Por Gonçalo Duarte Gomes Na entrada do Inferno, tal como Dante o concebeu na sua “Divina Comédia”, lia-se, “Deixai toda a esperança, vós que entrais.” Pelo andar da carruagem, também o Algarve terá que afixar uma tabuleta qualquer, avisando quem nos visita para a pilhagem de que vai ser alvo, ao estilo “Deixai todo o carcanhol, pertences e títulos cotados em bolsa, vós que turistais!”. Porque no Algarve, em vez de se taxar, atancha-se. Vem isto a propósito da discussão que foi inaugurada aqui no Lugar ao Sul pelo Luís e que foi continuada pelo Bruno, acerca da taxa turística. Já diz o provérbio, quando bloga um português, blogam logo dois ou três. Eis-me então terceiro. O Bruno já escreveu isto, e sublinho, por não ser demais: quando se fala de uma hipotética taxa turística, estamos na verdade a falar de um imposto ou, no limite, de um sucedâneo de derrama municipal (isolada ou regionalmente concertada). Pode parecer uma mariquice semântica, porque afinal o que interessa é sacar o graveto aos pategos dos turistas. No entanto, se tirarmos o palito do canto da boca e abotoarmos a camisa acima do umbigo, libertando-nos do espírito de gajo de Alfama, percebemos que faz toda a diferença pois determina o contexto e objectivo da cobrança, o que é, por sua vez, determinante para o destino a dar à colecta obtida. Sabemos que a generosa máquina fiscal portuguesa é perfeccionista. E que por isso tributa basicamente tudo o que mexe. E o que não mexe também. Se ao menos coisas como corrupção moral, incompetência e incúria pagassem imposto, não apenas resolvíamos o défice e a dívida, como podíamos acabar com a fome em África via marmitas com estrelas Michelin. E ainda tínhamos troco. Filantropia à parte, a lógica da aplicação da receita fiscal portuguesa será porventura das mais descabidas da Europa. Porque torramos o dinheiro em empreendimentos ruinosos, despesas correntes paquidérmicas e no pagamento das dívidas em que somos viciados, e não em investimentos estratégicos de desenvolvimento ou de materialização de uma qualquer estratégia, conceito que é completamente estranho a Portugal, e ao Algarve ainda mais. Tradicionalmente (e agora pensando em países sérios), as reformas fiscais ambientais pretendem alcançar a relocalização da incidência fiscal (ou seja, onde se vai buscar dinheiro) e não o seu aumento ou alargamento. É portanto uma medida que pretende, normal e tendencialmente, aliviar a carga fiscal sobre os custos do trabalho (IRS, IRC, e todo o obsceno rol de impostos indirectos, acessórios e encapotados), incentivando a geração de emprego, ao mesmo tempo que se responsabiliza o desempenho ambiental de empresas e dos cidadãos. Em 2014 tentou-se algo assim em Portugal, que redundou numa fraude, pois apenas se preocupou em cobrar, e não em investir o cobrado. Porque a ideia é que parte das receitas geradas por esta reorientação fiscal seja reinvestida na designada eco-inovação, nomeadamente em sistemas de melhoramento do desempenho ambiental da Economia, para além de servirem para reforçar o compromisso com metas ambientais já definidas, seja ao nível de resíduos, tratamento de águas, emissões atmosféricas ou, porque não, ordenamento do território. Este último aspecto é normalmente ignorado da discussão fiscal, o que, para regiões como a nossa, é criminoso. O Algarve encontra-se numa primeiríssima linha de fogo das ocorrências potenciadas pelas alterações climáticas. O regime climatérico mediterrânico que nos rege, propenso por exemplo a episódios extremos de precipitação ou, no extremo oposto, secas prolongadas, se ampliado por tal fenómeno, é catástrofe iminente. Mais, num quadro de conflito gritante entre alterações climáticas e concentração massiva junto à costa (muitas vezes em contextos de elevada vulnerabilidade, como nas ilhas-barreira da Ria Formosa) aconselhava o bom senso que se equacionasse numa maior responsabilização de todos. Não apenas das entidades tutelares destas matérias, mas também daqueles que alegre e irresponsavelmente esquecem os seus deveres (concretamente o de auto-protecção) e apenas reclamam direitos – principalmente quando se vêem aflitos, e subitamente o usufruto privado se torna em encargo público. Falar de ordenamento do território no Algarve, ou falta dele, é falar muito de turismo, ou pelo menos de especulação imobiliária e construção civil sob tal bandeira. Há muito decretado como a vocação única do Algarve, em seu nome tudo tem sido permitido, havendo sempre um PIN amigo, uma excepção à Reserva Ecológica Nacional ou ao que seja, uma interpretação jurídica manhosa à mão de semear – o mantra do Estado Novo aplicado ao ex-libris do novo Estado: tudo pelo turismo, nada contra o turismo. A destruição do litoral, o alienar da produção, o abater do intelecto, a implantação de um modelo autofágico de exploração dos recursos naturais até à exaustão, a corrupção dos sistemas e estruturas biofísicas vasculares da paisagem, tudo perfeitamente desligado de qualquer lógica de sustentabilidade ou mero bom senso. Ao ponto da própria AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve ter já encomendado um Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas. É cedo para saber se é mais um caso de estratégias delineadas para enquadrar programas que servem de base a planos que serão operacionalizados através de eixos de intervenção consubstanciados em medidas orientadoras de acções, que acabam todas na gaveta, ou se é para levar a sério. É que leis e planos já temos muitos. Vontade e coragem é que escasseiam... Ainda assim, a Câmara Municipal de Loulé, na sequência do seminário Adapt.Local.17, decidiu avançar com a aplicação, a partir de 2019, de uma “taxa turística” – ei-la que surje – de 1 euro por cada dormida. A verba resultante destina-se a constituir um fundo para a sustentabilidade ambiental e turística e para fazer face às manifestações climáticas extremas, a aplicar por exemplo no enchimento de praias do Concelho. Temos então uma tributação sectorial adicional que implica directamente turismo e delapidação dos recursos e valores naturais, desequilíbrios ecológicos e potenciação de vulnerabilidades dentro do quadro das alterações climáticas. Por outro lado, reconhece que a tributação normal que sobre o sector incide (IVA sobre o consumo, IRC das empresas e IRS das pessoas) não angaria proveitos suficientes ou justos o suficiente para cobrir as externalidades originadas. Chegámos então ao ponto em que, quer lhe chamemos taxa, imposto ou Gualter, a figura desta tributação sectorial adicional tem implicações estratégicas e conceptuais no desenhar do modelo territorial e de futuro, no projecto* da região do Algarve. Tributar como imposto encapotado, é apenas converter uma fonte de problemas em fonte de receita, estabelecendo uma dependência potencialmente auto-destrutiva. Além do mais, é proxenetismo fiscal, por simbólica que possa ser a quantia. Tributar efectivamente como taxa, por exemplo considerando o usufruto dos serviços ambientais, dos recursos ecossistémicos ou do oxigénio algarvio, embora conceptualmente irrepreensível, na prática é como ver a Cicciolina a pregar sobre as virtudes da virgindade. Como explicar aos turistas taxados, e ao sector como um todo, que pagam para ajudar a adaptar e mitigar, quando o aval que a Administração continua a dar através do licenciamento de resorts como o previsto para a Praia Grande e outras novas ocupações um pouco por todo o litoral do Algarve, passando pelo aumento das culturas de regadio, representa um processo de agravamento e agudização do problema? Bem concebida, numa estratégia de ordenamento territorial e fiscalidade “verde” mais abrangente, tais tributações podem ser oportunidades de reforço da coesão social regional e de promoção de parâmetros de sustentabilidade, em que a Economia (gestão da casa global) procura optimizar o seu desempenho em integração com a Ecologia (conhecimento da casa). Mal esgalhada, é mais um passo no colocar uma etiqueta de venda nos recursos e interesses estratégicos futuros, aceitando correr o risco de os sacrificar, desde que pelo preço certo. *Anteontem, dia 29 de Novembro, a editora Sul, Sol e Sal brindou a região com um painel de excelência, reunido no emblemático Liceu de Faro e onde se destacava o insigne Professor Adriano Moreira, para discutir Portugal, o Algarve e o Futuro. Dessa sessão resultou uma conclusão unânime por parte dos oradores, ecoando o que há muito se clama: o Algarve precisa de projecto enquanto região, precisa de ousadia, de rasgo, precisa de ambição e elevação. Os nossos decisores desconhecem-no por completo, pois numa eloquente e generalizada omissão, não esteve presente um único dos 16 Presidentes de Câmara Municipal do Algarve. Arrisco dizer que não esteve presente um único Presidente de Assembleia Municipal. Vi pouquíssimos responsáveis regionais de tutela. Vi uma nódoa difícil de lavar para a suposta elite algarvia. Não quererão saber do futuro? Não quererão saber do Algarve? De ambos? Ou pensarão saber já tudo? Dia da Restauração da Independência!
Se os Quarenta Conjurados que a 1 de Dezembro de 1640 lançaram mãos à obra para pôr fim ao jugo espanhol sobre Portugal hoje regressassem, não sei se encontrariam janelas suficientes no Terreiro do Paço para defenestrar os traidores, tal não é a proliferação de Miguéis Vasconcelos... Viva Portugal.
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