Por Gonçalo Duarte Gomes Os opostos da decência nacional tiveram recentemente um bipolar hot date. Um ditador foi canonizado (Santo Ditador, ou Ditador Santo?) na praça pública, num exercício de obstinado esquecimento, com o alto patrocínio da Assembleia da República, e uma das mais importantes efemérides nacionais voltou a ter o seu lugar de destaque através da reposição do respectivo feriado, pela "mão" dessa mesma casa. Pelo meio, está a chegar o Natal! A morte de Fidel Castro, na semana passada, pôs a cru a inaceitável fragilidade do espírito democrático e do humanismo em Portugal. Caminhamos para o completar de 43 anos de democracia e liberdade (período mais longo do que os 41 anos da Constituição de 1933, do Estado Novo) no nosso País, e mesmo assim os conceitos continuam a escapar-nos. Só assim se explica que o falecimento daquele ditador, que oprimiu liberdades, perseguiu e reprimiu violentamente (e alegadamente mandou assassinar) membros de facções opostas à sua, atentou contra os mais elementares direitos humanos e não hesitou em precipitar o Mundo numa crise nuclear que nos poderia ter apagado a todos do mapa, o tivesse subitamente transformado num paladino dos valores humanistas, um homem bom, generoso, brincalhão e até pobrezinho. Só se esqueceram de referir que também usava botas, não fosse ficar demasiado parecido com uma figura mais familiar… Será muito importante para alguns interesses o suavizar do pêlo cubano, passando-lhe a mão de forma a que “velhos do Restelo” castristas que por lá possam andar se acalmem, e Cuba entre docilmente no modelo de capitalismo agressivo que já lhe está destinado no inevitável processo de abertura social e económica que vai iniciar, não pela morte de Fidel, mas pelo fim do embargo americano. Mas será Portugal um desses interessados, e a ponto de sacrificar o que resta da sua decência? Ainda há pouco tempo se assistiu a uma ampla discussão da fidelização dos clientes, seus moldes e suas perversões. É pena que os clientes da Fidelização não tenham sido submetidos a igual escrutínio. Talvez assim se tivesse evitado a vergonha nacional de assistir à aprovação na Assembleia da República de dois votos de pesar pela morte de um ditador. Franklin Roosevelt terá dito de Somoza, o seu ditador de estimação na Nicarágua: "Pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta!". Neste caso, aparentemente o vermelho lava ainda mais branco. Se tal exercício de erosão da memória é previsível em certas facções fossilizadas, que acrítica e militantemente orientam os seus “valores” consoante o tom cromático da questão, agitando freneticamente os seus punhos no ar, sem olhar a mariquices como eleições livres, a liberdade de expressão e afins, surpreende e chega a chocar a atitude dos restantes. É certo que em democracia todos podem propor tudo, inclusivamente o louvor à sua antítese. Mas, justamente porque é em democracia que vivemos, os valores da liberdade e dos direitos humanos deveriam elevar-se, na voz das forças que os têm no seu ADN, acima da conveniência da sobrevivência de uma geringonça. Do restante espectro político representado nas bancadas da Assembleia, entre ténues focos de resistência e pacato dormitar anestesiado, também pouco se salva. Pelos vistos ninguém explicou aos deputados o que foi o 25 de Abril, e qual o seu objectivo... Talvez este branqueamento, sob forma de prenda (e que rica prenda) à hipocrisia e à falta de verticalidade seja já um prelúdio do Natal que se avizinha a passos largos. Prenda bem melhor foi a reposição do feriado do 1º de Dezembro. Depois da vergonhosa “suspensão” deste feriado (a par de outros) na anterior legislatura, foi um gesto da mais elementar justiça e respeito pela História a recolocação, por parte deste Governo, de uma das nossas mais importantes efemérides num lugar de destaque administrativo (já que o social e histórico nunca perdeu). O único senão é que se os Quarenta Conjurados que nos livraram do jugo espanhol em 1640 cá voltassem, provavelmente não teriam janelas suficientes no Terreiro do Paço para defenestrar traidores, tal não é a proliferação de Miguéis Vasconcelos… Sonhemos com tempos melhores, até porque, justamente, o Natal está a chegar. E o Natal, independentemente de outros significados, variáveis consoante credo e geografia, é isso mesmo: uma altura para sonhar. Com um mundo melhor, mais humano, mais solidário, mais pacífico. No centro desta quadra, estão principalmente para as crianças, que têm esse direito e necessidade, o de poder acreditar que há magia neste mundo. No entanto, cada vez mais se criam “pequenos adultos”, desde cedo mergulhados no cinismo, amargura e desencantamento da vida adulta. Basta ver as excursões de pais com filhos às promoções de brinquedos das grandes superfícies, num exercício mecânico de orçamentado consumismo – mesmo considerando que este será, pelo menos em absoluto, inescapável. Um brinquedo pode e deve ser mais do que um simples valor numa etiqueta, e mais profundo do que uma convenção social que se cumpre desapaixonadamente. Em Faro há o que me parece ser um caso sério de magia, e pela mão de alguém que, quando a vida lhe deu a volta, deu a volta à vida para seguir caminho (pomposamente, empreendedorismo). Falo da Rosa Chock, uma simpática loja de brinquedos, como infelizmente hoje há poucas, e que é na verdade uma oficina em que se podem obter ferramentas para sonhar "à medida". Créditos fotográficos: Everlight, Photos e Companhia, Ana D´Almeida e Tiago Braga O conceito da Inês, arquitecta desta fábrica de ilusões, instalada num clássico espaço comercial da cidade, assenta justamente numa fuga ao massivo e vulgar, apostando antes em peças únicas para decorar e brincar, produzidas por mãos com nome e rosto. Uma humanização mais sustentável do consumismo, se quisermos. Nesta altura em que muitos buscam “aquela prenda especial”, é importante referir exemplos diferentes, que demonstram que há alternativas.
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