Por Anabela Afonso «[…]A cultura é qualquer coisa de extremamente elitista, e Goethe diz: “A verdade pertence a muito poucos.” Verifica-se que, neste planeta, noventa por cento dos seres humanos preferem (e estão no seu pleno direito) a televisão mais idiota, a lotaria, a Volta a França, o futebol, o bingo a Ésquilo e a Platão. Durante toda a vida esperamos estar enganados e mudar esta percentagem por meio do ensino, da disseminação dos museus – o sonho de Malraux – as casas de cultura, mas não! Mas não! O animal humano é muito preguiçoso, provavelmente muito primitivo nos seus gostos, ao passo que a cultura é exigente, é cruel, por força do trabalho que reclama. Aprender uma língua, aprender a resolver uma função elíptica, não é nada divertido. São coisas que só se aprendem com o suor da alma.[...]» George Steiner Na sexta-feira passada juntaram-se, ao final do dia, uma mão cheia de pessoas, em torno do tema Democracia e Participação. Éramos poucos, sem grande surpresa. O assunto não tem, pelos vistos, suficiente sex apeal, e apesar de um dos intervenientes ser uma "figura nacional", não é já uma presença constante nas nossas televisões, e todos sabemos que o que (ou quem) não está na televisão não existe. Quer dizer, já não é bem assim, porque parece que agora o que está a dar é estar nas redes sociais, mais do que na televisão, mas isso seria tema para outra crónica. Também sabemos que a uma sexta-feira à noite a concorrência é grande e não faltam espetáculos, eventos, encontros, palestras, e tantas outras coisas para fazer por todo o Algarve. E isso é bom. Mas sortudos daqueles que, na sexta, se deram ao trabalho de ir até ao auditório da Escola Secundária João de Deus, em Faro, sobretudo para ouvir a intervenção do Professor António Branco. Na semana em que foi notícia o caso em que o rápido disseminar de um boato pelas redes de Whatsapp levou uma pequena multidão a tirar um jovem de 21 anos e o seu tio de 43 do interior de uma esquadra (ao que parece tinham sido detidos por causar distúrbios), arrastá-los para a rua, regá-los com gasolina e pegar-lhes fogo enquanto outros tanto garantiam, de telemóvel em punho, que o mundo podia assistir a tudo com um sempre oportuno "direto" para as redes sociais, eu precisava de ouvir alguém que me fizesse acreditar que, apesar de todos os sinais, ainda há quem não se deixe ir na onda da superficialidade, do imediatismo, da ligeireza, e do juízo fácil que ao mínimo sinal, mesmo que inventado, nos faz condenar o outro e fazer justiça pelas próprias mãos. O caso referido acima aconteceu no México, um país com índices de violência alarmantes e onde acredito que seja cada vez mais difícil acreditar nas instituições. Mas não sejamos ingénuos, não somos assim tão diferentes dos mexicanos. Aliás, não somos, também, assim tão diferentes dos americanos, dos ingleses, dos brasileiros, dos húngaros ou dos italianos. E o que estamos a observar em alguns destes países, onde através de processos democráticos perfeitamente legítimos são eleitos responsáveis com discursos eles próprios incendiários, não é algo que esteja assim tão distante de nós. As redes sociais não têm fronteiras e contêm em si material altamente combustível que não reconhece línguas ou geografias e que facilmente se propagará por todo o lado, sem haver razão nenhuma para acreditar que Portugal e o Algarve estão a salvo. Na sua intervenção António Branco chamou a atenção para alguns dos fenómenos que também nos deviam deixar alerta na nossa própria casa, como os «faladores intensivos» e o «clubismo político» que, não explicando tudo, dão um contributo importante para que também por cá se acredite cada vez menos nas instituições e nos escolhidos para nos representarem, e comece a disseminar-se de forma ostensiva a crença de que os políticos “são todos iguais”. E aqui, não posso deixar de concordar com António Branco quando diz: a sensação mais mortal para a Democracia exprime-se através da frase: «são todos iguais.». Mortal porque simplifica um processo que é por natureza complexo; porque nos manipula levando-nos a crer que os nossos problemas enquanto comunidade se resolvem com soluções fáceis; e porque faz a coisa mais perigosa de todas que é encontrar um “culpado” que rapidamente se tornará um alvo a abater. Ora a Democracia é tudo menos um processo fácil e de resultados imediatos e requer muito trabalho da nossa parte, como bem responde George Steiner quando, numa entrevista conduzida por Antoine Spire em 1977, é questionado sobre a dualidade entre superficialidade e profundidade na resistência aos fantasmas de destruição e aniquilação que poderão conduzir-nos à idade animal e à barbárie: […]A cultura é qualquer coisa de extremamente elitista, e Goethe diz: “A verdade pertence a muito poucos.” Verifica-se que, neste planeta, noventa por cento dos seres humanos preferem (e estão no seu pleno direito) a televisão mais idiota, a lotaria, a Volta a França, o futebol, o bingo a Ésquilo e a Platão. Durante toda a vida esperamos estar enganados e mudar esta percentagem por meio do ensino, da disseminação dos museus – o sonho de Malraux – as casas de cultura, mas não! Mas não! O animal humano é muito preguiçoso, provavelmente muito primitivo nos seus gostos, ao passo que a cultura é exigente, é cruel, por força do trabalho que reclama. Aprender uma língua, aprender a resolver uma função elíptica, não é nada divertido. São coisas que só se aprendem com o suor da alma. Arrisco o crime de roubar esta ideia a Steiner - que passados mais de 40 anos se mantém tão atual - e adaptá-la para: Aprender a Democracia não é nada divertido. É uma coisa que só se aprende com o suor da Alma! Em tempos da ditadura do entretenimento imediato e do soundbite clicável, resta saber quem está disponível para o trabalho… NOTA: O conjunto de entrevistas de Anoine Spire a George Steiner está publicado em livro, com o título George Steiner, Atoine Spire, Barbárie da Inorância, editora Fim de Século, 2004.
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