço e as necessárias adaptações que os novos tempos foram exigindo. Ainda assim, este hospital perdurou até ao século XX sem necessitar de grandes obras de fundo; já nessa centúria, seriam realizadas obras gerais na década de 20 e posteriormente seria remodelada toda a ala Norte, na década de 50. Estas obras permitiram adaptar o edifício e mantê-lo em funcionamento até à abertura do Hospital de Faro, em Dezembro de 1979, altura em que o antigo foi então desactivado.

O Hospital das “Luzes” permitiu que em Faro existisse uma unidade hospitalar moderna, que funcionou durante mais de centúria e meia, ininterruptamente. A sua edificação resultou da iniciativa de um homem esclarecido, o Bispo D. Francisco Gomes de Avelar, que desenvolveu toda a sua acção pastoral imbuído dos mais altos valores do Catolicismo e inspirado pelo ideário de progresso do Iluminismo, com o intuito de acudir aos interesses e necessidades do rebanho que tinha a função de apascentar. E o Hospital da Misericórdia foi apenas uma de muitas obras que este bispo deixou como legado à região algarvia.
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A edificação do Hospital da Misericórdia de Faro, assim como a edificação e inauguração do Hospital de Faro foram marcos históricos importantes. Mas as necessidades de saúde não só não páram, como se complexificam e exigem respostas cada vez mais adequadas e soluções cada vez mais eficazes. Esperemos que a estes marcos históricos se some a edificação da prometida e tão almejada nova unidade hospitalar. Só não sabemos bem quando… Será que temos de esperar mais 20 anos?
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10 Comments
André capela
14/4/2020 08:16:34

Muito bom.

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Andreia Fidalgo
16/4/2020 19:59:56

Muito obrigada pela leitura e comentário! Votos de boas leituras no Lugar ao Sul.

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João Nobre
14/4/2020 09:15:21

Já é tempo mas estamos longe da influencia politica. Obrigado pelo artigo

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Andreia Fidalgo
16/4/2020 20:01:37

Caro João Nobre, é verdade. Já seria tempo de acabarmos com este estigma do centro-periferia. Ainda mais num país de tão pequenas dimensões. Obrigada pela leitura e comentário. Regresse sempre ao Lugar ao Sul para mais leituras.

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Florêncio Vargues
14/4/2020 21:59:46

Muitos parabéns pela vossa partilha. Um grande artigo que todos nós Algarvios, incluindo aqueles que escolheram o Algarve para exercerem as suas actividades, deviam ter conhecimento e fazer uma reflexão sobre o tema e.

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Andreia Fidalgo
16/4/2020 20:05:11

Caro Florêncio Vargues, muito obrigada pela leitura e pelo comentário. Espero que regresse sempre ao nosso Lugar ao Sul para mais leituras e reflexões.

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Nuno J. Belchior Coelho
15/4/2020 09:44:08

Prof@ Andréa, obrigado pela oportunidade do tema e pela importância e urgência que ele encerra. Contra factos não há argumentos. Necessitamos de acrescentar valor na área da saúde nesta região e muito provavelmente de um novo e verdadeiro D. Francisco.
Gostei muito da menção à antiga definição de hospital. Fiquei a pensar nela. E de fato, considero urgente, voltar a equacionar soluções e espaços para pobreza extrema, uma realidade cada vez mais notada. Infelizmente.
Os meus melhores cumprimentos,
Nuno J. Belchior Coelho

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Andreia Fidalgo
16/4/2020 20:08:45

Caro Nuno, muito obrigada pela leitura, comentário e reflexão. De facto, o conceito de hospital acabou por retirar o domínio da assistência na pobreza, reduzindo-se apenas aos cuidados de saúde. Na actual situação, infelizmente, creio que as situações de pobreza poderão aumentar substancialmente, o que vai requerer, sem dúvida, que se pensem em soluções melhores do que as actuais. Cumprimentos e regresse sempre ao Lugar ao Sul para futuras leituras!

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Antonio Manuel Duarte
15/4/2020 10:45:40

è pena terem mal tratado a quem nos deu tanto; não culpo os tempos mas sim as pessoas e os Farenses; os meus filhos nasceram naquele hospital; Podiam ter continuado com o mesmo hospital adaptado aos serviços médicos ou apenas de uma só especialidade, e assim sobrava mais espaço ao outro, mas fizeram render com bares discotecas,

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Andreia Fidalgo
16/4/2020 20:12:14

Caro António Manuel Duarte, sem dúvida que a cidade de Faro e a região precisam de mais e melhores espaços de saúde. De tal forma, que o hospital distrital demorou apenas dois decénios a tornar-se manifestamente insuficiente para as necessidades regionais. A meu ver, também estamos perante uma falta de visão estratégica a mais longo prazo, coisa que hoje em dia parece ser muito rara. Muito obrigada pela leitura e pelo comentário e regresse sempre ao nosso Lugar ao Sul para futuras leituras.

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