Por Gonçalo Duarte Gomes Provando que não há fome que não dê em fartura, o S. Pedro, farto de nos ver ressequidos e abandonados a uma gestão fantasiosa dos recursos hídricos, resolveu abonar o Algarve com chuva em abundância nestas últimas semanas, fazendo então cair sobre a região esse tão necessário e esperado néctar de vida que é a água. Isso e carros, vidros, chapas, sinais de trânsito, pedras, árvores, gado e tudo o mais a que os temporais que acompanham – e parece que vão continuar a acompanhar – têm conseguido “deitar mão”. Ou seja, depois de uma seca extrema (que embora mais molhada não está ainda resolvida), vemo-nos a braços, acto contínuo, com tempestades não menos extremas. Já será caso para dizer que o tempo ‘tá má variade c’um chalavar de caranguejo? Mó. Não poucas vezes na vida, e nas mais variadas circunstâncias, damos por nós a dizer que algo incha, desincha e passa. A linha costeira é disso um exemplo paradigmático. Em vez de uma linha estática, que se desenha sobre um papel, e junto à qual vamos jogando uma espécie de jogo do Monopólio, precisamente com a mesma sofreguidão de açambarcar tudo a eito, esta é uma linha mutável, que vai demonstrando a sua elasticidade e plasticidade ao longo do tempo, obedecendo a ciclos de recuo e avanço, determinados por um conjunto mais vasto de dinâmicas biofísicas. Ora, escrever direito em linhas tortas é sabido ser coisa que não é para todos… Resumindo e simplificando uma longa história, na azáfama daquilo a que se convencionou chamar “progresso” (e seria bom que um dia destes parássemos para falar sobre isso) conseguimos influenciar alguns aspectos dessas dinâmicas (represamos rios cortando o fluxo de sedimentos que alimenta a costa, construímos esporões e molhes que alteram localmente as correntes marítimas e os respectivos processos de erosão, edificamos em arribas e dunas que ficam assim estruturalmente fragilizadas e vulneráveis, entre muitas outras tropelias) mas sem nunca as controlar. Isto ao mesmo tempo que nos fomos amontoando na babuja das ondas, colectivamente desmemoriados de uma aprendizagem antiga que havia entranhado nos hábitos de ocupação do espaço uma respeitosa distância relativamente ao mar, excepto no que não podia ser noutro local ou de outra maneira, ou com ocupações efémeras e facilmente substituíveis quando o mar as reclamasse. O problema da compatibilização dos usos com a aptidão paisagística é universal e coloca-se em qualquer lado. No entanto, e porque é na orla costeira, ponto de encontro de três forças matriciais do planeta (água, terra e ar), que os elementos se manifestam com maior veemência e violência, num confronto, puro e duro, das forças que moldam a face do planeta, o problema ganha maior dimensão devido ao risco extremo para pessoas e bens. Mais ainda se considerarmos o ciclo de alterações climáticas que atravessamos e que promove, pelo menos de acordo com as tendências identificáveis, um acentuar da velocidade – ao ponto de serem identificáveis à escala das nossas efémeras vidas – e intensidade dos fenómenos climatéricos extremos e com que os ciclos de mutação dos padrões climáticos e biofísicos associados se processam e sucedem. Porque há quem discorde, a discussão em torno do assim ou assado, do por isto ou por aquilo, é apaixonante. No entanto, a avaliação e ponderação dos impactos das alterações climáticas que devemos fazer é sempre no quadro da satisfação que o resultado da seguinte equação gera em nós: Não se trata aqui de visões apocalípticas ou catastrofismo, à excepção talvez do “catastrofismo emancipatório” de Ulrich Beck. Necessita-se, isso sim, de preparação e capacidade de resposta para alterações que são notórias. A AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve dá mostras de querer trabalhar nesse sentido, e encontra-se a elaborar o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas (PIAAC). Nesse âmbito, decorre na próxima semana uma sessão de trabalho para auscultação dos actores-chave da região sobre aquelas que diagnosticam como as principais vulnerabilidades do Algarve nesta matéria. No entanto, tão ou mais importante que o diagnóstico, será perceber o que se pretende efectivamente obter com mais um plano, mais uma estratégia, mais um monte de papel. Se é que se pretende obter algo. É que até agora a adaptação às alterações climáticas não tem passado de um desígnio de papel, abraçado apenas no discurso, sem qualquer implicação de mudança efectiva ao nível das práticas de ordenamento territorial ou transformação social. No fundo, é apenas um pregão, gritado aos quatro ventos, pese embora não haja cobras suficientes para que se venda tanta da sua banha. Basta ver as declarações de responsáveis políticos na ressaca do atropelamento de que foi alvo a Península do Ancão e a visão que (ainda) traduzem, pedindo a repetição de erros passados e a permanência na carreira de tiro, em vez de se assumir a necessidade de adaptar, repensar os modelos de ocupação e, no limite, preparar e iniciar um processo de retirada – a este propósito seria interessante saber em que fundas gavetas param os diversos Planos de Pormenor que já foram desenvolvidos para aquela zona… Estivéssemos nós noutro ponto de maturidade relativamente a este tema e à gestão que implica, e não teria sido autorizada uma alteração de uso, obras de beneficiação e licenciada uma unidade hoteleira em primeira linha de risco, mais que não fosse, no contexto de medidas preventivas. Portanto, ou há um compromisso político efectivo com este tema, que obrigatoriamente gere mudança – e que vai, sem dúvida nenhuma, custar votos e gerar uma vulnerabilidade extrema ao populismo e demagogia que, de resto, rodeia já o tema das ocupações ilegais nas ilhas-barreira – ou vamos apenas andar a brincar às estratégias. Porque conhecimento há muito, ferramentas e capacidade também. Só não temos vontade. Fazendo fé na mitologia grega, houve em tempos um tipo chamado Sísifo, que tinha a mania (e algum proveito) que era esperto e que, segundo consta, terá enganado a Morte por mais do que uma vez, aldrabando de caminho mais uma série de deuses, incluindo o próprio Zeus – apesar de tão impressionante currículo, não consta que fosse português. No entanto, até um tão hábil chico-esperto acabou por se dar mal, e como recompensa de tanta e tão ousada malandragem, foi-lhe atribuída a simpática tarefa de empurrar eternamente um enorme pedregulho até ao topo de uma montanha, apenas para, sempre que perto do cume, misteriosas e invisíveis forças a fazerem resvalar encosta abaixo, voltando tudo à estaca zero. Se não mudarmos a mentalidade, e continuarmos a persistir no que entretanto se tornou um erro, seremos nós próprios como Sísifo, e a ocupação de certas áreas do litoral o nosso calhau. Com a ligeiríssima diferença da nossa tarefa um dia terminar, não porque a completemos mas antes por ficarmos sem pedra para empurrar ou ladeira para trepar…
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