Por Gonçalo Duarte Gomes A regionalização está para as aspirações algarvias mais ou menos como aqueles chanatos milagrosos e joelheiras elásticas das televendas estão para os coxos e marrecos: no fundo, no fundo, sabe-se que não serve para nada, mas o desespero é tão grande, que já se está disposto a tentar de tudo. Isto porque, tal como sabemos que calçar umas pantufas – ainda que estilosas e caras para burro, quase parecendo que foram desenvolvidas pela NASA, ali taco a taco com as viagens a Marte – não nos mete a correr a maratona, também sabemos que a regionalização não vai mudar a realidade do Algarve ou resgatar a política, que é, nas palavras do Frei Fernando Ventura, “o exercício mais nobre da cidadania”, do labirinto da partidarite profissional. Mas nem por isso se deixa de sacrificar todos os cordeiros em honra a esse Sétimo Céu administrativo, numa espécie de messiânico Sebastianismo institucional. Hoje até nem é mau dia para crendices, já que é dia santo, de acordo com o calendário laico... E depois, pensando bem, num País que acreditou até em mamografias por satélite – em tempos bem mais divertidos do que estes, note-se – provavelmente estou a ser picuinhas. Desde que esta aventura escrita do Lugar ao Sul teve início, é recorrente assistir a uma reacção, comum para toda e qualquer questão que seja levantada: “isso só se resolve com regionalização!”. Inclusivamente dentro do restante painel de escribas deste espaço há defensores convictos de que é esse o passo de prestidigitação que, por decreto, vai conseguir transfigurar este Algarve, dotando-o, em primeiro lugar, de uma visão regional estrategicamente integrada, acordada e partilhada entre os diferentes agentes e, seguidamente, de capacidade de angariação e execução de fundos para esse efeito. No fundo, mais de quarenta anos de tempo perdido a chafurdar na entropia serão redimidos num segundo místico de publicação de orgânica em Diário da República. Não é que aqui o menino não goste de ilusionismo, mas, por muito que as aparências me encantem a menina dos olhos, há sempre aquela vozinha de fundo que lembra constantemente que, na magia, enquanto prestamos muita atenção à mão direita, convictos de que é ela que tudo faz acontecer, é na verdade a esquerda que está a fazer das suas. Também não é que discorde da ideia de uma maior autonomização administrativa e financeira para a região. Simplesmente parece-me haver formas melhores de o fazer, numa lógica de coesão nacional, da qual o Algarve deve fazer plena parte, contrariando um delirante separatismo marafado que parece animar certas facções da regionalização. O País é ridiculamente pequeno para andar a tentar emular realidades historicamente incomparáveis e paquidermicamente maiores – é o equivalente da conhecida metáfora da canoa que, perdendo uma corrida, substitui remadores por comandantes, supervisores e chefes de supervisores, ficando apenas um operacional. Quando perde novamente, obviamente despede o remador pelo mau desempenho, premeia as chefias pelo esforço e equaciona a substituição da canoa… Desde logo, reafirmo aqui o que escrevi no meu primeiro texto neste Lugar: “a par das Ilhas, é o Algarve a região mais perfeita de Portugal. Faz coincidir a sua delimitação administrativa com a realidade biofísica. É uma realidade una e diversa, desde a mesmerizante Ria Formosa ao “alienígena” gigante de Monchique”. Já Teixeira de Pascoaes o via: E vejo agora o Reino dos Algarves, Esta coerência confere às instituições regionais existentes no actual modelo (Direcções Regionais, por exemplo) uma lógica provavelmente sem paralelo a nível continental, na qual a sua área de jurisdição abrange uma realidade que permite a plena compreensão da quase totalidade dos ciclos e processos do Algarve, naturais e sócio-económicos. Justamente devido a esta perfeita adequação da linha imaginária da região à realidade telúrica, defendo que o Algarve deve ser uma região-piloto, mas de um novo modelo de distribuição, cativação e execução orçamental, mais justo e ilustrativo da geração regional de receitas – seria até um bom tira-teimas para o propalado milagre económico do turismo. A isto deve somar-se obrigatoriamente um maior grau de autonomia decisória em certas áreas (gestão de equipamentos de saúde, respectivos orçamentos e quadros de pessoal, mecanismos de tributação, devidamente adequados às especificidades do tecido empresarial da região e seu mercado de trabalho, organização e exploração de redes, infra-estruturas e equipamentos de transportes, etc.), sempre em articulação com os interesses inter-regionais e nacionais. Não se compreende que haja uma predisposição para feudalizar o País, com a pulverização de interesses intrinsecamente nacionais (conservação da natureza e ordenamento do território à cabeça) através da municipalização de tais competências, mas depois não haja abertura para estudar reforços de tutelas regionais. No fundo, ensaiar uma “regionalização táctica”, na linha da homónima prática de urbanismo (anteriormente conhecida pelo bem mais estimulante título “de guerrilha”), em que se vai experimentando aos poucos, na escala do possível mas nem sempre ideal, numa mudança faseada e assente nos recursos disponíveis, com avaliações periódicas de resultados, em vez das tipicamente portuguesas revoluções megalómanas instantâneas, em jeito de saltos de fé em direcção ao vazio, que, invariavelmente, redundam em cagadas. Há depois a falsa questão da representatividade dos gestores regionais, entendendo alguns que deveriam ser eleitos. Falsa porque, novamente, a regionalização será mais um pasto para a grande máquina ruminante dos partidos. E aí o Algarve tem já alguma história de assistir à paraquedista chegada de aves raras, por exemplo nas listas de legislativas, com candidatos cujo conhecimento da região se esgota no almendrado – feito em Espanha e comprado numa qualquer grande superfície, algures no País – que uma vez comeram. Falsa também porque, na essência, não preciso de votar neles. Tenho, isso sim, que ter a garantia de que são os mais habilitados e capazes para aquelas funções e de que há mecanismos de fiscalização e controlo – mais pergaminhos de competência e menos cartões de filiação, se quiserem. Isso consegue-se com a definição de objectivos regionais concretos e mensuráveis, balizados no tempo. Aliás, se queremos progredir, cada vez mais precisamos é de garantias contra cíclicas danças de cadeiras, que fazem tábua-rasa de tudo o que está para trás, bom ou mau, perpetuamente reinventando a roda em novas cores. Nada de bom advém de uma tal (in)gerência, como demonstra o estado em que estamos. Além do mais, num tempo de viragem para uma democracia cada vez mais participativa, a par de uma gravíssima – e mais do que justificada – quebra de confiança nos eleitos e no que realmente representam, a obsessão com a criação de mais um lote de estruturas e cargos associados é anacrónica, sintomática de vícios apelativos apenas para organizações que, periodicamente, têm necessidade de colocar “quadros” e “clientela” a todo o custo, já que não há almoços grátis. Por isso, regionalismo sem dúvida, regionalização nem por isso.
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