Por Gonçalo Duarte Gomes Sendo esta pandemia, que tão dramaticamente afecta a vida de todos nós, uma anomalia pegada, não deixam de se conseguir destacar, dentro dela, estranhas anormalidades. Foram ontem anunciados pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro os termos gerais do novo Estado de Emergência que vigorará entre 15 de Fevereiro e 1 de Março. Em mais uma arroba de dias de normalidade feita de excepcionalidade, parece que não há grande novidade. Ou até há. Parece que se vai interromper – parcialmente – a singularidade portuguesa de não poderem ser vendidos livros fisicamente (online não houve nunca qualquer condicionante, excepto à recolha em loja das encomendas), regressando estes – no momento de escrita destas linhas, subsistiam dúvidas relativas a exactamente quais – às estantes dos estabelecimentos que estão abertos, concretamente hipermercados. Fazendo fé nas declarações da directora da Federação Europeia de Editores, que representa a portuguesa Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, ao jornal Observador, Portugal “é o único país onde as livrarias não podem vender livros ao postigo enquanto estão encerradas”. Num tempo em que tanto o intelecto como o espírito são postos à prova, por força das dificuldades de saúde pública, sociais e económicas em que nos vemos mergulhados, resulta inacreditável a criação de quaisquer dificuldades no acesso à forma mais elementar de cultura, e autêntico bem essencial e bálsamo mental, que é o livro* – cuja única capacidade de transmissão viral reconhecida é o pensamento. Ou será que o receio é, precisamente, do poder que os livros têm, num tempo em que as pessoas, assim o querendo e podendo, lhes dediquem mais atenção? Há sempre que temer quem teme os livros. No clássico Fahrenheit 451, publicado em 1953, da autoria de Ray Bradbury, a posse de livros é proibida e o pensamento crítico criminoso. Nesse distópico futuro biblioclasta – e que importante é, cada vez mais, atentar nos avisos que as distopias literárias nos lançam – os bombeiros, esquecidos da sua missão humanitária de outros tempos, são agora uma guarda pretoriana, dedicada apenas ao atear de autênticas piras inquisitoriais em que os livros são queimados e, proporcionando-se, os seus donos também. Num momento fulcral da trama, o Capitão Beatty explica ao protagonista Guy Montag o perigo dos livros, associado à angústia e melancolia que se instala na mente das pessoas devido a temas “escorregadios” como filosofia ou sociologia. Numa dissertação apoteótica, Beatty demonstra como o conhecimento é a fonte de todo o sofrimento e de toda a discórdia. E como os livros são armas carregadas de tal munição, prontos a disparar. Atinge assim o corolário da importância da sua erradicação – principalmente os clássicos da literatura – e da alienação das pessoas, entretendo-as com concursos de trivialidades (“quanto milho produziu o estado do Iowa no ano passado”), com conteúdos curtos, imagéticos, facilmente digestíveis, conformados, que entupam os seus cérebros, dando a sensação de um “pensamento” que mais não é do que a ilusão de movimento numa estagnação absoluta. Finalmente, é revelado a Montag como este futuro censório foi criado pelas próprias pessoas, num frenesim de homogeneizar, uniformizar, anular as diferenças, higienizar pensamento e linguagem, pois assim “não há montanhas que as façam acobardar, perante as quais tenham que se julgar”. Assim de repente, algo disto parece familiar? Sendo certo que esta doença já matou muita gente, é fundamental que não condene a sociedade a morte cerebral. Será precisamente mais perto disso que ficaremos, se não soubermos proteger o nosso meio editorial e livreiro. E os livros bem vivos entre nós. * para efeitos desta reflexão contam todos os livros, sem juízos de valor. Sim, até os livros de auto-ajuda, coaching, parentalidade, sentimentalismo bacoco, fetichismo latente e por aí fora.
2 Comments
Nelson Mendes
12/2/2021 13:43:24
É preciso que as pessoas não se cultivem ou leiam papel pintado como o feito pelo Rodrigues dos Santos ou pela Margarida Rebelo Pinto.
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Miguel
13/2/2021 00:00:43
Subscrevo totalmente, o texto, e o comentário do Nelson Mendes, boas leituras!
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