Por Gonçalo Duarte Gomes
Os meus colegas de pena Pedro Pimpão e Bruno Inácio deram o mote para uma reflexão em torno da Ria Formosa, um dos recursos estratégicos do Algarve, principalmente se houver qualquer intenção real, para além do discurso politicamente correcto, de abraçar a vocação da região estruturando nela uma verdadeira Economia do Mar. Agarrando no tema quente, actual e nada pacífico das demolições, lançado pelo Bruno, importa perceber que, pese embora a sua dimensão regional, é nacional o seu potencial impacto. Porque joga-se aqui, para além de questões ambientais e sociais, o futuro do Domínio Público Marítimo. Mas antes, as pessoas. Este é um processo que mexe com pessoas, pelo que é fácil perder a objectividade, tornando a questão... pessoal. É uma história em que os protagonistas nos são próximos, e sabemos que não há propriamente vilões. É uma história dolorosa, porque envolve afectos e memórias, de intermináveis, doces e ociosos Verões, de fins-de-semana bem passados, noites de encanto, retalhos do Paraíso, um apego compreensível. É também uma história de vidas, porque há quem viva efectivamente ali, e viva da Ria e dos seus recursos, compondo, em conjunto com todos os outros elementos, a alma da Ria Formosa. Mas esses vêem-se envolvidos numa história suja, porque há quem viva não na Ria, nem da Ria, mas sim de uma economia paralela que ali se desenvolve, encimada pelos arrendamentos de Verão que se escondem à vista de todos, e agora conte histórias da carochinha. De qualquer modo, por muito que custe, há algo acima das histórias desta história. Há um princípio. Não apenas de legalidade ou de ecologia (como se fossem coisa pouca), mas do espaço comum, do que é de todos e de ninguém, não sujeito a titularidade privada, materializando o Interesse Público – coisa bem diferente do somatório dos interesses particulares. O Domínio Público Marítimo é isso mesmo. É uma figura legal que dá expressão territorial a um princípio de universalidade de acesso, ainda mais excepcional se pensarmos que foi implementada em meados do Século XIX pelo Rei D. Luís – muito à frente do seu tempo, já que, no léxico contemporâneo, dir-se-ia que autenticamente nacionalizou a orla costeira. Num tempo de maioria “de esquerda” (os rótulos e o seu valor relativo), e com tais bandeiras em causa, esperar-se-ia uma cerrada defesa. Mas o populismo, temente ao voto, fala mais alto do que a razão. Tem falado sempre. Daí a histórica e dramática falta de posições inequívocas sobre esta matéria, referida pelo Bruno na sua publicação. Inclusivamente pretendendo ignorar que a Justiça já se pronunciou. Tal facto coloca-nos à beira de abrir a Caixa de Pandora, aqui mesmo no Algarve. Porque ou há moral, ou comem todos. E se todos, de Norte a Sul, munidos desta mesma prerrogativa que agora alguns reclamam, decidirem ocupar o que quiserem, como quiserem, mergulhamos na anarquia. Quem se lixa neste caso, apesar de se tratar da Ria Formosa, é não o mexilhão, mas o Algarve. Porque, apesar do ruído dominante, há uma maioria silenciosa que observa atenta o desenrolar deste processo. Se junto dela vingar a ideia de que por estas bandas a civilidade própria de um Estado de Direito não tem lugar, o Algarve continuará a ser olhado pelo restante País (e também por quem nos visita e quem pense por aqui investir) como um sítio engraçado para passear e ver umas realidades pitorescas, mas que não é merecedora de grande credibilidade. O respeito conquista-se. Estamos portanto perante uma escolha fracturante. Entre salvar um princípio de organização igualitária da sociedade ou fazer prevalecer as vontades individuais sobre o colectivo, entregando o que é de todos a alguns. Qualquer desfecho é, no limite, possível. Mas com consequências distintas. Tendo em conta que um preclaro Ministro viu a Sul do Tejo nada mais do que deserto, arriscamos assumirmo-nos tuaregues. Tuaregues montados em camaleões. E não vamos a lado nenhum.
8 Comments
Elsa Caetano
7/10/2016 15:40:35
Excelente artigo Gonçalo!!! De ti, outra coisa não seria de esperar..Mas a teia de interesses é tão grande, que ninguém se atreve a fazer a defesa da causa pública, porque o que se trata é de defender interesse público ...
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Gonçalo Duarte Gomes
7/10/2016 16:17:11
Obrigado, Elsa.
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Tomanel
7/10/2016 15:51:29
Essa é sem dúvida uma guerra difícil de comprar. Os que cá estão dispõem de muito pouco tempo para preparar a grande travessia no deserto , a qual chamamos "longo Inverno", valendo-se das armas que os rodeiam, que são escassas e facilmente numeradas ( a beleza e riqueza da nossa natureza). Os que cá vêm , se não encontrarem muito progresso , não se incomodam muito , pois é uma salvaguarda para poder manter a paz e tranquilidade . Eu acho que pode existir progresso sem estragar as riquezas naturais de que dispomos. Talvez existam forças superiores que queiram os ventos ao Sul a soprar sempre na mesma direção .
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Gonçalo Duarte Gomes
7/10/2016 16:15:03
Concordamos inteiramente na compatibilidade entre o progresso e a preservação dos valores naturais, não sendo isso que está em causa, mas antes a viabilidade de um modelo de ocupação do território em que cada um se instala onde quer, como quer, socializando os custos e privatizando os proveitos.
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Hernani Silva
7/10/2016 23:04:54
O curioso dessas demolições na Ria Formosa é que quem fezo POOC Vilamoura Vila Real de Stº António e aprovou o Polis Ria Formosa que deu origem a essas demolições foi o governo PS de José Socrates.
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Gonçalo Duarte Gomes
7/10/2016 23:45:59
As situações que relata, a confirmar-se, ajudam a provar que a nível local, mais do que os partidos, importam as pessoas e as suas visões dos aspectos sob a sua gestão.
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Hernani Silva
26/1/2017 11:49:28
Hoje passados mais de 3 meses as demolições na Ria Formosa voltam à ordem do dia,e voltam mais uma não do ambiente e da defesa do Domínio Publico Marítimo, mas sim em nome da segurança das pessoas.
Gonçalo Duarte Gomes
31/1/2017 16:27:48
Lamentavelmente, e para clamoroso prejuízo do País, os jogos e jogadas políticas, em interesse próprio ou de terceiros, não têm qualquer relação com as questões técnicas que deveriam servir de base a toda e qualquer decisão, e sobrepõem-se mesmo às pronúncias judiciais, prova do estado ruinoso a que a nossa "democracia" chegou. Leave a Reply. |
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