Por Gonçalo Duarte Gomes Semana rica em acontecimentos relevantes para o Algarve, mas que aparentam consolidar a receita alquímica do fado regional: agarrar num tema, mergulhá-lo no limbo, e transformá-lo numa mão cheia de nada. Desde logo, a mobilidade.
Tantos problemas que se apontam a este nível, tantas fragilidades limitantes, e tudo se resolve… com um “click”, disponibilizando no éter cibernáutico toda a informação e facilidades relativas aos transportes colectivos disponíveis no Algarve, através de modernaças plataformas. A intenção, que é boa e vai ao encontro do que é uma gestão contemporânea de redes de transportes, acaba por equivaler, tendo em conta o estado da arte de todo o sistema de transportes colectivos do Algarve, mais ou menos a começar a construir uma casa pelo telhado. Até porque deve dar um site bem ligeirinho… Para além disso, vai estudar-se, vai caracterizar-se, vai diagnosticar-se, vai criar-se uma autoridade para a coisa. No fundo, vai fazer-se o que já antes se fez. De qualquer modo, votos de muito sucesso, e que em breve haja reflexos no terreno. Por outro lado, como circular, se por acaso até chove nesta terra de Sol!? É que poucas (ainda que bem regadas) horas bastaram para, literalmente, mergulhar a baixa de Faro num caos alagadiço. Tratando-se das primeiras chuvas de Outono, pelo menos dignas desse nome, que chegam quase em Novembro (!), esperar-se-ia outra resposta dos sistemas de drenagem. Com as terras secas e os sumidouros supostamente limpos (tempo para o fazer não faltou), não seria expectável um tão calamitoso estado de coisas em tão pouco tempo. Ao que parece, terá sido apontada a atávica propensão subaquática da cidade, muito devido ao seu enquadramento biofísico, potenciada pela maré, como justificação inescapável e inelutável. Se tal perspectiva claramente ajuda a perceber a questão, por outro lado, reforça a necessidade de ter presente essa condição genética (a que acresce o regime torrencial de precipitação que caracteriza o nosso clima) nos momentos de decisão dos responsáveis, concretamente ao nível do ordenamento do território, no que toca a deliberar sobre aumentos de impermeabilização e ocupação dos espaços fundamentais ao funcionamento dos ciclos fundamentais da paisagem. Não apenas em Faro, mas em todo o Algarve. Exemplos de tragédias infelizmente não nos faltam. Estamos alegremente a consolidar colesterol biofísico que vai, um dia destes, resultar num enfarte massivo do sistema. Os ameaços servem de aprendizagem, mas apenas para quem tenha o espírito receptivo a tal processo. Alegremente também, e na mesma linha, segue o processo de degradação do Domínio Público Marítimo (DPM) em terras algarvias – que segura e rapidamente contaminará o resto do País. As ilhas-barreira e o seu processo de ocupação arbitrária arriscam-se a ganhar mais capítulos de “como não fazer” nos compêndios de ordenamento do território. Desta feita, as notícias são de nova paragem do processo de reposição da legalidade no caso das ocupações irregulares do DPM nesta área de extrema sensibilidade. O DPM é um princípio quintessencial de organização comunitária (até comunista, dirão alguns) da nossa sociedade, e que, como me fez notar um estudioso destas matérias, é implantado ainda antes de “O Capital” ser escrito ou de Lenine ter nascido! Com mais de 120 anos, sobrevivente de monarquias, repúblicas anárquicas e ditadura, arrisca-se a cair, em democracia, às mãos dos senadores de uma maioria de esquerda, sob o ensurdecedor silêncio minoritário dos restantes. Et tu, Brute… Uma vitória assinalável para os ocupantes privados do que é de todos e para a política do facto consumado, uma derrota retumbante para o Estado de Direito e a negação de 40 anos de política de ordenamento do território. Numa nota mais positiva do tema, os optimistas dirão que, a partir deste Simplex a martelo, só mesmo quem ande muito distraído se dará ao trabalho de licenciar o que quer que seja. É só fazer, e depois pedir enquadramento no regime aplicado ao autoproclamado enclave ilhéu. Constitucionalmente, não há filhos e enteados... mas só o futuro o dirá. Sendo certo que a razão fica sempre refém dos vencedores, parece que a Sul, ela assiste a quem berra mais alto. Por oposição, é baixinho que é sussurrada a intenção de parar as explorações de hidrocarbonetos no Algarve. Num dia que se pressupunha de comemoração da democracia e da participação pública, pela discussão na Assembleia da República da petição por um Algarve livre de petróleo, ao que parece a única coisa musculada foi a recepção ao Povo que se deslocou à sua Casa constitucional. Quando um parlamento sente que deve temer aqueles perante quem tem que responder, é sinal de muito peso na consciência e de doença profunda na democracia. De resto, desde tímidas recomendações que têm como principal objectivo, ainda que não escrito, a não renovação das concessões de prospecção na região, mas apenas de forma implícita, e não explícita (o principal fica de fora da redacção?), a discussões estéreis acerca da necessidade de tornar obrigatórias as avaliações de impacte ambiental… que já o são, desde que haja vontade (recomenda-se aos curiosos a leitura da alínea c) do nº 3 do Art.º 1º do Decreto-Lei n.º 151-B/2013, de 31 de Outubro), só não houve decisões firmes. Explicitamente implícito fica o banho-maria em que a questão fica mergulhada, agravada pela fresquíssima assinatura do CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement, ou Acordo Económico e Comercial Global), entre a União Europeia e o Canadá. Mas pronto, temos aí um antecipado e estranhamente quente Verão de S. Martinho, se calhar até com condições para praia, que é o que interessa. Afinal para que mais serve o Algarve, senão para distracção? E no recreio, já se sabe, não se trata de coisas sérias.
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