Por Gonçalo Duarte Gomes Foi publicado na passada Quarta-feira o conjunto de legislação que havia sido anunciado em finais de Maio, em que se inclui o Programa de Transformação da Paisagem (disponível aqui) e o Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem das Serras de Monchique e Silves (disponível aqui), que constitui um desenvolvimento operacional do primeiro. Sobre o instrumento previsto para as Serras de Monchique e de Silves houve já oportunidade de tecer algumas considerações (disponíveis aqui), uma vez que sempre foram sendo anunciadas algumas das suas linhas de força. Sobrava a curiosidade relativamente ao Programa que enquadra o programa. Entre aspectos interessantes, e outros nem tanto, prevalece uma certa desilusão. Um nome tão ambicioso, que fazia crer estarmos perante a nova visão para a paisagem nacional no seu todo, que a Comissão Técnica Independente preconizava como fundamental na ressaca dos fogos de 2017... resultou “apenas” num conjunto de intenções para áreas ardidas ou em vias de arder.
Compreende-se que os recursos são limitados, e que tem que se começar por algum lado, naturalmente pelos pontos onde o risco é mais iminente, mas parece haver um entendimento algo afunilado da paisagem, reduzida ao critério da perigosidade, que se poderá revelar principalmente em termos de conectividade ecológica e de dinâmicas sócio-económicas. Este entendimento não se traduz conceptualmente, já que alguns dos valores nucleares da paisagem, como aptidão, sistemas biofísicos fundamentais, mosaico multifuncional, estruturas sociais e culturais numa perspectiva intergeracional, serviços de ecossistema, etc., estão lá plasmados – de resto, os preâmbulos dos diplomas legais portugueses, pelo menos na área do ambiente, ordenamento do território e afins, contêm alguma da melhor prosa que existe sobre os temas em apreço, sendo pior... o resto. Mas operacionalmente, perspectiva-se um foco demasiado estreito em aspectos sectoriais, em prejuízo de uma visão mais abrangente e integradora. Recairá grande exigência sobre o exercício de gestão e sobre a sensibilidade dos seus actores, para o evitar. Para esse exercício, não aparenta contribuir a pouco clara integração das novas figuras de intervenção propostas nas existentes no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (IGT), que são aqueles legalmente vinculativos para a tomada de decisões. No limite, poderão verificar-se conflitos incapacitantes entre diplomas – o que é coisa comum em Portugal, porque o frenesim legislativo da Assembleia muita vezes dispensa-se do necessário trabalho de articulação... Igualmente, o surgimento de novas entidades responsáveis pela administração e gestão das Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (uma das tais figuras) não deixa de ser problemático. Porque cada vez que o Governo – não este, qualquer um, genericamente – cria uma nova entidade de gestão do nada, está a passar um atestado de inutilidade às que anteriormente detinham essa competência, ou então um atestado à incapacidade própria de dotar as estruturas existentes com os recursos e meios que permitissem desempenhar mais eficazmente essa competência. No caso, salta logo à vista verificar-se que a dotação orçamental em Fundo Ambiental para financiamento à constituição e funcionamento dessas novas entidades seja de 4.000.000 € (2020-2022), enquanto que, por exemplo, a dotação nesse mesmo Fundo Ambiental, para o programa “Condomínio de Aldeia” seja de... 2.700.000 € (2020-2022). Já que dele falamos, o programa “Condomínio de Aldeia” é um caso curioso. Trata-se de um programa criado para fazer cumprir o que a lei já obriga que se cumpra: a limpeza de material combustível na periferia dos núcleos urbanos. Para o efeito, o Estado propõe-se intervir nas comunidades abrangidas pelas áreas de intervenção deste programa, tentando apoiar a sua organização, operando como mediador entre particulares, na tentativa de alcançar entendimentos de escala que viabilizem económica e operacionalmente as limpezas obrigatórias por lei, por exemplo – e muito bem – através da recuperação dos mosaicos agrícolas periféricos tradicionais na orla das urbes, que funcionam como linha de defesa, ainda para mais produtiva. Ora bem, o Estado servir como árbitro é coisa fundamental. Não pode é cair na tentação de se substituir à comunidade que pretende mediar, já que a História – a nossa, com a Reforma Agrária, e a Universal, com, por exemplo, o Grande Salto de Mao – mostra que desenhos colectivistas impostos às comunidades redundam em grande barraca, quando não em coisa pior. Novamente, que não tremam as mãos aos gestores destes processos. Estas questões não invalidam méritos globais à ideia deste programa. E é também certo que apenas quando se começar a labutar no terreno, como vai acontecer desde já em Silves e Monchique, se poderão perceber as reais virtudes e defeitos das ideias, e se poderá trabalhar para as melhorar. No entanto, face a experiências passadas, anunciam-se fragilidades que, invariavelmente, se traduzem em dificuldades na altura de operacionalizar. Porque as estruturas são confusas, porque as competências se sobrepõem – acabando quase sempre num limbo incapacitante –, porque os tempos da Adminsitração não são os tempos da economia, porque o dinheiro para as coisas mais importantes escasseia, e porque não resulta claro nem processo, nem, afinal, objectivo. Isto leva-nos a outro problema. A Administração Pública é a entidade (dividida em várias instituições e níveis de actuação) em que a sociedade deposita poderes para gerir o Estado, que por sua vez resulta de um contrato social comummente aceite por todos nós, como forma mais eficaz de regular as nossas relações, sem andar tudo à batatada – nesta altura Rousseau e Hobbes estão às voltas no túmulo por tão grotesca simplificação, mas é o que temos. Em Portugal, e embora até constitucionalmente se estipule que é a boa-fé o princípio que deve reger as acções da Administração e particulares, mantendo mutuamente comportamentos ou condutas que expressem lealdade, rectidão, honestidade e seriedade, a verdade é que a relação é complicada. A Administração não confia no particular – a malandrice é traço identitário da alma mediterrânica que nos preenche – nem em si ou nos seus agentes – enreda-se muitas vezes em mecanismos de controlo que são apenas armadilhas paralisantes. O particular não confia na Administração – porque a vê distante e refém dos interesses particulares dos partidos e da teia que gerem, servindo-se dos que devia servir. Vai daí, o Estado legisla e regulamenta cada vez mais furiosa e arbitrariamente (quanto mais detalhada e intrusivamente, pior, diga-se) na tentativa de cercar o particular, e o particular mais empenhada e afincadamente tenta fugir (cavando a sua parte do fosso que a todos prejudica) por não se rever na gestão, ou falta dela. Isto representa um falhanço democrático e do País no todo do seu projecto enquanto tal. Que se reflecte nas nossas paisagens e na esquizofrenia que tantas vezes as marca. São o reflexo do que somos enquanto sociedade, nada mais. Planos como o que agora arranca em Silves e Monchique serão decisivos para quebrar este ciclo vicioso, e para demonstrar que o Estado e os seus constituintes são capazes, em conjunto, sinergia e parceria, de realizar e de implementar dinâmicas positivas, recuperando e revitalizando paisagens caídas em profundo desequilíbrio. Num processo que, mais do que burocrático ou administrativo, deve ser encarado como vivo, social, humano. Porque as pessoas são ingredientes fundamentais das nossas paisagens. Em equilíbrio dinâmico com o seu meio, numa relação também ela de boa-fé. Se assim não for, começamos a ficar sem argumentos para ter esperança. Para já, mantenhamo-la, mas com consciência. E disponibilidade para ajudar.
1 Comment
Miguel
26/6/2020 12:51:35
"O Estado legisla e regulamenta cada vez mais furiosa e arbitrariamente (quanto mais detalhada e intrusivamente, pior, diga-se) na tentativa de cercar o particular, e o particular mais empenhada e afincadamente tenta fugir (cavando a sua parte do fosso que a todos prejudica) por não se rever na gestão, ou falta dela.
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