Por Gonçalo Duarte Gomes
Foi publicado, como todos os anos acontece, o Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP). Desta feita, o RASARP 2020 (disponível aqui), que compila informação referente ao ano de 2019. E, como todos os anos acontece, o Algarve apresenta alguns indicadores que devem merecer reflexão, numa óptica de minimização do desperdício da água – já que em termos qualitativos, quer a distribuição em alta, quer em baixa, apresentam resultados cada vez melhores.
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Um dos recursos mais importantes do nosso País e da nossa região é o mar. Importa, por isso, aferir de que forma podemos desfrutar dos seus imensos frutos de forma sustentável. É por isso com entusiasmo que me associo ao texto abaixo, assinado pelo Henrique Folhas e o Nicolas Blanc, ambos membros muito activos da Sciaena, uma ONG dedicada a promover a melhoria do ambiente marinho fomentando formas de exploração sustentáveis através da comunicação, educação e intervenção política. A não perder. Luís Coelho Por Henrique Folhas e Nicolas Blanc*
No dia 28 de novembro de 2018, o Município de Silves, a Fundação Oceano Azul, a Universidade do Algarve, através do Centro de Ciências do Mar (CCMAR), a Associação de Pescadores de Armação de Pêra e a Junta de Freguesia de Armação de Pêra, promoveram uma sessão de apresentação, onde estiveram presentes as mais variadas entidades locais e regionais, sobre as bases de um projeto para a criação de uma Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário (AMPIC) na Baía de Armação de Pêra. A necessidade deste projeto está alicerçada num estudo do CCMAR que assenta no reconhecimento do recife da Baía de Armação de Pêra como uma das áreas com maior biodiversidade e produtividade da costa portuguesa. Por Gonçalo Duarte Gomes Há precisamente uma semana, falava (aqui) da possibilidade de uma revolta dos esquecidos. Umas eleições presidenciais volvidas, verificou-se que em vez de insurreição, houve apenas um protesto dos esquecidos. Para evitar desde já o costumeiro discurso de ódio ou os axiomas de superioridade moral, apresento uma declaração de interesses: votei em branco nestas eleições, após ter votado em Marcelo Rebelo de Sousa há 5 anos. Optei pelo voto consciente – não me vendo representado em nenhum dos candidatos – em vez do útil – a proverbial escolha do mal menor – tema que, ainda assim confesso, me suscita sempre grande debate interno. Marcelo Rebelo de Sousa, conforme esperado, ganhou inequivocamente, à primeira volta, e com reforço de votação (venceu em todos os concelhos do País), as eleições presidenciais. A vitória da personificação da moderação – muitas vezes para lá do aceitável – e do bloco central representa, acima de qualquer dúvida, o prevalecer da normalidade democrática. Mais ainda quando, em segundo lugar, ficou uma candidata cujo lastro político é o de um envolvimento profundo nas dinâmicas e representações partidárias de uma estrutura responsável por cerca de 70% do tempo de governação em democracia. Ambos os candidatos agregaram praticamente ¾ dos votos depositados em urna, demonstrando a solidez do status quo político. Não fosse a brutal abstenção, poder-se-ia assim dizer que o nosso sistema político está de muito boa saúde. Mas nem é esse pequeno grande pormenor (que nesta eleição teve várias condicionantes extraordinárias) o que concentra as análises desta ressaca eleitoral. André Ventura, candidato populista, terceiro classificado na geral, ficou em segundo lugar em 11 (ou 12) dos 18 distritos nacionais, sendo Faro um deles. Veja-se este mapa ilustrativo da votação de André Ventura no território continental: Agora vejam-se estes dois mapas, constantes do Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (PNPOT, aprovado pela Lei n.º 99/2019, de 5 de Setembro): Para melhor clarificação, as vulnerabilidades ilustradas no mapa da esquerda prendem-se maioritariamente com desemprego, envelhecimento, precariedade social e dependência, enquanto que os serviços de interesse geral, à direita, são as actividades, comerciais ou não, sujeitas a obrigações específicas de serviço público e/ou de soberania (serviços de saúde, escolaridade obrigatória, serviços de emprego e formação, habitação social, infantários, cuidados de longa duração, serviços de assistência social, transportes públicos, segurança, justiça, energia, comunicações, etc.). Os serviços mínimos da dignidade, se quisermos. Naturalmente, a realidade do País não se esgota nestes dois mapas (que não reflectem ainda as dramáticas realidades introduzidas pela pandemia), e muitos outros se poderiam acrescentar. Mas todos revelarão mais ou menos as mesmas assimetrias e o défice de coesão territorial de Portugal, que se reflecte na sua população. Podemos acreditar muito em coincidências. Ou podemos, perante factos que nos suscitam preocupação, tentar encontrar as suas causas, em vez de nos entretermos a maldizer a espuma dos sintomas. O crescimento do populismo, que encontra nestas eleições uma expressão democrática significativa, aparenta ser uma forma de comunicação às oligarquias por parte das bases, dos esquecidos, dos que estão nos extremos errados das assimetrias, desesperados que estão perante o falhanço de todos os outros canais e o ensurdecedor silêncio em resposta aos seus problemas, a par da total degradação ética do regime. O status quo é livre de fazer o que faz melhor, desvalorizando tal facto, menorizando os votantes de que discorda, de os apelidar de estúpidos, fascistas, ignorantes, tudo e mais alguma coisa – incluindo sugerir, num espírito profundamente democrático, que nem todos deveriam poder votar, quase ao estilo das centúrias eleitorais romanas. Ou pode optar por experimentar algo diferente, e escutar. Por Gonçalo Duarte Gomes Por mera coincidência, ou talvez para assinalar o regressos dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, que ontem comentava (aqui), e aproveitar o alívio do ambiente na sala de estar mundial que tal gerou, Faro anunciou uma campanha de plantação de árvores na capital. De acordo com informação disponível nos canais municipais, avançou para já um singelo coqueiral (uma dúzia de exemplares da espécie Syagrus romanzoffiana, originária da América do Sul), ao longo da Avenida Calouste Gulbenkian, integrado numa estratégia de sustentabilidade. Que diz que é verde. Não querendo desfazer, é caso para dizer, surripiando o recente bordão publicitário de uma cadeia de supermercados, que quando só se fala da cor, até o verde perde o sabor. Faro tem um significativo défice de jardins. Tem também um défice de presença de árvores na cidade, e as que existem, volta e meia, são alvo das tradicionais podas (alguns defendem que escritas com ph) camarárias, que de árvores apenas deixam raquíticas caricaturas. Mas, acima de tudo isso, tem um défice de estrutura verde, ou seja, mais do que peças soltas, tem falta de um puzzle coerente de espaços naturalizados e elementos isolados, em que o todo faça um sentido maior do que a mera soma das suas partes e, principalmente, cumpra as suas funções de amenidade, descompressão urbana e regulação ecológica, bem como de organização biofísica. Esta coerência estrutural não se obtém por apenas plantar árvores de forma indiscriminada. Muito menos sem ligar às espécies que se plantam. Mais árvores será, por regra geral, um bom princípio, mas é preciso mais. É necessário que estas se integrem num contexto mais profundo, de significância ecológica e também identitária da cidade. É inescapável que o Algarve das aparências é ainda dominado por um vincado tropicalismo de fachada, misturado com um palmar imaginário magrebino setentrional, que habita muitas mentes, e que aponta ao reptiliano de um tipo de turismo ao qual os estivais gelados podem ser servidos até na testa, desde que acompanhados pelo reconfortante e patusco selo do “very typical”. “Tropicalgarve” com um tarbush, por assim dizer. Mas, com tanto discurso sobre ambiente, ecologia, identidade, adequação dos elencos vegetais à flora autóctone e/ou altamente adaptada, seria um coqueiral a prioridade para o reforço das árvores em Faro? A pergunta é despojada de qualquer dramatismo – hoje em dia parece difícil, mas podemos falar e discordar, sem ser aos gritos ou com sete pedras na mão – pois em termos globais, este coqueiral por si só e a dúzia de novas árvores residentes que traz, é como o Melhoral, não faz bem nem mal. E não é que as espécies exóticas não tenham lugar nos nossos jardins – muito pelo contrário, tal insere-se numa longa tradição, decorrente até do nosso histórico deambular pelo Mundo que continuamente aportou um fluxo de novidades e extravagâncias, que fomos incorporando. No caso, e por se tratar de um eixo viário principal, remotamente até se pode compreender uma intenção de vincar alguma verticalidade (não se podendo dizer o mesmo na rotunda). Além de que – espera-se – outras plantações deverão seguir-se, com – espera-se – outras espécies, menos exóticas. Mas reforçar a identificação do espaço público de Faro com outras latitudes e longitudes, que não a sua, parece distanciar a cidade de si própria e da região, quando tem outras opções ao seu dispor. Ou, pelo contrário, talvez a aproxime mais da sua essência, com o que isso implica, na velha máxima de que “Faro é Faro”. De qualquer forma, já que os jerivás aí estão, ao menos venham também os tucanos, tapires e saguins. Sempre completam a animação. Por Gonçalo Duarte Gomes O recente empossamento do novo Presidente dos Estados Unidos da América representa um sinal de esperança para o Mundo, a vários níveis. Um sentimento que muito deve à fantástica declamação de Amanda Gorman, num grande momento poético e cénico. Como que para calar as vozes que questionam a sua genica, Biden lançou-se de imediato num enérgico afã presidencial, lançando mãos à obra de tentar rectificar algumas orientações adoptadas pelo seu antecessor e de conseguir trilhar novos rumos, que conduzam a respostas não apenas às questões mais óbvias, mas também às mais profundas, que lançam as sombras sob as quais engrossam as hostes dos esquecidos, longe das agendas ideológicas da moda. Uma das suas decisões mais significativas para os restantes condóminos planetários, foi a determinação do regresso, com efeito a partir de meados de Fevereiro deste ano, dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, relativo às Alterações Climáticas, de onde este país se havia oficialmente retirado em Novembro de 2019. Não é tanto que a aplicação do Acordo esteja a correr muito bem ou que seja uma ferramenta milagrosa, mas uma das maiores economias mundiais voltar a assumir compromissos para com as metas estabelecidas e, mais importante ainda, para com a inescapável realidade de que é preciso adaptar a acção humana e mitigar os seus efeitos de ampliação sobre os padrões de variabilidade climática e intensidade dos seus fenómenos extremos, é uma boa notícia. Cá no reino não deixámos de assinalar a coisa. Imagino agora a festa que faremos, no dia em que decidirmos, nós próprios, fazer algo quanto a este tema. Porque embora nunca tenhamos abandonado o Acordo, a verdade é que Portugal está nestes pactos internacionais como os sobrinhos estão nas visitas à casa da tia-avó Cremilde: de corpo presente, porque têm que estar e, com sorte, ainda pinga uma notinha no fim, mesmo que para isso tenham que ceder a bochecha para aquele apertão bom. Assim, assinamos tudo, mas depois cumprir com o que dizem os papéis… está quieto.
Cumprir neste caso é, basicamente, adaptarmo-nos, já que este nosso canto, para lá da intrínseca responsabilidade individual e colectiva que a cada um compete, tem uma expressão reduzida ao nível das emissões que se encontram na base do fenómeno. Resta-nos assim abraçar, o melhor que pudermos, este nosso papel de “figuração” na contemporânea luta de classes climáticas. E, dentro deste jardim à beira-mar plantado, o Algarve é um caso ainda mais particular. Sendo a região portuguesa em que mais se faz sentir a influência mediterrânica, é também aquela em que, fruto desse mesmo contexto, existe uma maior exposição aos riscos decorrentes de fenómenos climáticos, ampliados por alterações de padrões já de si marcados por incerteza e violência. Junte-se a isso um modelo paisagístico de ocupação e de exploração dos recursos que optou por ignorar os limites decorrentes dessa condição genética, e o cenário é delicado. À cabeça desta vulnerabilidade encontra-se a temática dos recursos hídricos, tradicionalmente pelos períodos de seca – como aquele que até há pouquíssimo tempo atravessámos e do qual, embora ainda não completamente safos, já não nos lembramos porque entretanto caíram umas pingas – e pela sobrecarga de consumo que sobre eles fazemos incidir, mas também pelas cheias que ocorrem aquando das típicas precipitações torrenciais, referindo apenas os aspectos mais imediatos. Mas depois temos muitos outros factores de exposição, como a concentração da ocupação humana no litoral, incluindo em ilhas-barreira móveis, a artificialização de áreas sensíveis do ponto de vista biofísico (como a rede hidrográfica) ou o despovoamento das paisagens serranas e a progressão da acumulação descontrolada de combustíveis que propicia a progressão de grandes incêndios. Porque a região também visita a tia Cremilde, até já investiu uma pipa de massa num Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve. Que depois ignora paulatinamente, como bem demonstra a obsessão de boa parte dos decisores regionais com uma nova barragem quando se fala de água, embora o Plano demonstre como essa solução é a que representa a menor eficácia, com maiores investimentos (construção e manutenção) para resultados mais tardios e fortes externalidades negativas associadas. Na ressaca da actual pandemia, a devastação económica e social será tremenda no Algarve. Todo o actual discurso prospectivo de recuperação se desenvolve em torno da continuação e até intensificação dos erros estratégicos que conduziram a região à actual fragilidade e dependência, revelando que a tão falada mudança de paradigma e estruturação do Algarve para enfrentar os desafios futuros num contexto climático em mutação acelerada enfrenta sérios riscos de atropelamento pela “urgência” (nunca há tempo para pensar). Por outro lado, é certo que nada muda da noite para o dia. E que a natureza globalizada das dinâmicas económicas, a par da própria escala da região, não permite imaginar rumos que levem a novos modelos paisagísticos e de actividade, que permitam uma resolução de base ecológica para os desafios económicos, sem uma integração em contextos mais amplos. Aqui, o Pacto Verde Europeu representará uma oportunidade única, principalmente através do Mecanismo e Fundo de Transição Justa. Ou então apenas mais uma oportunidade perdida. Enquanto não temos vitórias efectivas para comemorar, celebremos então a vitória moral que é o regresso dos EUA à mesa global de Paris. .Por Andreia Fidalgo Quando em Março de 2020 fomos assolados pela pandemia, e pouco se sabia ainda sobre a Covid-19, o clima generalizado foi de medo. Medo da doença, medo dos seus efeitos ainda desconhecidos, medo pela nossa saúde, medo pela saúde do próximo. Isso levou-nos a confinar quase sem que nos fosse pedido, pois assaltava-nos o medo de ver acontecer em Portugal o mesmo que as imagens nos telejornais nos mostravam que estava a acontecer em Itália: hospitais a rebentar pelas costuras, profissionais de saúde em total situação de desgaste físico e psicológico, a verem-se na posição de ter de escolher que doentes tratar, pois não era possível tratar todos… e mortes, muitas mortes a lamentar. Assistimos atentamente ao crescimento do número de infectados e do número de mortos. Em Portugal, em Espanha, em França, em Inglaterra… em toda a Europa, em todo o mundo. Tínhamos medo que fossemos nós, que fosse alguém da nossa família, que fosse algum amigo. Tivemos medo, muito medo. Depois do medo, veio a indiferença. Muito sorrateiramente, foi-se instalando. Proliferaram as fake news, os negacionistas, o movimento dos “médicos pela verdade” – que depois, foi-se a ver, e de médicos tinham pouco ou nada.
Afinal a Covid-19 não mata assim tanta gente. Afinal, se estivermos saudáveis, não corremos grande perigo. Afinal, só os mais velhos é que morrem – fomos dizendo, em jeito de desculpa, como se a vida dos idosos, ou dos que possuem outras doenças fosse menos valiosa do que a vida de todos os outros… de todos nós… Como se fosse menos valiosa do que a dos ditos saudáveis. Fomos incentivados – inclusivamente pelo Governo, note-se – a ir à praia, a curtir o Verão. Era seguro, diziam. Há-de vir uma segunda vaga, mas não se preocupem agora com isso. É preciso é recuperar a economia, gastar dinheiro na restauração, na hotelaria, pôr as gentes a circular, mostrar aos estrangeiros que somos um destino Covid-free. A normalidade quase que parecia restaurada e a segunda vaga, que se sabia que viria, parecia uma realidade longínqua. Pouco ou nada se fez para a acautelar. O “milagre português” iria certamente repetir-se… Imagino que só possa ter sido esta a ideia subjacente a uma total inacção de quem nos governa para acautelar a segunda vaga que se sabia que viria. Sobretudo no que respeita ao SNS, já de si tão fragilizado. Só que não. O “milagre português”, que de milagre pouco teve, não se repete. E não se repete, porque no início era o medo, agora, a indiferença. Em plena segunda vaga, ficámos indiferentes aos números, indiferentes às imagens de hospitais portugueses em estado caótico. O estado de emergência banalizou-se por completo. Disseram-nos que podíamos circular no Natal, e então celebrámos o Natal à portuguesa, com as habituais reuniões familiares. Um sintomazinho aqui, outro acolá, foram ignorados, porque era Natal e ninguém leva a mal… Era Natal e Menino Jesus, com o aval do Estado Português, haveria de operar algum milagre que impedisse a Covid-19 de circular nessa época. Depois veio o Ano Novo, e era preciso celebrar, até porque já temos uma vacina. Era preciso que acreditássemos que 2021 nos irá trazer coisas boas, quando no fundo, bem sabemos, será um ano desastroso. Era preciso que nos enganássemos a nós próprios, nem que fosse por uns dias. Passada a euforia, veio a realidade dos números, que colocam actualmente Portugal numa posição de topo, a nível mundial, no maior número de infecções por milhão de habitantes. O “milagre português” virou o “desastre português”. Mas nós, quase indiferentes, vamos prosseguindo. "Renovação do estado de emergência": qual é a novidade? "Novo período de confinamento obrigatório, como o de Março e Abril": grande coisa… podemos sempre passear a trela sem cão e dizer não estamos com o juízo todo. Quem é que nos vai impedir? A indiferença generalizada, alimentada pelo cansaço, é agora a regra. Já não há arco-íris e unicórnios, nem movimentos #vaificartudobem. Há, apenas, indiferença. É a indiferença que nos leva a manter uma aparente normalidade num mundo que está caótico. No fundo, bem lá no fundo, todos sabemos o desastre que temos entre mãos, mas preferimos normalizá-lo, retirando-lhe a importância que realmente tem. E fingir que a vida segue igual, quando não está. Sei que os meus habituais leitores esperariam um apontamento sobre História, como é comum. Não esperariam um pequeno texto que mais parece um desabafo. Mas esta indiferença também tem tudo a ver com História. Quando aqui há pouco tempo fiz um estudo sobre o abandono dos recém-nascidos na Roda, entre finais do século XVIII e primeira metade do XIX, uma das coisas que mais me chocou foi a constatação de que havia um abandono anónimo muito massificado e que esse abandono era, na verdade, uma alternativa ao infanticídio. À luz dos dias de hoje, essa realidade é absolutamente hedionda… no entanto, à época também se explicava, pelo menos parcialmente, pela indiferença. Indiferença de quem vivia na miséria e não tinha o que comer, ou como alimentar os filhos… indiferença generalizada de uma sociedade perante a morte infantil, porque a morte infantil era quase a regra e não a excepção. As mães não se apegavam emocionalmente aos seus filhos recém-nascidos, porque a probabilidade de que estes morressem era muito elevada. E, por isso, muitas permaneciam-lhes indiferentes… E qual é a mãe que, actualmente, acharia isto possível? A indiferença, muitas vezes, é a única forma de lidar com os danos emocionais que nos causam as dificuldades do mundo que nos rodeia, particularmente quando somos colocados perante situações mais extremas. No entanto, a indiferença pode ser muito perigosa, sobretudo quando tem subjacentes questões de saúde pública. Não podemos deixar que esta indiferença nos leve ao desleixe, à irresponsabilidade, ao não cumprimento das regras. Por muito que questionemos – eu também o faço –, não há como negar que a situação é caótica. O nosso SNS está à beira do caos. Não podemos ficar indiferentes. Temos de nos proteger. Temos de proteger o próximo. Temos de respeitar os profissionais de saúde que estão esgotadíssimos. E, acima de tudo, temos de acreditar que vamos ultrapassar a situação e que haverá tempo para confraternizar. Quanto mais rápido agirmos, mais rápido esse dia chegará. Enquanto lia sobre o Japão deparei-me com o seguinte excerto “Desde o princípio da sua história, com perseverança e talento, lutou contra sismos e os maremotos, os incêndios e as tempestades. Só a ética da austeridade, aperfeiçoada durante séculos, e um sentido agudo do sacrifício do individuo pelo seu grupo lho podiam permitir”. Cit in Os Samurais, Editora Ulisseia 1972 Li isto e antagonisticamente pensei sobre a verborreia de comentários que tenho visto nas redes sociais sobre #votar, #votoantecipado, sobre o #batomvermelho, sobre o #confinamento e tantos outros tópicos que leio e penso na enorme ausência de sentido de colectivismo que está instalado. Além do acentuado individualismo presente nas narrativas umbilicais, denota-se uma tremenda falta de permeabilidade e tolerância a realidades alternativas à dos próprios. Na sua genesis um agudo sentido de intolerância à liberdade do outro e em simultâneo um atentado à mesma, naquilo que deveria ser o sentido de se viver em democracia. Imagem retirada do Jornal Expresso FAZEMOS TODOS MELHOR... quando não temos toda a informação ou contexto, fazemos todos melhor especialmente quando o outro testa algo e empiricamente já sabemos que não resulta e daí construímos ilíadas de como fazer melhor à partida. Fazemos todos melhor quando não estamos no centro do turbilhão e decidimos a partir do sofá. Fazemos todos melhor quando nos destituímos do dever de eleger quem nos governe. Parece-me que caminhamos a passos largos para uma carreira colectiva e pouco profissionalizante de treinadores de bancada! Tu que não cumpres o confinamento, falas do quê? Tu que nunca votas reclamas de quem? Num Portugal livre para pensar (porque nem sempre o foi) parece que deambulamos entre a dicotomia:
VÃO VOTAR CARAÇAS! E se possível FIQUEM EM CONFINAMENTO! Será que presentemente vivemos em alguma amnésia de grupo ou demência global? 74 ainda é só um adulto que vive dias difíceis e de incerteza como todos nós. Reportagem na integra no Jornal o Publico Estamos em Guerra mas não uns com os outros, a nossa guerra é contra o Covid e devemos rever valores como o Respeito, a Honestidade, a Coragem, a Compaixão, a Honra e o Dever. Porque a Liberdade não é uma garantia e devemos cuidar dela e não só dos nossos umbigos. Os verdadeiros ignorantes não são aqueles que não sabem, mas aqueles que sabem tudo ou os que dizem não saber e continuam amorfos na sua redoma.
FAZÍAMOS MELHOR MAS CONTINUAMOS SEM O FAZER! Por Gonçalo Duarte Gomes Os livros são uma consciência. E, arriscando no esoterismo, são conscientes. Só assim se explica que, tantas vezes, entrem nas nossas vidas com uma oportunidade plena. Aconteceu-me recentemente com o livro de Sinclair Lewis, cuja edição em português é intitulada “Isso não pode acontecer aqui” (Dom Quixote, 2017). É um livro escrito nos Estados Unidos da América durante os anos da Grande Depressão, e publicado pela primeira vez em 1935. Retrata a subida ao poder de um populista que, alicerçado numa bem engendrada campanha comunicativa, explorando as fraquezas e desigualdades inconfessadas da América de então, consegue ganhar as eleições de 1932 ao candidato Roosevelt e ao Presidente Hoover, instaurando uma progressiva ditadura violentamente repressiva, de inspiração e pendor fascista e nacional-socialista. É um livro perturbador, por ser tão actual. Não apenas nos processos ilustrados – é considerado profético relativamente à eleição de Trump, praticamente um século antes da mesma, e longe da era da comunicação – mas, principalmente, nas causas que levam um povo a aceitar ceder a sua liberdade em troco de promessas que, verdadeiramente, nunca são cumpridas. Ora, em Portugal, o ritmo da agenda política dos últimos tempos, que, muitas vezes, anda ao ritmo das redes sociais, tem sido marcada pelo populismo. Pelo populismo dos populistas e pelo populismo dos que, dizendo-se o seu contrário, o combatem com populismo – mas um “populismo certo” ou “de bem”, no seu entender.
Exemplo mais recente e abrangente foi a campanha dos lábios pintados, dinamizada, fundamentalmente – lá está, temos que o abraçar – nas redes sociais. Através de uma boca insinuante e desrespeitosa para com Marisa Matias, André Ventura, qual menino Tonecas de andaime, tentou fazer uma graçola ordinária acerca da maquilhagem da candidata (a mesma que, tempos antes, só não lhe chamou pai, em directo, em horário nobre, num debate para as eleições presidenciais), enquanto fazia o mesmo em relação a todos os outros candidatos, com variados níveis de baixaria. Talvez para evitar discutir ideias, que manifestamente têm andado arredadas destas lides, e dar ânimo a campanhas mortiças, muitos aproveitaram o caso para ver nisto um ataque à condição feminina, até mesmo uma agressão aos direitos humanos (diminuindo aqueles que verdadeiramente o são, numa crescente tendência de esvaziamento de significância das palavras) – tomara os avós bêbados, os esqueletos fantasmas ou os operários betos terem tantos defensores! Marisa Matias viu-se assim transformada numa Elizabeth Arden do espaço virtual, emulando o relato segundo o qual a pioneira empresária da cosmética teria distribuído batom vermelho às sufragistas que, em 1912, marchavam diante da sua recém-aberta loja na 5.ª Avenida, em Nova Iorque. Visualmente poderosa e comunicacionalmente estrondosa, a campanha alastrou a vários sectores, e até oponentes políticos aproveitaram, de forma solidária, a boleia promocional. Podendo dizer-se que nunca é demais defender os direitos da Mulher – o que é verdade – para mais num contexto em que ainda muito há a fazer até que se possa falar de equidade, o que é facto é que o jogo, se assim o quisermos entender, acabou a ser jogado nos termos do adversário. Porque, em demagógico contragolpe, mais do antecipado e calculado, Ventura veio dizer que, em vez de se pintarem lábios vermelhos por frivolidades – não era seguramente a ofensa como arma de campanha que estava em causa, porque os agora ofendidos haviam aplaudido as ofensas de Marisa em sentido contrário – deviam pintar-se lábios de preto pelos cancros que afligem o regime, tais como corrupção (excepto os casos em que o próprio tem algum tipo de envolvimento), favorecimento da banca (Luís Filipe Vieira excluído, como sabemos) ou a falta de preparação do Serviço Nacional de Saúde no quase ano que antecedeu o actual momento da pandemia, pese embora se tenham gasto, comme il faut, milhões e milhões. Como qualquer jargão regado com a dose certa de verdade para esconder as verdadeiras intenções, pegou como contrafogo no pasto seco que é o confronto político destes dias. O caudal ecológico é um conceito aplicado à gestão de cursos de água, regra geral perante a perspectiva do seu represamento num determinado ponto, que pretende estimar a percentagem do caudal médio dessa linha de água que deve continuar a fluir livremente, de forma a garantir o abastecimento que salvaguarde a subsistência e protecção de espécies e ecossistemas a jusante. Se quisermos, qual o fio de água que deve passar na torneira para que se possa matar minimamente a sede. Na política já vamos tarde para aplicar o mesmo conceito. Há muito – tal como na América de Sinclair Lewis ou de… Trump – que as elites estão tão entretidas a tratar dos seus interesses e agendas sectárias, que negligenciam os mínimos que garantem às pessoas dignidade nas suas vidas e, principalmente, esperança num futuro melhor. Nesse processo, abrem-se fendas na confiança que o grosso das pessoas deposita nos processos e instituições democráticas, ou em coisas como ciência ou factos. Passa a valer tudo. E assim, quando o elevador social está sistematicamente ocupado pelos mesmos, aqueles que inapelavelmente têm que ir pelas escadas – ou até resignar-se a não abandonar nunca o rés-do-chão – cedo ou tarde predispõem-se a aceitar a promessa de boleia com que um qualquer ascensorista de monta-cargas lhes acene, mesmo que vazia de intenção. Pior, os eternos habitantes do piso térreo podem mesmo aceitar um dia a proposta, infinitamente mais atrevida, e baratinha, de um qualquer trolha político com uma carrinha de caixa aberta e umas ferramentas reluzentes, de demolição de todo o edifício democrático, para posterior (re)construção, agora ao gosto dos esquecidos. Que, obviamente, nunca acontecerá, ficando depois todos a viver na rua, expostos às agruras do Inverno que, invariavelmente, uma ditadura, seja de direita ou de esquerda, representa. Tornou-se assim abismal, de resto, a quantidade de pessoas que, nesta campanha labial, assumiu não ter o hábito de votar, mas que neste sufrágio – ah, o heroísmo – até vão fazer o favor de exercer o dever que até agora negligenciaram. Todas as eleições são importantes, mas foram todas as que antecederam esta, e os seus resultados, o berçário da actual situação. Os populismos são difíceis de tratar (inevitavelmente, alguém trará à baila o paradoxo da tolerância, sempre importante nesta reflexão) pois, como boa parte das desculpas, evitam-se na origem, mais do que se resolvem. Porque têm que ser compreendidos e atacados nas suas causas, e não apenas nos sintomas. Não sei que lábios se podem pintar, ou de que cor, para combater, esse sim, flagelo. Só talvez recomendar a leitura de textos como este, de Sérgio Sousa Pinto (“A República à deriva”, Gradiva, 2020), e a receita que contêm. Por Andreia Fidalgo Já por várias vezes tenho referido que, no que à história do Algarve diz respeito, importa resgatar o dia 16 de Janeiro do esquecimento. Em 1773, quando o projecto de Restauração do Reino do Algarve empreendido pelo Marquês de Pombal estava no seu auge, o dia 16 de Janeiro foi absolutamente fundamental em termos legislativos e redefiniu por completo a configuração administrativa regional. Por alvará régio de 16 de Janeiro de 1773 foram criados os concelhos de Lagoa e de Monchique, que repartiram entre si parte do vasto território do então muito empobrecido concelho de Silves. Esse mesmo alvará extinguia o concelho de Alvor, que passou a lugar do termo de Vila Nova de Portimão. Estas alterações do mapa administrativo da região foram de tal forma importantes que, tal como sabemos, ainda hoje configuram parte do Algarve administrativo tal como o conhecemos. Por outro lado, nesse mesmo dia se estabeleceriam, por decreto real, as condições da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, criada no dia antecedente. Esta companhia foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser constituída. Substituía o anterior sistema das almadravas e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre os peixes considerados privilegiados ou reais, a corvina e o atum, os mais lucrativos, reservando aos restantes o comércio livre. Também por alvará de 16 de Janeiro, Pombal procurou obviar uma situação algo preocupante na região: a exploração que, por intermédio de contratos ilícitos, os grandes senhores fundiários faziam dos lavradores, cobrando-lhes censos considerados usurários. Estabeleceu-se então uma junta que procurava averiguar a legitimidade dos ditos contratos e abolir todos os que não estivessem em conformidade com a lei. As intervenções pombalinas que no Algarve se fizeram por essa altura deixam antever uma situação de grande desigualdade social, em que predominava uma pequena elite que era simultaneamente a proprietária da terra e a que ocupava os cargos da governança local. Pombal preocupou-se particularmente em limitar este grupo de “senhores poderosos” – assim descritos nas fontes da época – e acudir às necessidades daqueles que por eles eram explorados. Ora, perante uma situação social de grande desigualdade na região, talvez não seja assim tão estranho que, no meio da legislação que então saiu sobre o Algarve no dia 16 de Janeiro de 1773, assim como nos dias imediatamente anteriores e imediatamente subsequentes, se encontre uma outra peça legislativa de altíssimo interesse para o contexto nacional, mas que também se refere muito particularmente ao contexto regional: um alvará desse mesmo dia, 16 de Janeiro, alusivo à escravatura. Leia-se o seu preâmbulo: “… depois de ter obviado pelo outro Alvará de dezanove de Setembro de mil setecentos sessenta e um aos grandes inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão dos Homens pretos, tive certas informações, de que em todo o Reino do Algarve, e em algumas Províncias de Portugal, existem Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de Pretas, e de Negras, e outras Mestiças; e outras verdadeiramente Negras; para pela repreensível propagação delas perpetuarem os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, de usurpações das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil. Este alvará havia sido, portanto, precedido de um outro, datado de 19 de Setembro de 1761, que abolia o comércio de escravos para o Reino de Portugal (mas não para o Império, note-se!). Agora, determinava-se a abolição gradual da escravatura, também no Reino: todos os que nascessem da publicação da lei em diante seriam inteiramente livres, mesmo que as mães e avós permanecessem sob o jugo da escravidão.
Não vou entrar aqui pelas controvérsias associadas ao pioneirismo – ou não! – desta legislação pombalina, nem do seu contributo para a abolição gradual da escravatura e do comércio de escravos em Portugal, que apenas se viria a efectivar bem mais tarde. Assumo, com toda a humildade científica, que nunca estudei aprofundadamente o assunto para conseguir sobre ele tecer algum considerando que realmente tenha algum valor, ou acrescente algo de novo ao que os especialistas já sobre ele disseram. No entanto, não me parece de somenos importância notar a alusão específica ao Reino do Algarve – a que se juntam, é certo, “algumas províncias” não discriminadas –, o que denuncia que, provavelmente, os abusos perpetrados contra os escravos seriam particularmente acentuados nesta região do país, assim como notar que o alvará aparece associado a uma data e a um período específico em que o Reino do Algarve estava a ser alvo de um pacote de medidas legislativas que visavam a sua recuperação económica e reorganização administrativa. Coincidência? Não creio… As questões que se me oferecem deixar em aberto, para futuro esclarecimento e investigação, são as seguintes: até que ponto as averiguações específicas sobre a situação social e económica na região algarvia teriam despertado novo interesse de Pombal para o problema da escravatura, tendo acabado por resultar numa nova peça legislativa a esse respeito? Considerando que, em larga medida, é possível caracterizar a sociedade algarvia da época como uma sociedade desigual, pautada por grandes desequilíbrios e pela exploração que os grandes proprietários faziam aos lavradores que amanhavam as terras, será assim tão pouco plausível considerar que aí se perpetrassem de forma mais acentuada os cativeiros e os abusos? Não tendo respostas para as questões, termino com a alusão de que ainda hoje nos rodeiam, bem próximos, exemplos de exploração, de abuso e de escravidão, que se escondem sob as mais diversas formas. Se o século XVIII, isto é, o século das Luzes em que Pombal se insere, inicia toda uma reflexão civilizacional que procurava caminhar para uma sociedade mais humanitária e mais justa, estamos hoje ainda muito longe desses ideais. Estaremos a afastar-nos cada vez mais deles? Por Gonçalo Duarte Gomes
Não, não é erro. É mesmo COFINAr, um verbo acabado de inventar. Mas já lá vamos. Iniciamos hoje um novo período de confinamento, por força do aumento brutal de casos de COVID-19 e, principalmente, da saturação que se começa a verificar no sistema de saúde, nas suas instalações e equipamentos (as que estão a funcionar) e, sobretudo, sobre os profissionais que continuam a constituir uma prodigiosa carne para canhão, já que, ainda que subdimensionados, estruturalmente deficitários e organicamente atraiçoados, continuam a operar milagres. A todos eles, um sentido obrigado e um pedido de desculpa, devido por todos nós, enquanto cidadãos, por termos desde há muito tolerado, com obediente – e, em alguns casos, consoante a cor no Governo, sectariamente interessado – silêncio o desinvestimento estrutural na saúde. Um silêncio que ressoa de forma ensurdecedora em tempos como o presente, de necessidade extrema. Mas este apontamento não é sobre saúde ou pandemia. Ou pelo menos essa saúde ou essa pandemia. É sobre COFINAmento, algo que tem a ver com saúde, e com uma pandemia… mas nas nossas cabeças. E que, novamente, não é erro, mas invenção derivada daquela que titula este escrito. COFINAr é ceder ao processo de simplificação e redução da realidade com que os órgãos de comunicação social pertencentes à COFINA, holding editorial, contaminaram todo o tecido da imprensa e, consequentemente, da opinião pública. Com o nosso consentimento, claro está. Um processo sobre o qual me detive mais demoradamente a propósito do épico homem-couve (ver aqui). Em momentos como o presente, brutalmente impactantes sobre o colectivo, com a vida de tantas pessoas a colapsar total ou parcialmente – dependendo do rombo que já haviam levado aquando do primeiro confinamento e das inevitáveis consequências – importa combater, a par da pandemia viral, a pandemia intelectual. Porque precisamos de espírito e massa crítica, e não distracções, para ver se aprendemos alguma coisa, na esperança de erguer um qualquer futuro válido, em que tantos vão precisar de tanto. Para isso, devemos confinar, mas sem COFINAr. Respeitar a gravidade das circunstâncias, mas sem perder o respeito pelo próximo e pelos variados contextos que atravessa. Ser solidários e socialmente responsáveis, mas exigindo mais e melhores explicações, para lá de diárias hi-scores de infectados e mortos. No fundo, não deixar que o medo nos retire a condição de seres pensantes e, mais que tudo, perceber que a vida continua, e que esta pandemia, na sua gravidade, não é desculpa para tudo, muito menos para atestados de menoridade. Porque enquanto andamos aos gritos uns com os outros nas redes sociais (por certo há por aí muito Caps Lock a precisar de reparação!), a realidade passa ao lado. Sem que seja realmente escrutinada, sindicada, justificada. E é nesse espaço que se instala a ficção. Distópica. Por Gonçalo Duarte Gomes
Os puzzles são um passatempo maravilhoso, que treina a capacidade de observação, ao mesmo tempo que promove a concentração e a abstracção dos problemas quotidianos. Mas pode também ser uma actividade exasperante, quando não se encontra aquela peça, ou as peças teimam em não encaixar da forma como pretendemos, num claro atentado da realidade à nossa vontade. Se a coisa sucede num puzzle do Mordillo, até passa bem, pois há sempre pormenores deliciosos para nos entreter, e cedo ou tarde, damos com a solução. Mas se acontece numa reprodução de 1000 peças de um perfeito céu azul sem nuvens... é de ir aos arames. Nesses momentos de desespero, há quem encare a perspectiva de uma busca inglória com bonomia e a encaixe pacientemente, enquanto que outras pessoas não se detêm em minudências e lançam mão à obra, moldando as peças a pedido. O ordenamento da paisagem é também um puzzle, onde se tenta – ou deveria tentar – encaixar harmoniosamente as actividades necessárias ao progresso da nossa existência nos sistemas fundamentais do nosso meio, em equilíbrio com os sistemas e fluxos fundamentais que garantem a salubridade, a qualidade de vida, a igualdade de oportunidades pela equidade no acesso ao aproveitamento dos recursos e a solidariedade intergeracional, pela salvaguarda da capacidade de regeneração desses mesmos recursos, para satisfação das necessidades dos vindouros. No Algarve, este puzzle tem sido alvo de algumas das mais incríveis deformações de peças, de forma a cumprir vontades que raras vezes serviram, ou servem, os interesses estratégicos (de longo curso) da região. Ou seja, depois de satisfeita a caprichosa vontade de encaixar determinada peça (um loteamento, um resort, uma infra-estrutura, uma exploração agrícola, o que seja), nem que a martelo (ignorando e/ou modificando desproporcional e profundamente as condições e dinâmicas originais e os limites impostos por esse contexto), o resultado é uma manta de retalhos disfuncional, e não aquela imagem bonitinha que a tampa da caixa do puzzle prometia... Num tempo em que as consciências – ou, pelo menos, as palavras – evoluem para outros entendimentos do que deve ser a gestão dos delicados equilíbrios que mantêm a paisagem e nós próprios, surgem tentativas para contrariar o passado e procurar novas coerências paisagísticas, até mesmo contra os instrumentos de gestão territorial, como comprova a renovação da suspensão do Plano Director Municipal (PDM) de Loulé na zona do Almargem e do Trafal (ver aqui). Medidas como esta surgem isoladas, aguardando as revisões dos PDM (no caso de Loulé e muitos outros municípios algarvios, em curso, noutros... em discurso) e a redefinição dos modelos paisagísticos que, esperançosamente, aportarão – se bem que, no Algarve, é preciso ter cuidado com o que se deseja... E mais isoladas ficam no plano do confronto judicial entre as expectativas particulares goradas e os interesses públicos salvaguardados, em sede de tribunais. Porque embora essa discussão deva ser tida, por força de certos princípios constitucionais que, consagrados, devem ser observados, a jurisprudência aponta para uma fragilização dos decisores políticos quando estes optam por tomadas de posição no sentido da apresentada. Curiosamente, um PDM suspenso para acomodar uma qualquer aberração territorial, aparenta ser decisão menos sujeita a condenação... Continua portanto por fazer um longo trabalho de fundo, cultural, estrutural, a vários níveis, com destaque para o municipal – central no modelo de municipalização neo-feudal do país, por “descentralização” – que deve lançar sobre a paisagem um olhar menos voraz e mais perspicaz. Como têm demonstrado (ou relembrado) acontecimentos recentes nos Estados Unidos da América, a política carece de doses mínimas de realidade e seriedade. Sob pena da loucura redundar em caos e desordem, com destruição de todas as referências que permitem alguma coerência nos processos de gestão da vida comum. O ordenamento do território, enquanto expressão espacial precisamente das políticas e das acções que sobre a paisagem as materializam, e nela as inscrevem, não é excepção, como também a realidade já se encarregou de demonstrar, com cheias, fogos, secas e outros episódios. Num momento de questionamento de paradigmas ambientais, sociais, económicos, organizacionais, esta é uma reflexão fundamental. Para que as crises não sirvam apenas para destruir, mas também para reinventar. Por Gonçalo Duarte Gomes
… e o resultado é “porreiro”. Por uma questão de sanidade e higiene mental, e ainda que os ache fundamentais, optei por ignorar os debates entre candidatos às eleições presidenciais, que terão lugar este mês – uns e as outras, bem entendido. Mas também porque o resultado, em democracia e despistada a existência de fraudes ou condicionamentos, será sempre o correcto, independentemente de debates que, numa sociedade tão mediatizada – ainda que por vezes mal informada – como a nossa, dificilmente modelarão votos. Mas há coisas demasiado atraentes – mesmo que de forma mórbida – para se perderem. Foi o caso do debate entre Vitorino Silva, mais conhecido como Tino de Rans, e André Ventura, mais conhecido como Adolf de Algueirão-Mem Martins. Porque era um duelo de titãs mediáticos (em diferentes estilos, é certo) e, pessoalmente, porque eram aqueles cujo discurso menos conheço na abordagem à temática presidencial, já que os outros são mais familiares, seja na sua individualidade ou nos blocos que representam. Este frente-a-frente, bem vistas as coisas, opôs um popular a um populista, soando mais a uma entrevista de café, uma auscultação das massas, do que a uma discussão de ideias programáticas para o exercício da mais importante magistratura do nosso edifício democrático. E, de caminho, mais do que outra coisa qualquer, acabou por ser uma representação do estado da política em Portugal. Porque Vitorino e André, sentados à mesa, discutindo afincada, ainda que educadamente, o título de candidato mais representativo do "povo", procuraram demarcar-se das "elites" e dos seus putativos candidatos, certos da premissa de que aquelas e aqueles lhes retribuem a atenção. Ora, gosto de acreditar que, se Platão fosse português, vivendo neste tempo que é o nosso, seguramente construiria uma alegoria, neste caso não da caverna mas antes do vão de escada, qual clássica porteira do imaginário urbano de antanho. E, neste bate-boca de escadaria social, seguramente veria que estes debatem aquilo de que os outros não querem saber, os outros discutem coisas que a estes nada dizem, e uns e outros falam de tudo menos do país e do papel que um Presidente da República pode desempenhar nele e no seu futuro. A uma parte significativa do eleitorado, não militante de nenhuma das facções em confronto, restará portanto não uma escolha, mas um ingrato papel de minimização de estragos, escolhendo um mal menor ou afirmando a ausência de escolhas que o representem – o voto em branco. Que isto suceda num momento de profunda e global crise social, cultural, económica, anímica e democrática, não pode deixar de ser significativo, mais que não seja para quebrar enganos e rasgar atávicos paninhos quentes sobre a crise que se abateu – por culpa própria e dos seus actores – sobre as instituições e os processos do nosso regime político. Correndo o risco de ser demasiado exigente face ao que um Presidente da República deve ser – quando a experiência acumulada aconselha precisamente o contrário – e, consequentemente, quanto aos temas que devem preencher o debate que alimenta e informa o respectivo sufrágio, parece-me que estamos no ponto zero de energia da política, que está transformada num somatório de agendas desgarradas, que se confrontam oligarquicamente, em que as pessoas são apenas meios para atingir fins, e não os fins que justificam os meios, não se vislumbrando todo para lá da soma das meras partes, esvaziando-se qualquer conjunto. Não obstante (e correndo o risco de ser injusto para outros, por ignorância dos mesmos), acho que deste debate resulta um momento marcante, do hipnotizante gesto de candura e sedutora simplicidade com que Vitorino retirou do seu bolso quatro pedrinhas, para ilustrar um argumento de profundo humanismo – tónica que marcou todo o seu discurso, com uma naturalidade tocante, pleno de metáforas eloquentes, que me parece tê-lo guindado à condição de inequívoco vencedor do debate, ainda que sem beliscar o oponente e sem convencer ser a pessoa indicada para este cargo em particular, sem prejuízo da competência para outros. Mas, olhando as quatro pedras, não pude deixar de registar a brutal epifania nelas materializada, como a luz que, precisamente na platónica caverna, mergulha o Homem nos dilemas resultantes da confrontação entre representação e realidade. Porque, no fundo, tudo se resume a calhaus, em variados sentidos. Os que se escolhem porque parecem contundentes, para atirar em protesto, numa lapidação. Os que se escolhem porque são iguais aos que sempre se escolheram para lastro. Os que tendo a exacta mesma forma de outros que rolaram para o abismo, se dizem diferentes. Os polidos, cuja ausência de arestas gera conforto. Mas também os calhaus com olhos. Que não vêm. Uns aos outros. À realidade. Poder escolher acaba mesmo por ser a única, e grande, nota positiva. Bem-vindo, 2021. Por Luís Coelho
A teoria microeconómica clássica sugere que os indivíduos têm por objectivo maximizar a sua utilidade. Infelizmente, como tudo na vida, tal exercício está refém de um conjunto de restrições que impedem que saciemos a totalidade das nossas necessidades ao mesmo tempo e de uma só vez. No problema clássico da microeconomia, estas restrições assumem um cariz monetário pelo que os indivíduos são convidados a escolher o cabaz de consumo (e poupança) que melhor satisfaz as suas necessidades dados os recursos financeiros que têm à sua disposição. Desta forma, o paradigma clássico da microeconomia enfatiza a importância de cada um de nós dispor de mais recursos financeiros: sempre que estes aumentam relaxa-se a restrição monetária e, concomitantemente, aumenta-se a possibilidade de alcançar níveis de utilidade superiores. Por Andreia Fidalgo Gosto de pensar no Natal como uma festividade que se universalizou muito para além do significado religioso que lhe conferiu o Cristianismo. Não me agrada a excessiva mercantilização do Natal da actualidade, nem o consumismo que lhe está associado, nem tampouco toda a exagerada parafernália decorativa, ou o Pai Natal da Coca-cola… Mas, agradam-me muito os valores maiores que transcendem tudo isso: a família, a união, a solidariedade, a esperança, o amor ao próximo. Valores que, de resto, se deveriam manter uma constante durante todo o ano. Nesta altura, prefiro sempre de recordar que as celebrações que agora se fazem são muito anteriores ao significado cristão que posteriormente se lhes atribuiu, e que colocaram no dia 25 de Dezembro o nascimento do Menino Jesus. As festividades de Natal têm uma origem pagã, que remonta ao período romano: o Natalis Invicti Solis (Nascimento do Sol Invicto) comemorava-se por altura do Solstício de Inverno, e celebrava o triunfo do sol sobre a escuridão, pois a partir dessa data os dias começam a ser maiores, atingindo o seu auge no Solstício de Verão. O sol era então celebrado como fonte de energia e de vida, associado ao cultivo da terra e prosperidade das colheitas futuras. Resquícios deste culto pagão podem ainda ser observados nos tradicionais “madeiros” ou “cepos” de Natal que se fazem em muitas aldeias e vilas do interior do país. Nesses casos, acendem-se grandes fogueiras na praça principal ou no adro da igreja, na véspera de Natal; na noite de natal, depois da missa, a população reúne-se em torno do madeiro para se aquecer e festejar. Em algumas localidades, estas fogueiras mantêm-se acesas até ao Dia de Reis. Manter o madeiro durante vários dias corresponde a um ritual de partilha, de união e de confraternização em torno de uma fonte de calor que também é fonte de vida. Desconheço se, actualmente, em alguma terra algarvia ainda se cumpre esta tradição ancestral. José Leite de Vasconcelos (1858-1941), na Etnografia Portuguesa, referia que “no Algarve há o chamado Cepo de Natal”, acrescentando que “em algumas terras é costume visitar-se sete cepos na noite do Natal, para efeito de ficarmos livres, durante o ano, da dor de cabeça” (vol. VIII) – e bem que precisávamos que o próximo ano nos livrasse desta grande dor de cabeça que chegou a todos nós por via da pandemia!
O Natal que este ano se comemora será, para muitos de nós, diferente do habitual. Muitos não poderão estar presentes, ou não terão presentes familiares que querem proteger ou têm de ser protegidos. Muitos ficarão ainda mais solitários, num ano que nos isolou a todos numa bolha e foi tão difícil de enfrentar. Muitos sentirão falta de um abraço e não o poderão ter. Muitos chorarão a perda de um ente querido. Muitos passarão um Natal triste e difícil, porque a pandemia os atirou para o desemprego, mergulhando-os inesperadamente numa crise económica. Uma crise que não é só para alguns, porque nos toca a todos… Não será uma época fácil, nem os tempos que se avizinham nos parecem promissores, num período que se afigura difícil de ultrapassar, com contornos problemáticos que vão muito além de questões de saúde pública. Por isso mesmo, e numa perspectiva de universalização do Natal, parece-me que podemos redescobrir na ancestralidade das comemorações desta quadra festiva uma bela mensagem de esperança: a de que a luz pode triunfar sobre a escuridão; a de que, a cada solstício, se inicia um novo ciclo; a da renovação da natureza, da vida; a da união e partilha… Porque, acima de tudo, não podemos deixar que vençam as trevas, quando temos tanta luz para oferecer ao mundo que nos rodeia. Que possamos contribuir todos para a construção de um mundo melhor, é tudo quanto posso desejar! Um Feliz Natal!
Por Gonçalo Duarte Gomes
Numa sessão de debate e reflexão promovida ontem pela Secção Regional do Algarve da Ordem dos Arquitectos em torno da Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, disponível aqui, na sua versão consolidada), e convidado a contribuir para o tema, dei por mim algo atrapalhado, porque solos, ordenamento do território e urbanismo são matérias sobre as quais a dita lei pouco versa. É certo que contém princípios gerais que tocam, de forma mais ou menos profunda, os tópicos obrigatórios do prontuário da especialidade. Mas, na sua essência, é uma lei que versa sobre edificação. As questões da edificação, mais até do que a urbanização, estiveram na génese da primeira lei de solos, datada de 1976, fruto da pressão origina pela chegada abrupta de aproximadamente meio milhão de pessoas, no âmbito da forma desastrosa como foi gerido o processo do abandono dos territórios ultramarinos (a Professora Fernanda Paula Oliveira, que ontem abrilhantou a sessão, explica-o). Entretanto o País continuou a sua evolução, com o sector da construção civil a assumir um papel de destaque na economia nacional, principalmente através de exercícios especulativos, associados às mais-valias geradas no processo de transformação fundiária e do mercado imobiliário – uma história que não cabe aqui. De qualquer modo, a edificação como desígnio nacional originou uma profusão de construção e de edificação programada em planos de gestão territorial que, no seu todo, e de acordo com as estimativas mais espaçosas, requereriam 30 milhões de habitantes para ocupar. A estes factos não será também alheio o modelo de financiamento das autarquias adoptado estar intimamente ligado ao parque imobiliário. No meio deste frenesim de betoneira, foi-se esquecendo o básico: o chão que pisamos e ocupamos a eito é muito mais do que mero suporte físico. É, na verdade, suporte de vida. O solo é um sistema vivo, que resulta da acção conjunta do clima e dos seres vivos, sobre a matriz geológica. E, como qualquer sistema vivo, evolui ao longo do tempo. Os serviços que presta dividem-se entre fundo de fertilidade, abrigo de biodiversidade, filtragem, transformação e armazenamento de nutrientes e de água ou sumidouro de carbono. Em Portugal, os solos férteis são relativamente escassos, já que apenas 5% são muito férteis, enquanto que 45% são pobres e/ou rochosos, sem grande interesse produtivo – o que não lhe retira todas as outras valências, note-se. No Algarve, o cenário é algo similar. Analisando dados apresentados pelo Professor Nuno Loureiro, da Universidade do Algarve, verificamos que cerca de 56% dos solos regionais se integram na ordem dos solos incipientes (litossolos, maioritariamente, que são delgados, pobres e fortemente sujeitos a erosão), a que se juntam cerca de 3% de afloramentos rochosos. Nos restantes solos, relativamente interessantes para efeitos produtivos, quase sempre associados a contextos de arrastamento de sedimentos pela rede hidrográfica, destacam-se os solos mediterrânicos (cerca de 20%), mas frequentemente fragmentados e com forte presença de pedra – diz-se que nas despedregas e armações de socalcos típicas das nossas paisagens mediterrâncias se verteu mais suor do que na construção das pirâmides egípcias.
Ora, é fácil de ver que, se entendermos o solo como mero suporte físico e não como suporte de vida, estaremos a alienar e possivelmente hipotecar um recurso estratégico de importância vital, em domínios que vão desde o esforço – inalcançável – de auto-suficiência alimentar até à gestão de cheias, pela manutenção da permeabilidade do solo das bacias hidrográficas – o que, num contexto mediterrânico de precipitação em regime torrencial, é de primordial importância.
Aliás, no Algarve já se vê, na medida em que a evolução da sua ocupação do solo tem dado origem a uma degradação do seu Índice Sintético de Desenvolvimento Regional e, dentro dele, uma degradação do índice de Qualidade Ambiental, que posicionou a região na cauda nacional em 2018 (tema já antes analisado aqui). Talvez valesse a pena pensar nisso, e nas outras questões discutidas ontem e disponíveis no vídeo abaixo, num momento em que se pretende que o pensamento sobre o ordenamento e gestão da paisagem evolua para lá do imediatismo, e se revista de um carácter estratégico, de projecto de futuro. Por Gonçalo Duarte Gomes A Água do Luso – passe a publicidade – cunhou um slogan emblemático na publicidade nacional: “tão natural como a sua sede”. Este bordão, orelhudo como convém, era, na década de 80 do século passado, premonitório quanto ao futuro que nos parece esperar, em que ter sede se tornará um estado normal, face à escassez do líquido vital. No Algarve, marcado por um abono hídrico incerto, que muitas vezes obriga a longas travessias no deserto, mais nitidamente se desenha um cenário desses. A menos que se arrepie caminho, e se comece a usar a água com a parcimónia a que a realidade climática regional e as disponibilidades aconselham. Muito se tem falado, mas tarda a acontecer algo relevante nesse sentido. Verifica-se mesmo o contrário. Tem-se dito que, se não vai a bem, qualquer dia vai a mal. E por vai a mal, entenda-se... vai ao bolso. Tradicionalmente, imagina-se uma sensibilização musculada através da tarifa da água. Mas talvez haja um nível mais profundo. Foi noticiado no início desta semana que a água vai começar a ser negociada na bolsa de Nova Iorque, à semelhança de qualquer outro bem económico. Na circunstância, com água da Califórnia, lá longe (embora tenhamos uma em Salir), através dos chamados contratos futuros – ou simplesmente futuros – baseados num índice que estabelece a evolução do preço do direito à água naquele estado norte-americano.
Resumidamente*, futuros consistem numa negociação antecipada do preço a que determinado bem – aqui água – será transaccionado numa data futura, também ela previamente definida. Desta forma, comprador e vendedor comprarão e venderão o bem pelo preço acordado, independentemente do valor de mercado que esse bem tenha na data estabelecida. Se o valor de mercado for superior ao preço acordado, o vendedor perde e o comprador ganha. Se o valor de mercado for inferior, invertem-se os papéis. Nestas negociações, ao contrário de outras deste género, não existe qualquer transacção física de água, correndo tudo no plano das efabulações financeiras e do mercado de futuros, quase num sistema de apostas em torno da sede. A agência financeira Bloomberg entende que esta negociação traduz preocupações com a água. Pretende então o sector financeiro, apostando especulativamente quanto à escassez da água... resolver tal problema? Não negando o impacto positivo que as economias de mercado historicamente têm na qualidade de vida de tanta gente, o que é facto é que “o mercado”, quando entregue a exercícios de auto-regulação, não tem corrido nada bem. Envolvendo recursos naturais, é mesmo dramático. Bem entendido: a água tem custos associados à sua captação, armazenamento, tratamento, e distribuição, não surgindo por obra e graça nas torneiras. Custos esses que, a menos que adoptemos modelos económicos mais desprendidos, têm que ser cobertos. Mas pagar tarifas governamentalmente tuteladas – que ponderem interesses comerciais com o direito fundamental à água, enquanto encargo basilar e responsabilidade social partilhada por todos – é diferente de estar sujeito a um exercício comercial especulativo – especialmente num quadro de tendencial equiparação de corporações a Estados para efeitos arbitrais, por exemplo no contexto de acordos comerciais internacionais, como o CETA. Imagine-se (porque nunca, em tempo algum, o tecido empresarial o fez...) que, para negociação destes contratos futuros, os agentes envolvidos têm interesse em condicionar artificialmente as tendências, particularmente no sentido do aumento da escassez, para melhorar as suas margens. O que impedirá tal manejo, que afectará, em caso de inflacção do preço da água, principalmente os mais vulneráveis? A ética? “Preço do direito à água”, é o que estabelece o índice de Água Nasdaq Veles Califórnia, a que se reportam os contratos futuros referidos. Em Janeiro de 1992, foi redigida a Declaração de Dublin, direccionada já aos líderes mundiais que, em Junho desse ano, participariam na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro. Dessa declaração constavam quatro princípios relativos à finitude, escassez e importância da água, sendo o 4.º o de que a água tem um valor económico em todos os seus usos concorrentes e deveria ser reconhecida como um bem económico, ainda que reconhecendo primeiramente como um direito básico de todos os seres humanos o acesso a água potável e saneamento, a um preço comportável. Em 2002, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas reconheceu a água como um direito humano universal, não subordinado a quaisquer condicionamentos económicos. Estaremos a assistir a um pender deste “braço de ferro” conceptual para uma perversão do 4.º princípio da Declaração de Dublin que, bem intencionada, pode tornar-se um Cavalo de Tróia, colocando um preço num direito fundamental? Tal receio aumenta se pensarmos que, a coberto da pandemia, temos assistido a variados ensaios que, em tempos de normalidade – principalmente democrática – seriam impensáveis. Desde assomos autoritários a condicionamentos sociais, culturais e até afectivos, muito se tem servido da cultura do medo, sempre em nome da resolução do problema de saúde pública, que efectiva e inegavelmente enfrentamos. Cada vez que o presente se torna mais estranho, é interessante olhar para as distopias ficcionadas, para ver se os futuros que nos adivinhavam no passado estão ou não a ser ultrapassados pela realidade. Uma das minhas preferidas surge no filme Blade Runner. Aí, o slogan da Tyrell Corporation, fabricante dos humanóides Réplicas, anunciava “mais humano do que humano”. Uma hipérbole para disfarçar profunda desumanidade, mais até dos criadores do que propriamente das criações. Se começarmos a negar copos de água, onde ficamos nesse campeonato de humanidade? E como ficam regiões hidricamente sensíveis, e social e economicamente vulneráveis como o Algarve, num xadrez desses? *um agradecimento ao António Guerreiro pelas preciosas dicas que me deu, em ajuda ao entendimento dos contratos futuros. Por Gonçalo Duarte Gomes
Recentemente, e na ressaca de uns dias de precipitação valente (nos dias 26 e 30 de Novembro, dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera apontam para precipitações médias acumuladas entre os 40 e por vezes 80 mm em boa parte da região) no bom velho regime torrencial que tão bem caracteriza o clima de regiões de influência mediterrânica, escrevi um texto sobre o tema das cheias e suas causas (disponível aqui). Na troca de ideias que se seguiu, principalmente através das redes sociais virtuais, muitas pessoas comentavam, lamentando, o facto de tanta água se “perder”, correndo livremente para o mar, sem ser armazenada para futuro consumo humano. Sendo perfeitamente compreensível tal preocupação, e saudável a consciência da escassez, principalmente tendo em conta o monumental aperto que o Algarve viveu (e de que ainda assim não se livrou, embora, por exemplo, Odeleite, em Novembro, tenha passado de 32,1% para 45,7% da capacidade e Odelouca tenha subido de 47,7% para 48,9%) em termos de níveis das reservas hídricas para abastecimento público, esta ideia não deixa de traduzir um problema cultural na relação que temos com a água. Repetindo parte do tal texto: “Hoje entendemo-la [água] meramente como bem de consumo, transaccionável, que corre em canais e tubagens, e sai em torneiras. Perdeu-se o entendimento e, principalmente, o respeito, pelo seu poder enquanto agente modelador da paisagem”. A água é um factor limitante para a vida. Para a nossa e para toda a que nos envolve, e de que dependemos, mesmo quando não nos apercebemos disso. E é por isso que, para além do fundamental consumo humano, importa que flua pela paisagem, concretamente através do sistema vascular da mesma, que é a rede hidrográfica. Importa, por isso, que se compreenda esta dimensão ecológica da água na paisagem, e as suas funções de suporte vital, principalmente se pensarmos que temos o deserto mesmo à porta, ali do outro lado do estreito de Gibraltar. Se não for acautelada essa circulação e percolação, esses caudais ecológicos disseminados que alimentam a vida no solo e abastecem (também) aquíferos, e toda a água for tornada refém do nosso consumo – ainda para mais quando o sabemos perfeitamente desmesurado e desproporcional face às reais disponibilidades da região – estaremos a cometer um erro estratégico que, a médio/longo prazo nos custará bem caro. É também por isso que se questiona a visão utilitarista/economicista da água, que esgota a sua relevância na perspectiva da torneira e procura inventar reservas e disponibilidades para alimentar um modelo de consumo desadequado, em vez de optimizar o modelo para se acomodar às disponibilidades, marcadas por aguda incerteza. Há, portanto, um trabalho de fundo a fazer neste domínio, de forma a que nos reaproximemos da cultura mediterrânica da água, com maior e melhor noção da sua importância global enquanto fonte de vida, e não apenas de consumo. Se, felizmente, falamos cada vez mais sobre isso, o facto é que pouco se faz. Por Gonçalo Duarte Gomes Assistiu-se esta semana ao “chumbo” do projecto do loteamento e obras de urbanização da denominada Cidade Lacustre de Vilamoura, em sede do respectivo processo de avaliação de impacte ambiental (AIA). Este projecto, que, simpaticamente, se propõe esventrar a margem esquerda do troço final da Ribeira de Quarteira, modificando-a ao ponto da total irreconhecibilidade, para edificação e navegação doméstica, constitui uma das maiores e mais admiráveis – há que reconhecê-lo – bizarrias ambientais já produzidas pela fértil imaginação da indústria imobiliária encapotada de turismo que se desenvolve no Algarve desde há décadas. Assim de repente, que lhe sejam comparáveis, apenas me recordo da “terrina” (marina terrestre) de Albufeira ou a ilha artificial sonhada para o troço costeiro de Vale do Lobo – embora aí tenha havido em tempos um sonhador que era, em si, todo um campeonato à parte. Para quem se preocupa com estas minudências do ambiente, do equilíbrio dos sistemas fundamentais da paisagem e do modelo territorial, este chumbo é uma boa notícia. Para quem já perspectivava uma engorda na conta bancária pela comercialização da mera ideia, é fácil de imaginar que não tenha sido assim tão boa. Mas também não deve ter sido nenhuma fatalidade. A Cidade Lacustre tem sido uma das principais “cerejas” com que se acena nas transacções do “bolo” de Vilamoura. Aliás, arrisco dizer que quando a Lone Star investiu em Vilamoura, este tenha sido dos dossiers mais escrutinados, já que se trata de um dos grandes filões especulativos incidentes sobre o Algarve, com um investimento estimado na casa dos 600/700 milhões de euros.
Melhor mesmo, só se quem dominasse Vilamoura também tivesse um banco ali à mão, já batido nas complexas – e sempre transparentes – operações de engenharia financeira que suportam empreendimentos desta natureza. Mas não, a Lone Star é apenas dona do Novo Banco, que, como qualquer contribuinte português sabe, não se mete em cavalarias dessas. O Grupo/Banco Espírito Santo é que se metia em complicações dessas... Porque o dinheiro nunca dorme (o que intrinsecamente não tem mal nenhum, note-se), assistimos apenas a um interlúdio, antes da próxima investida que seguramente existirá. Até porque este processo beneficia da “jogada” mais antiga na cartilha do bom malandro ambiental: a desagregação de determinado projecto nas suas variadas componentes, de forma a contornar ou mitigar, muitas vezes cirurgicamente, e por desfasamento cronológico, a apreciação cumulativa dos seus impactes ambientais. Neste caso, essa manobra mergulhou a cidade lacustre num paradoxo. Os seus lagos já foram avaliados aqui há uns anos, sem terem que se preocupar grandemente com a edificação que os tornaria citadinos. Ou seja, hoje avalia-se uma cidade lacustre de sequeiro, depois de se terem avaliado uns lagos urbanos sem urbanização. Confuso, manhoso e censurável? Sim. Condenável? Não, porque corre tudo dentro do legalmente possível. Preciosismos legais e éticos à parte, importa olhar para a substância da coisa. Se as alterações paisagísticas e os impactes ambientais decorrentes da edificação eram neste caso óbvios, já os lagos podem escapar entre os pingos da chuva. Porque recorrem a elementos naturais, porque configuram aspectos cénicos atractivos e amenidades apelativas, porque os patos e outras avezinhas chapinham felizes nas suas águas, etc., etc., etc.. Mas neste caso, os plácidos lagos enchem-se graças a alterações profundas na hidrografia da zona e nas dinâmicas ecológicas da várzea da ribeira. Principalmente pelo desvio do Vale Tisnado para a Ribeira de Quarteira e pela construção de um dique entre a Ribeira de Quarteira e a futura zona urbana (alterando as dinâmicas do leito de cheia), para além, obviamente, da criação de planos de água onde antes não existiam. Nesses planos de água, assiste-se então à intenção de alimentação com água salgada, convidando o mar a entrar várzea adentro, aumentando o risco de intrusão salina, neste caso sobre o Aquífero Miocénico. Se pensarmos que estas zonas estão para o sistema biofísico como os rins estão para o nosso organismo, e juntarmos a cidade ao lacustre, é fácil de perceber que isto é tudo muito “green”, "climate change friendly", “eco” e coiso, não é verdade? Não obstante, alguns, ou até muitos, dirão que estes sacrifícios ambientais, e os seus impactos no futuro da região, são justificados pelo dinheiro que isso injecta no Algarve, e pelo que faz mexer em seu torno, a começar pelos empregos, que são prometidos sempre aos milhares – uma chantagem emocional que, em tempos de aflição como este, funciona com uma eficácia desumana e predatória, aproveitando-se da natural indisponibilidade para projectar o futuro além do agora, por parte de quem tem fome e desespera. Eu não sou de contrariar as pessoas, mas aí gostava que alguém explicasse o que correu mal em todos os outros investimentos da mesma natureza deste, e que trouxeram o Algarve ao seu presente e lastimável estado de total vulnerabilidade, frágil dependência e, acima de tudo, aguda emergência social – agravada ainda pela desigualdade na distribuição da riqueza, que estatisticamente exclui a região de diversos mecanismos de apoio. Imagino que aí a realidade fique a falar por si. Parece então que o momento é não tanto de respirar de alívio, mas antes de aproveitar para recuperar o fôlego, e esperar pelos próximos capítulos... Por Luís Coelho
O modelo económico do Algarve assenta, essencialmente, no fenómeno turístico. Esta situação não é nova, tendo começado a desenvolver-se na década de 60 do século passado com a abertura do Aeroporto Internacional de Faro. Década após década, trilhámos um caminho que permitiu transfigurar por completo a região, densificando de forma muito significativa um conjunto de actividades que - directa ou indirectamente – tiram partido de uma procura relativamente regular (e crescente) pelo sol e praia Algarvios. Admito pois que a maior parte dos Algarvios nunca pensou profundamente sobre os eventuais perigos deste perfil de especialização. De facto, genericamente falando, ter um sector turístico robusto é uma vantagem pois assegura algum dinamismo empresarial e a criação de oportunidades de trabalho. Por Gonçalo Duarte Gomes Em vésperas de um debate em torno da paisagem mediterrânica e, fundamentalmente, do seu futuro, não parece inteiramente desajustada a recuperação de um texto, intitulado precisamente "Manifesto das 3 delícias", que em 2018 foi lançado à discussão (e também à subscrição, sob a forma de petição online - disponível aqui). Longe de ser uma posição acabada, foi assumidamente um ponto de partida para a afirmação de uma reivindicação cívica partilhada e para a provocação de um debate mais alargado, quebrando um silêncio ensurdecedor que então se instalava. Uma ideia que, francamente, parece ainda ter margem para desenvolvimento. O Algarve.
A mais perfeita região de Portugal Continental, em que a realidade biofísica é de tal forma presente, que se impôs à delimitação administrativa, fazendo coincidir os limites de uma e de outra. O Algarve. Encaixado entre o Guadiana e o Oceano, com a sua entrada terrestre guardada pelas Serras do Caldeirão, Monchique e Espinhaço de Cão, protegendo o anfiteatro que se estende até um mar que, não sendo ainda Mediterrâneo, já não é também Atlântico. Porque este aqui não é em qualquer outro lugar, e esta gente não é outra, as paisagens desta terra possuem um cunho único e irrepetível. As paisagens desta terra são o fruto de uma matriz genética telúrica, feita de terra, água, pedras, árvores, ar, chuva e tudo o mais que encerra, cruzada com o pensamento, temperamento, emoção e acção de todos os povos que, nos seus grandes ou pequenos afazeres, nas suas quotidianas ou transcendentes realizações, por aqui passaram ao longo da História. As paisagens desta terra são entidades físicas e emocionais, maiores que a mera e aritmética soma das suas partes. As paisagens desta terra são construções milenares, em processo recíproco e interminável, em que a terra se entranha na alma da gente, e a alma da gente se entranha na terra, cristalizando sobre uma estrutura amorfa, o território, a assinatura cristalina de gente, sob a forma das suas paisagens. O Algarve. Mais do que um mero cenário turístico, o Algarve é uma região onde desde há muito se vive e onde por muito tempo se quer viver. Por isso, este é um manifesto. Pela sua paisagem. Pelo futuro da sua paisagem. Enquanto paisagem viva do Algarve, e não imagem genérica de um não-lugar. Civicamente desejamos: - Um Algarve inteiro, completo, solidário e feliz; - Um Algarve reencontrado na contemporaneidade e reconhecível na sua matriz única de atlantismo mediterrânico; - Um Algarve resiliente, perene e apto para os desafios que o futuro encerra; Exigimos civicamente:
O futuro não se interrompe, não deve nunca ser interrompido. Mas o futuro tem obrigatoriamente passado. De outra forma é ficção. O futuro sem passado é ilusão. E as ilusões só se querem se com os pés bem assentes na terra. Se o doce das três delícias trocar o figo, a alfarroba e amêndoa pelo abacate, pela manga e pela framboesa, talvez continue a ser delicioso. Mas já não será algarvio. O Senhor Deus preparou um jardim em Éden, lá para o oriente, e colocou nele o homem que tinha modelado. Da terra, fez nascer toda a espécie de árvores que eram agradáveis à vista e davam bons frutos para comer Por Gonçalo Duarte Gomes
A perda de grandes figuras é sempre um momento perturbador. Mas também catártico. Gonçalo Ribeiro Telles era um dos Senadores de Portugal – em minha opinião, a par de Adriano Moreira e Eduardo Lourenço. São pessoas que, em diferentes áreas, acumulam, pelo seu trajecto de vida, experiências e competências que constituem já não património seu, mas antes memória estratégica do País, tornando-as tutelares. Foi precisamente Eduardo Lourenço quem nomeou Ribeiro Telles “jardineiro de Deus”, face aos seus assinaláveis êxitos na procura do Paraíso perdido, que, inscrito nas nossas memórias matriciais, constantemente tentamos recriar nos jardins. E Ribeiro Telles assumia-se como jardineiro. Mas um jardineiro de escala variável, em cujas mãos cabia tanto a paisagem da região ou do País, como o mais pequeno canteiro. Porque a paisagem, enquanto todo global orgânico, cumpre-se num contínuo ininterrupto, desde a ideia – a política, o futuro – até à sua expressão espacial junto das pessoas, no traço do projecto da sua rua ou do seu quarteirão, e no que esse desenho encerra, em termos de relação com as condicionantes biofísicas, que são o nosso suporte de vida. Não vale a pena tentar aqui sequer esboçar um exercício biográfico de uma vida que, ao longo de quase um século (e atravessando dois) foi inteiramente dedicada ao serviço, como tão bem ficou patente na principal preocupação do seu discurso de aceitação do Prémio Sir Geoffrey Jellicoe: só será útil se motivar outros na busca pela excelência. Serviço de um povo, de uma cultura, de um País. Para a Arquitectura Paisagista portuguesa, o desaparecimento físico de Ribeiro Telles representa uma nova fase: a orfandade. Durante décadas, Ribeiro Telles foi a referência maior da profissão, um mentor, literalmente primus inter pares. Não porque estivesse acima de alguém – conceito que seguramente o arrepiaria, ciente de que a ideia cresce e consolida-se na conversa de café, sempre com outros – mas porque esteve sempre à frente do seu tempo, sem no entanto deixar de estar no seu tempo plenamente envolvido. Para lá da dor da perda, reside a comemoração da escola que deixou, e que tantos e tão brilhantes continuadores criou. A dimensão política e cívica de Ribeiro Telles é um testemunho de integridade e de coragem. Fosse em ditadura ou em democracia, nunca temeu apontar o dedo a tudo aquilo que entendia violar princípios basilares do humanismo que incansavelmente defendeu, não apenas na paisagem, mas na mente, no coração e, principalmente, na acção do Homem. Na balança entre o conforto da omissão ou a turbulência da denúncia e da proposta de fazer diferente, nunca teve dúvidas em escolher a segunda. Sem fatalismos ou catastrofismos, só com proposta de futuro; diferente, melhor. Remorsos, apenas os de não ter sido mais incómodo, como tantas vezes afirmou. Graças a ele, a história da Arquitectura Paisagista cruza-se, e muitas vezes é, a história da política de ambiente e de ordenamento do território em Portugal. Uma história de foco inequívoco: as pessoas. A sua qualidade de vida, a dignidade dessa vida, a equidade na distribuição das oportunidades de acesso aos recursos, a salvaguarda da perenidade e a transmissão aos próximos de algo acrescentado ao encontrado pelos anteriores. O sonho de um País identificado e respeitador das suas raízes telúricas, expresso na paisagem e na cultura que ela molda, e que, por sua vez, a conforma reciprocamente, num processo vivo. Cassandra é uma figura da mitologia grega, dotada de capacidades proféticas e, simultaneamente, amaldiçoada a que ninguém acreditasse nas suas previsões do futuro. Em consequência disso mesmo, a sua cidade natal de Tróia, governada pelo rei Príamo (seu pai) caiu às mãos de Agamémnon e dos gregos, por ninguém acreditar no conselho de Cassandra, para que o malfazejo Cavalo de Tróia fosse destruído, e não acolhido. Ribeiro Telles, como Cassandra, raramente foi escutado, para lá da circunstância do verde, entretanto tornado politicamente correcto e indispensável na cartilha oratória papagueada – porque não realmente compreendida – pelos responsáveis e decisores, de quem nunca desistiu, mesmo face a mediocridade indizível. Costuma dizer-se que na morte todos os homens são bons, e os panegíricos excessivos. Este, genuinamente, foi-o em vida. O respeito transversalmente granjeado, inclusivamente por parte daqueles que dele discordavam – e que ele tanto apreciava, por contribuírem, com as suas diferenças, para o enriquecimento da discussão – é atestado disso mesmo. E todos os louvores serão, de facto, excessivos. Não por serem iméritos, mas porque ele os dispensaria, trocando-os por acção. Portanto, a Gonçalo Ribeiro Telles há apenas uma única homenagem que pode ser prestada por todos nós, enquanto cidadãos: o respeito e a concretização pelas ideias que formulou e materializou, e a continuação da sua insaciável curiosidade e do seu incansável espírito lutador. Estaremos realmente dispostos a realizá-la, dia após dia? Por Andreia Fidalgo Diz o ditado popular que para haver São Martinho, não pode faltar “lume, castanhas e vinho”. Tradicionalmente, neste dia fazem-se os magustos, que são grandes fogueiras em torno das quais se juntam as famílias e os amigos e onde se assam as castanhas, fruto tão apetecido desta época. Além disso, a acompanhar, bebe-se jeropiga, água pé ou vinho novo, ou seja, é também o dia no qual se prova o vinho da última vindima. A lenda, todos conhecemos: um soldado romano chamado Martinho de Tours (séc. IV), num gesto de profunda humanidade, teria dividido o seu manto com um mendigo num dia muito chuvoso e gelado; o gesto foi divinamente compensado com o súbito desaparecimento da tempestade, substituída por um sol esplendoroso. O bom tempo durou três dias e o milagre ficou conhecido como o “Verão de São Martinho”. Desde então, sempre por esta altura do ano, somo agraciados com alguns dias estivais em pleno Outono. Na região algarvia, como em qualquer outra, esta tradição também se celebra. Mas falar de castanhas, neste lugar ao sul, significa falar obrigatoriamente de Monchique, onde o clima é propício à existência de castanheiros, ainda que actualmente a área que estas árvores aí ocupam seja muito inferior à de outros tempos. Para invocar os castanheiros de Monchique, façamos uma breve incursão a alguns testemunhos. O botânico alemão Heinrich Friedrich Link, na sua viagem ao Algarve realizada em 1799, ao chegar a Monchique, descrevia: “Deixa-se o cume da serra à direita e, no sopé da mesma, depois de se terem feito quatro boas léguas no deserto, encontra-se subitamente um vale estreito com castanheiros, campos cultivados e casas. O vale inflecte para a esquerda e chega-se ao lado sul da serra, que panorâmica! Na encosta, por entre bosques de castanheiros, jardins totalmente cobertos de laranjas e limões, rodeada de fundos vales românticos banhados por riachos sussurrantes, encontra-se a encantadora povoação de Monchique. (…) Os bosques de castanheiros servem aqui principalmente para a engorda dos porcos (os presuntos de Monchique são também afamados), as castanhas não são tão usadas como alimento, por isso as árvores não se enxertam como em Portalegre. Em parte cultivam-se os castanheiros como mata de corte, porque depois se utilizam frequentemente como estacas nos vinhedos, como aros e em outras necessidades semelhantes. Uma série destes bastões está constantemente a ser transportada em burros para o Algarve.” (Notas de uma viagem a Portugal, Lisboa, BNP, 2005, pp. 253-254) O testemunho de Link corrobora a realidade algumas décadas anterior, quando pela época do Marquês de Pombal se tomaram várias medidas para beneficiar a produção e comercialização das madeiras de castanheiro da zona de Monchique, então muito apreciadas pela sua qualidade e muito requeridas, inclusivamente para construção da iluminista Vila Real de Santo António. Mas este testemunho também nos deixa perante uma outra realidade: à época, as castanhas não seriam muito utilizadas como alimento pela população, servindo essencialmente para uma outra função igualmente importante que era a alimentação dos porcos. Algures com o passar do tempo, o hábito mais generalizado de consumir a castanha ter-se-á introduzido e firmado nas tradições locais. Em 1955, José António Gascon escrevia o seguinte: “No Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) saía muita gente para os campos para tratar dos “magustos” que, como se sabe, são fogueiras ao ar livre, em que se assam castanhas, havendo o costume de as pessoas que neles tomavam parte se tisnarem umas às outras, por brincadeira, com carvões retirados das fogueiras, depois de apagadas. (…) No Dia de São Martinho (11 de Novembro) costumava e costuma ainda abrir-se a prova e venda do vinho novo.” (Subsídios para a Monografia de Monchique, Faro, Algarve em Foco Editora, 1993, p. 363) Além do consumo de castanhas, este testemunho relembra-nos uma outra realidade igualmente comum: os magustos têm origem nas comemorações do Dia de Todos os Santos. Segundo o etnógrafo José Leite de Vasconcelos, o magusto era um testemunho de um antigo sacrifício em homenagem aos mortos: nalgumas localidades a tradição era preparar-se, à meia-noite, uma mesa com castanhas para que os mortos da família as pudessem ir comer, sendo que mais ninguém nelas tocava porque se dizia que estavam “babadas dos defuntos” (Opúsculos Etnologia, vol. VII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938). Felizmente, nos dias que correm, comer a castanha pelo Dia de Todos os Santos ou pelo São Martinho já não tem um significado tão lúgubre. O magusto é, sobretudo, um momento convivial, de alegria. E bem precisamos da alegria de uma boa degustação, em dias tão tristes como os que vivemos. Que as restrições a que estamos sujeitos e o confinamento não sejam motivo para nos impedir de comer castanha assada acompanhada de uma boa jeropiga, nem de usufruir do Verão de São Martinho. A castanha até pode estar cara, mas pelo menos o sol ainda é gratuito. Por Gonçalo Duarte Gomes
Na ressaca de alguma pluviosidade, importa lembrar a sabedoria popular expressa neste título, para que não nos deslumbremos com esta pouca água que, caída do céu com uma pujança por vezes assinalável, não resolve os nossos problemas. Adequar consumos às disponibilidades, e não inventar disponibilidades para justificar consumos. Isso sim. Mesmo com conselhos "amigos" que por aí andam, de que isto só lá vai com mais barragens... Por Gonçalo Duarte Gomes A 30 de Outubro de 1938, faz hoje precisamente 82 anos, uma versão radializada da novela alegórica "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, foi emitida pelo Columbia Broadcasting System, narrada por Orson Welles, causando grande alarme e agitação social - e até episódios de pânico em alguns locais - nos Estados Unidos da América, por muita gente crer que era real a ficção radiofonicamente relatada. O argumento, hoje banal, foi na altura pioneiro: uma raça alienígena, fisgada no domínio do planeta Terra, não se ensaiou de invadir este nosso terceiro calhau a contar do Sol para o conseguir, atacando simultaneamente vários pontos nevrálgicos. Pelo meio, eliminar a Humanidade não pareceu ideia incómoda. Ou pelo menos não houve pruridos de fazer mossa, vá. Grande. No fim de várias peripécias, são micróbios as formas de vida que defendem a honra do convento terráqueo, desgraçando inapelavelmente os invasores extraterrestres, vergonhosamente eliminados pelo equivalente a pé de atleta ou intoxicação alimentar. Foi, de forma muito simplista, este enredo que, navegando pelas ondas do éter, levou medo a muitos lares americanos que, à data, tinham na rádio o principal entretenimento do serão familiar.
Medo. Medo derivado da desinformação, da falta de conhecimento, da surpresa e do choque induzido pelo formato e da confiança depositada no veículo. Medo que medrou em substrato fértil, fruto da época, do contexto social, da novidade da coisa, do cunho dramático da radialização - importa lembrar a veia cinematográfica de Welles - e de uma certa inocência geral da sociedade face a fenómenos de natureza mediática e ainda mais no campo da ficção científica. A 30 de Outubro de 2020, em Portugal, num dia em que se aplica um conjunto de condicionamentos sociais cujo enquadramento constitucional não é claro aos olhos de um leigo, e muito menos é claro o seu fundamento objectivo, é importante evitar qualquer tipo de aproximação a um momento "Guerra dos Mundos", de medo pela mediatização e desinformação, porque estamos com um problema real em mãos, e não uma ficção. Quase 8 meses após o decreto da pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde, e numa altura em que diariamente os meios de comunicação social - com o alto patrocínio das entidades oficiais - nos bombardeiam à exaustão com sensacionais limiares ultrapassados, no que a infecções e números de mortes diz respeito, o verdadeiro recorde é o do banho mediático promotor de medo em que todos somos mergulhados, sem que, no entanto, de tal esfrega aparentemente resulte grande higiene, pelo menos do ponto de vista informativo. Não porque faltem dados, mas porque falta o tratamento desses dados, de forma a transformá-los em informação e, depois, em conhecimento. Conhecimento esse que é a ferramenta de excelência para construir consciência e... combater o medo. Sem esse conhecimento, oscilaremos numa espiral descontrolada e desinformada, entre o medo incapacitante e a incompreensão que atrevidamente (inclusivamente através de movimentos que muitas vezes alardeiam pseudociência, ou ciência não sindicável) se auto legitima no incumprimento e desrespeito pelas normas vigentes. E num cansaço anímico insustentável. Não bastam números, é necessária a sua interpretação e clarificação - a cada caso positivo corresponde efectivamente um doente, mesmo quando, por exemplo, não há sintomas? Não bastam testes, é necessária a clarificação inequívoca da sua fiabilidade - por exemplo para despistar a suspeita de uma relação entre o recente disparar de testes positivos e a aproximação da época da gripe sazonal. Não bastam mortos - morreram de quê, exactamente? De ou com Covid? E os que morreram por falta de assistência, sem Covid, nem apelo ou agravo? São um sacrifício necessário, ou ficam na berma da História, esquecidos como danos colaterais, mesmo que os seus números esmaguem os da patologia do momento? Na mesma linha, é preciso que nos expliquem adequadamente porque é que os mortos - e os vivos que lhes prestam homenagem - são problemáticos, mas a ida a um espectáculo, uma corrida de automóveis, uma festa partidária ou um transporte público colectivo a abarrotar, não são. Os critérios são de saúde pública? São sócio-económicos? Uma ponderação entre ambos, em proporções fluidas? Quais os impactos esperados com as medidas a aplicar? E qual o balanço de tudo o que já se fez até aqui? Ou, ao fim dos tais quase 8 meses de pandemia, continuamos tão às cegas e aos apalpões como estávamos no início? Em tempos como este, que se afiguram (e anunciam) críticos, a coerência é um bem maior nas linhas de orientação que são dadas para que todos cumpram. Por outro lado, contradições, excepções mal explicadas e ausência de critérios objectivos... são uma Caixa de Pandora escancarada. Não é necessário paternalismo. Não é necessário autoritarismo. É necessária transparência. É necessária informação. Para que todos possam ser responsáveis e responsabilizados. Porque as pandemias vêm e vão, mas era bom que a ideia do Estado de Direito e da confiança nas instituições sobrevivesse, e de boa saúde. Por Andreia Fidalgo Por vezes, a identidade cultural perde-se, porque não há quem dela tome conta. Nem mesmo as instituições às quais supostamente competiria tal tarefa difícil. Sempre me fez confusão esta coisa do Halloween. Quando eu era miúda, era coisa que não se celebrava, e máscaras só vê-las mesmo no Carnaval. Actualmente, são as próprias escolas a fomentar uma tradição importada, incitando os miúdos a vestirem-se a rigor, sob o consentimento praticamente unânime dos pais que só querem ver os petizes felizes e contentes (e quem os pode culpar?!). No entanto, se pararmos para pensar um pouco, talvez fizesse mais sentido que estas mesmas instituições escolares se preocupassem em manter vivas as tradições portuguesas (e, felizmente, ainda há algumas que o fazem!), transmitindo-as aos mais novos, para que com o passar dos anos estas não se percam por completo. Por cá, em certas regiões, havia um ritual igualmente interessante e já muito esquecido, chamado Pão-por-Deus (o nome nem sempre era este, variava de terra para terra). Trata-se de um peditório que decorria na manhã do Dia de Todos os Santos, no qual as crianças e os pobres batiam à porta das casas da sua vizinhança, com um saco de pano, pedindo pão por Deus, em troca de orações pelos mortos. As dádivas que recebiam não eram unicamente pão, ou bolos: podiam ser frutos da época ou mesmo moedas. O peditória era acompanhado de versos, tais como: "Pão por Deus, Fiel de Deus, Bolinho no Saco, Andai com Deus." Quando era oferecida a dádiva, podia-se responder: "Esta casa cheira a broa Aqui mora gente boa. Esta casa cheira a vinho Aqui mora algum santinho." Quando a dádiva era recusada, podia dizer-se o seguinte: "Esta casa cheira a alho Aqui mora um espantalho Esta casa cheira a unto Aqui mora algum defunto." Na ausência de resposta: "Se tem pão e não quer dar Deus lhe parta o alguidar Quando estiver a amassar." Esta tradição tem raízes antigas, provavelmente proveniente de rituais pagãos, posteriormente incorporados no Cristianismo. Há notícia, no século XV, de que havia a obrigação de distribuir pelos pobres, no Dia dos Fiéis Defuntos, o pão por Deus. O terramoto de 1 de Novembro de 1755 é apontado por alguns estudiosos como um momento-chave para cimentar a tradição do pão por Deus, visto que a miséria e a fome por ele gerados teriam incitado os peditórios. Uma tradição actualmente quase esquecida, substituída por um ritual importado, de origem anglo-saxónica. Não seria bem mais interessante reavivá-la? Sobre o Pão por Deus e todo o ritual do Dia dos Mortos, veja-se a interessante tese de Mestrado de Margarida Dourado Dias, O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana de Meixide : a expressão estética da lembrança e a procura da imortalidade, Universidade do Minho, 2009. |
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