Por Gonçalo Duarte Gomes Sá de Miranda, poeta português nascido no Século XV, escreveu: Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho, O Algarve tem mais ou menos o efeito da lírica senhora a que o poema se reporta, causando desvario e a perda de chão. Concretamente ao nível das intenções imobiliárias associadas ao turismo. Numa semana marcada por mais uma exibição épica de Cristiano Ronaldo, o seu feito de pôr a bola onde põe os olhinhos empalidece face à capacidade que certos patos-bravos demonstraram até hoje de, onde poisaram a vista, assentarem betão em monte. Bem a propósito de olhares, foi ontem lançado na Bolsa de Turismo de Lisboa o já antes anunciado Observatório para o Turismo Sustentável, uma iniciativa da Região de Turismo, em parceria com a Universidade do Algarve e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve.
Preferia um Observatório da Paisagem, mais transversal e não espartilhado ou subjugado pelo Turismo, mas enfim... De entre vários objectivos anunciados para esta ferramenta de suporte à decisão, destaco o de estudar, analisar e monitorizar o desempenho turístico da região em termos da sustentabilidade económica, social e ambiental, bem como o de dotar a RTA de conhecimento detalhado sobre a região para apoio à definição estratégica, numa lógica de assentar a competitividade turística na preservação e a valorização da identidade, património e valores locais. A ideia é boa, principalmente porque pretende ser proactiva e não meramente reactiva. Ao ponto de pretender condicionar o avanço de ideias e projectos. Parece no entanto surgir com umas décadas de atraso, pois boa parte dos erros, se não mesmo a maior, já foi cometida. E a vontade de continuar a cometê-los é imensa. "Progresso" é, ainda e apesar de tudo, betão, gruas no horizonte e asfalto para muita gente. Entretanto, extremos que se tocam têm animado e polarizado a discussão regional em torno de construção de paisagem. Refiro-me, em concreto, à decisão administrativa tomada pelo Município de Loulé, de implementar medidas preventivas, suspendendo parcialmente o seu Plano Director Municipal para inviabilizar a densificação da edificação num sector junto à sua linha costeira, como parte de uma estratégia territorial de adaptação às alterações climáticas. Ao mesmo tempo, em Portimão discute-se a materialização de um plano que viabiliza o avanço da ocupação litoral, com a construção de novas unidades hoteleiras na proximidade de arribas, para valorização de um turismo de qualidade devidamente enquadrado e articulado com as componentes paisagísticas e naturais existentes. O ponto comum entre estas duas opções – não obstante a reserva a que obriga o facto do desfecho de ambas estar ainda em aberto – é a sua arbitrariedade, porque desgarradas de uma integração num âmbito mais abrangente. Em jeito de declaração prévia de interesses, sempre direi que prefiro o "remendo" de ordenamento territorial a mais um mono na costa. Ainda assim, no caso de Loulé, a crítica óbvia prende-se com a adopção de uma medida desta natureza sem que a revisão do respectivo Plano Director Municipal – sede própria para a inscrição estruturada e integrada de uma nova visão de gestão territorial – tenha sido concluída (ainda para mais tendo em conta que tempo é coisa que não faltou). Em Portimão, inverso voluntarismo, com mais unidades hoteleiras a nascerem em zonas ecologicamente sensíveis, fruto apenas da imaginação do promotor, e não de uma necessidade premente. Aliás, no Algarve, um olhar isento rapidamente identificará uma lacuna basilar em termos de ordenamento da paisagem: a total ausência de estratégia ou modelo territorial. Ou melhor, até existe. Mas a fazer o pino. Isto porque o processo de desenho (vá, esboço rabiscado à pressa num guardanapo) do modelo territorial não é baseado nas aptidões e potencialidades da região, mas antes martelado para legitimar dois objectivos pré-estabelecidos: edificação e turismo, num formato em que não se percebe onde acaba a especulação imobiliária e começa a actividade turística propriamente dita. E num paradigma em que aparentemente a edificação permitida é obrigatória, transformando planos em gestão, e não em instrumentos ao serviço da mesma. Na acção política, para além das leis – excepto, obviamente, nos casos de proibições e impedimentos – deve pesar... a política. É por isso que o facto da lei permitir, não obriga. A previsão de possibilidade no campo administrativo abre portas à decisão política, de gestão, em dois sentidos: viabilizar ou inviabilizar, consoante a visão e o modelo territorial a implementar. No Algarve, o hábito do exercício especulativo é tal, que já não funcionamos fora dele, e quando um promotor diz "quero", limitamo-nos a perguntar "onde" e/ou "quando". Mesmo que o promotor seja herdeiro do GES, cujas manigâncias tão bom resultado deram num passado recente, territorial, económica e financeiramente... Nesse capítulo, importa que a sociedade se envolva activamente em tais discussões, ajudando a definir modelos e a construir as políticas de ordenamento. Para tal deve participar, informando-se com factos (esqueçam lá fotomontagens de hotéis gigantescos sobre arribas, quais King Kongs da estupidificação do debate, ainda que bem-intencionada), ponderando interesses particulares com Interesse Público, avaliando capacidades de carga e também, claramente, manifestando estados de alma e desejos emocionais perante as suas paisagens - não somos ainda, felizmente, autómatos! Em tempos as Organizações Não Governamentais de Ambiente foram ajudas preciosas, apoiando a desencriptação das pilhas de informação constantes de estudos, planos e projectos. Mas, com o aumento dramático das solicitações e com o seu progressivo enfraquecimento - muitas evoluíram no sentido de autênticas PME de gestão de projectos/agências de emprego e de carreiras académicas/incubadoras de candidaturas, comercialmente desleais, divergindo da sua matriz cívica, enquanto todas sofreram com a redução do envolvimento de voluntários - o desafio da participação desequilibrou-se ainda mais. Mas continua a ser fundamental. Mas, justiça seja feita, o Algarve até parece estar a dar sinais claros de melhoria, bastando lembrar a “jurisprudência” introduzida pela decisão recente, em Dezembro de 2018, quando a CCDR-Algarve emitiu DIA desfavorável a um loteamento turístico em contexto análogo ao agora discutido em Portimão, fundamentada pela "não integração no padrão de ocupação do solo e do relevante aumento da pressão humana sobre este importante e sensível troço costeiro", de esgotamento da "capacidade de carga das praias, face aos actuais padrões de procura" e "importantes impactes negativos decorrentes da forte intrusão visual que o empreendimento iria provocar numa das zonas do Algarve que preserva os traços originais da paisagem costeira regional, cuja artificialização não se afigura justificada e cuja preservação se impõe" face às actuais "exigências ambientais e climáticas”. Esperemos que este recém-criado Observatório possa contribuir para o acentuar desta tendência.
2 Comments
Miguel
15/3/2019 14:30:49
"Preferia um Observatório da Paisagem, mais transversal e não espartilhado ou subjugado pelo Turismo" - Não teria dito melhor caro Gonçalo, e no dia de hoje em que jovens bem jovens, se levantam com esperança, alguma ingenuidade que é força motriz e sobretudo com muita razão contra a destruição inexorável do planeta, a sua publicação foi certeira no que ao Algarve diz respeito, região que é e será ainda mais afectada pela degradação ambiental.
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Gonçalo Duarte Gomes
15/3/2019 16:11:50
Caro Miguel,
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