Por Gonçalo Duarte Gomes … umas vezes a pé, outras vezes andando. Esta semana abateu-se sobre Lisboa um autêntico Apocalipse Taxista, que deixou os produtores da HBO a sonhar com algo do estilo de um cruzamento entre Walking Dead e Game of Thrones, com muita porrada, épicos duelos de unha do dedo mindinho, bigodes farfalhudos com refeições inteiras lá escondidas e apetite voraz por virgens, discurso vernacular, e um trono feito de corta-unhas com a Nossa Senhora de Fátima ilustrada em acrílico – e se não deixou, pensem nisso e dêem qualquer coisa aqui ao menino pela ideia. Pelo Algarve, a pacatez costumeira, até porque, em boa verdade, por cá nada se passa no capítulo dos transportes públicos/colectivos de passageiros. E tudo vai bem, que isso é coisa para a plebe possidónia, suburbana e cinzenta, e não para os commuters bonitos e bronzeados deste cantinho. O debate entre o império fogareiro e a aliança rebelde composta por Uber/Cabify/[inserir o nome de qualquer companhia que venha inovar, acompanhando a evolução dos tempos] reforça a necessidade de estruturar, em definitivo, uma política de transportes que privilegie o transporte colectivo. Por tudo, desde questões ambientais (menos emissões, ainda para mais com a nova geração de veículos eléctricos, descongestionamento das estradas e cidades) a questões sociais (tarifas acessíveis, para os menos abonados, ou para aqueles que não podem ou não querem ter viatura particular), passando pela comodidade e pela geração de emprego directo e indirecto.
Isto é válido para o País, e para o Algarve ainda mais. No âmbito de alguns estudos de mobilidade que tive oportunidade de acompanhar vi, repetidamente, entraves ao transporte público na região baseados na diminuta procura, que gera uma ausência de escala capaz de sustentar o negócio. Tudo muito certo, com uns números bonitinhos, mas… baseados na análise da rede existente, que pouco ou nada tem a ver com as necessidades! Quando se pensarem trajectos e horários dos transportes públicos adequados às reais carências de transporte da população algarvia, numa região que funciona com base em complementaridades (interurbanas, Barlavento/Sotavento, interior/litoral), e em que o emprego escasseia, pelo que frequentemente é necessário procurá-lo fora da localidade ou até concelho de residência, talvez a oferta vá ao encontro da procura. De igual forma, no dia em que os turistas puderem recorrer a transportes públicos sem que para tal andem perdidos e a ser conduzidos para locais que não lhes interessam, talvez tenhamos menos carritos de aluguer hesitantes e atrapalhados a estorvar, aos solavancos, a circulação estival. E não basta que esta revisão se passe apenas dentro de cada sector de transporte, mas também ao nível da articulação intermodal. É ainda preciso que se olhe para as infra-estruturas e material circulante, onde a reformulação da ferrovia da Linha do Algarve – que leva um ligeiro atraso de cerca de 20 anos – salta à vista. Esse, em particular, é um desafio tremendo (e uma oportunidade única), pois implicará não apenas com esta infra-estrutura específica, mas com o ordenamento territorial e com o próprio desenho urbano das localidades que atravessa (por exemplo, Faro devia abraçar tal objectivo, percebendo finalmente que há muitas cidades vibrantes e profundamente ligadas às suas frentes ribeirinhas, mesmo com linhas ferroviárias integradas). Apesar de dolorosa, como qualquer dor de crescimento, esta é uma empresa estratégica e regionalmente estruturante, que vale a pena empreender, merecendo a reivindicação de investimento nacional, a uma só voz pelos 16 Municípios algarvios. Só sangue de avestruz pode levar quem quer que seja a ignorar tudo isto, e persistir, única e exclusivamente, no transporte individual, já que o granel que diante de nós se coloca é esmagador. Entre uma EN 125 que é, efectivamente (mesmo sem a trapalhada das obras actualmente em curso), uma rua intercalada com pedaços de estrada mal-amanhada, que se esgueira por entre um tecido vítima de alguma da pior conurbação a que este País já assistiu, e uma Via do Infante que foi praticamente subtraída às opções quotidianas dos algarvios (a Galp não paga viagens a toda a gente e, assim sendo, uma das vias rápidas proporcionalmente mais caras do País, embora tão a jeito, não é para todos), não há opções válidas. Some-se agora o simpático fenómeno de multiplicação dos pães, que se dá ao nível da população do Algarve ali mais ou menos a partir de Junho/Julho, passando os cerca de 500 mil plácidos mamíferos residentes para números na casa de 1,5 a 2 milhões de veraneantes efervescentes… e temos uma definição enciclopédica de caos. Para além de tudo isto, no mundo contemporâneo, altamente exigente em termos de agilidade de processos e de localização, a mobilidade social passa também pela mobilidade física, pelo que o papel dos transportes públicos é hoje, talvez mais do que em qualquer outro período, nevrálgico para a criação de uma igualdade de condições de acesso às oportunidades de ingresso e progresso no mercado de trabalho. Olhando já para a intenção apresentada pelo Governo de, no âmbito da fiscalidade verde, permitir deduzir à colecta em sede de IRS as despesas com transportes públicos, passa também a ser uma questão de equidade fiscal. Porque no Algarve apenas nos é dado o privilégio de pagar impostos e contribuir para os sistemas de transportes públicos do resto do País e respectivos apoios a tarifas sociais, não tendo, no verso da medalha, a oportunidade de usufruir de tais benesses e, subsequentemente, de deduzir tais despesas na sempre crescente carga fiscal. Nas palavras do grande filósofo Scolari: e o burro (neste caso, de carga) será o Algarve?
2 Comments
Nuno Beja
14/10/2016 14:04:30
O Algarve está cheio de estudos sobre mobilidade, aliás, de dois em dois anos acho que se faz um estudo deste género...Mas os transportes públicos no Algarve continuam a ser do século passado. Não há procura, logo não há oferta que aguente, logo não há procura...a andamos nisto há décadas. Não há uma autoridade regional de transportes, não capacidade reivindicativa junto de Lisboa e quem poderia, de facto, mudar este estado de coisas tem carro e por isso não precisa de transportes públicos. Tal como na saúde, nos transportes públicos só me ocorrem am palavram tristeza e vergonha
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Gonçalo Duarte Gomes
14/10/2016 14:12:09
De facto, Nuno, é justamente o peso reivindicativo aquilo que nos falta.
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