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No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho

11/11/2020

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Por Andreia Fidalgo

Diz o ditado popular que para haver São Martinho, não pode faltar “lume, castanhas e vinho”. Tradicionalmente, neste dia fazem-se os magustos, que são grandes fogueiras em torno das quais se juntam as famílias e os amigos e onde se assam as castanhas, fruto tão apetecido desta época. Além disso, a acompanhar, bebe-se jeropiga, água pé ou vinho novo, ou seja, é também o dia no qual se prova o vinho da última vindima.


A lenda, todos conhecemos: um soldado romano chamado Martinho de Tours (séc. IV), num gesto de profunda humanidade, teria dividido o seu manto com um mendigo num dia muito chuvoso e gelado; o gesto foi divinamente compensado com o súbito desaparecimento da tempestade, substituída por um sol esplendoroso. O bom tempo durou três dias e o milagre ficou conhecido como o “Verão de São Martinho”. Desde então, sempre por esta altura do ano, somo agraciados com alguns dias estivais em pleno Outono.
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São Martinho e o mendigo, de El Greco, c. 1597-99

​Na região algarvia, como em qualquer outra, esta tradição também se celebra. Mas falar de castanhas, neste lugar ao sul, significa falar obrigatoriamente de Monchique, onde o clima é propício à existência de castanheiros, ainda que actualmente a área que estas árvores aí ocupam seja muito inferior à de outros tempos.

Para invocar os castanheiros de Monchique, façamos uma breve incursão a alguns testemunhos.
​
O botânico alemão Heinrich Friedrich Link, na sua viagem ao Algarve realizada em 1799, ao chegar a Monchique, descrevia:
“Deixa-se o cume da serra à direita e, no sopé da mesma, depois de se terem feito quatro boas léguas no deserto, encontra-se subitamente um vale estreito com castanheiros, campos cultivados e casas. O vale inflecte para a esquerda e chega-se ao lado sul da serra, que panorâmica! Na encosta, por entre bosques de castanheiros, jardins totalmente cobertos de laranjas e limões, rodeada de fundos vales românticos banhados por riachos sussurrantes, encontra-se a encantadora povoação de Monchique. (…) Os bosques de castanheiros servem aqui principalmente para a engorda dos porcos (os presuntos de Monchique são também afamados), as castanhas não são tão usadas como alimento, por isso as árvores não se enxertam como em Portalegre. Em parte cultivam-se os castanheiros como mata de corte, porque depois se utilizam frequentemente como estacas nos vinhedos, como aros e em outras necessidades semelhantes. Uma série destes bastões está constantemente a ser transportada em burros para o Algarve.” (Notas de uma viagem a Portugal, Lisboa, BNP, 2005, pp. 253-254)

​O testemunho de Link corrobora a realidade algumas décadas anterior, quando pela época do Marquês de Pombal se tomaram várias medidas para beneficiar a produção e comercialização das madeiras de castanheiro da zona de Monchique, então muito apreciadas pela sua qualidade e muito requeridas, inclusivamente para construção da iluminista Vila Real de Santo António.

Mas este testemunho também nos deixa perante uma outra realidade: à época, as castanhas não seriam muito utilizadas como alimento pela população, servindo essencialmente para uma outra função igualmente importante que era a alimentação dos porcos.

Algures com o passar do tempo, o hábito mais generalizado de consumir a castanha ter-se-á introduzido e firmado nas tradições locais. Em 1955, José António Gascon escrevia o seguinte:
“No Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) saía muita gente para os campos para tratar dos “magustos” que, como se sabe, são fogueiras ao ar livre, em que se assam castanhas, havendo o costume de as pessoas que neles tomavam parte se tisnarem umas às outras, por brincadeira, com carvões retirados das fogueiras, depois de apagadas. (…) No Dia de São Martinho (11 de Novembro) costumava e costuma ainda abrir-se a prova e venda do vinho novo.” (Subsídios para a Monografia de Monchique, Faro, Algarve em Foco Editora, 1993, p. 363)

Além do consumo de castanhas, este testemunho relembra-nos uma outra realidade igualmente comum: os magustos têm origem nas comemorações do Dia de Todos os Santos. Segundo o etnógrafo José Leite de Vasconcelos, o magusto era um testemunho de um antigo sacrifício em homenagem aos mortos: nalgumas localidades a tradição era preparar-se, à meia-noite, uma mesa com castanhas para que os mortos da família as pudessem ir comer, sendo que mais ninguém nelas tocava porque se dizia que estavam “babadas dos defuntos” (Opúsculos Etnologia, vol. VII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938).
​
Felizmente, nos dias que correm, comer a castanha pelo Dia de Todos os Santos ou pelo São Martinho já não tem um significado tão lúgubre. O magusto é, sobretudo, um momento convivial, de alegria. E bem precisamos da alegria de uma boa degustação, em dias tão tristes como os que vivemos.

Que as restrições a que estamos sujeitos e o confinamento não sejam motivo para nos impedir de comer castanha assada acompanhada de uma boa jeropiga, nem de usufruir do Verão de São Martinho. A castanha até pode estar cara, mas pelo menos o sol ainda é gratuito.
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Quanto mais água, mais sede.

6/11/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Na ressaca de alguma pluviosidade, importa lembrar a sabedoria popular expressa neste título, para que não nos deslumbremos com esta pouca água que, caída do céu com uma pujança por vezes assinalável, não resolve os nossos problemas.

Adequar consumos às disponibilidades, e não inventar disponibilidades para justificar consumos. Isso sim.

Mesmo com conselhos "amigos" que por aí andam, de que isto só lá vai com mais barragens...
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A guerra dos medos

30/10/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A 30 de Outubro de 1938, faz hoje precisamente 82 anos, uma versão radializada da novela alegórica "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, foi emitida pelo Columbia Broadcasting System, narrada por Orson Welles, causando grande alarme e agitação social - e até episódios de pânico em alguns locais - nos Estados Unidos da América, por muita gente crer que era real a ficção radiofonicamente relatada.

O argumento, hoje banal, foi na altura pioneiro: uma raça alienígena, fisgada no domínio do planeta Terra, não se ensaiou de invadir este nosso terceiro calhau a contar do Sol para o conseguir, atacando simultaneamente vários pontos nevrálgicos. Pelo meio, eliminar a Humanidade não pareceu ideia incómoda. Ou pelo menos não houve pruridos de fazer mossa, vá. Grande. No fim de várias peripécias, são micróbios as formas de vida que defendem a honra do convento terráqueo, desgraçando inapelavelmente os invasores extraterrestres, vergonhosamente eliminados pelo equivalente a pé de atleta ou intoxicação alimentar.
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Ilustração de Henrique Alvim Corrêa (1906), inspirada pelo livro "Guerra dos Mundos", de H.G. Wells (1898)
Foi, de forma muito simplista, este enredo que, navegando pelas ondas do éter, levou medo a muitos lares americanos que, à data, tinham na rádio o principal entretenimento do serão familiar.

Medo.

Medo derivado da desinformação, da falta de conhecimento, da surpresa e do choque induzido pelo formato e da confiança depositada no veículo. Medo que medrou em substrato fértil, fruto da época, do contexto social, da novidade da coisa, do cunho dramático da radialização - importa lembrar a veia cinematográfica de Welles - e de uma certa inocência geral da sociedade face a fenómenos de natureza mediática e ainda mais no campo da ficção científica.

A 30 de Outubro de 2020, em Portugal, num dia em que se aplica um conjunto de condicionamentos sociais cujo enquadramento constitucional não é claro aos olhos de um leigo, e muito menos é claro o seu fundamento objectivo, é importante evitar qualquer tipo de aproximação a um momento "Guerra dos Mundos", de medo pela mediatização e desinformação, porque estamos com um problema real em mãos, e não uma ficção.

Quase 8 meses após o decreto da pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde, e numa altura em que diariamente os meios de comunicação social - com o alto patrocínio das entidades oficiais - nos bombardeiam à exaustão com sensacionais limiares ultrapassados, no que a infecções e números de mortes diz respeito, o verdadeiro recorde é o do banho mediático promotor de medo em que todos somos mergulhados, sem que, no entanto, de tal esfrega aparentemente resulte grande higiene, pelo menos do ponto de vista informativo.

Não porque faltem dados, mas porque falta o tratamento desses dados, de forma a transformá-los em informação e, depois, em conhecimento. Conhecimento esse que é a ferramenta de excelência para construir consciência e... combater o medo.

Sem esse conhecimento, oscilaremos numa espiral descontrolada e desinformada, entre o medo incapacitante e a incompreensão que atrevidamente (inclusivamente através de movimentos que muitas vezes alardeiam pseudociência, ou ciência não sindicável) se auto legitima no incumprimento e desrespeito pelas normas vigentes. E num cansaço anímico insustentável.

Não bastam números, é necessária a sua interpretação e clarificação - a cada caso positivo corresponde efectivamente um doente, mesmo quando, por exemplo, não há sintomas? Não bastam testes, é necessária a clarificação inequívoca da sua fiabilidade - por exemplo para despistar a suspeita de uma relação entre o recente disparar de testes positivos e a aproximação da época da gripe sazonal. Não bastam mortos - morreram de quê, exactamente? De ou com Covid? E os que morreram por falta de assistência, sem Covid, nem apelo ou agravo? São um sacrifício necessário, ou ficam na berma da História, esquecidos como danos colaterais, mesmo que os seus números esmaguem os da patologia do momento?

Na mesma linha, é preciso que nos expliquem adequadamente porque é que os mortos - e os vivos que lhes prestam homenagem - são problemáticos, mas a ida a um espectáculo, uma corrida de automóveis, uma festa partidária ou um transporte público colectivo a abarrotar, não são.

Os critérios são de saúde pública? São sócio-económicos? Uma ponderação entre ambos, em proporções fluidas? Quais os impactos esperados com as medidas a aplicar? E qual o balanço de tudo o que já se fez até aqui? Ou, ao fim dos tais quase 8 meses de pandemia, continuamos tão às cegas e aos apalpões como estávamos no início?

Em tempos como este, que se afiguram (e anunciam) críticos, a coerência é um bem maior nas linhas de orientação que são dadas para que todos cumpram. Por outro lado, contradições, excepções mal explicadas e ausência de critérios objectivos... são uma Caixa de Pandora escancarada.

Não é necessário paternalismo. Não é necessário autoritarismo. É necessária transparência. É necessária informação. Para que todos possam ser responsáveis e responsabilizados.

​Porque as pandemias vêm e vão, mas era bom que a ideia do Estado de Direito e da confiança nas instituições sobrevivesse, e de boa saúde.
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O Pão-por-Deus que o Halloween amassou

30/10/2020

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​Por Andreia Fidalgo

Por vezes, a identidade cultural perde-se, porque não há quem dela tome conta. Nem mesmo as instituições às quais supostamente competiria tal tarefa difícil. Sempre me fez confusão esta coisa do Halloween. Quando eu era miúda, era coisa que não se celebrava, e máscaras só vê-las mesmo no Carnaval. Actualmente, são as próprias escolas a fomentar uma tradição importada, incitando os miúdos a vestirem-se a rigor, sob o consentimento praticamente unânime dos pais que só querem ver os petizes felizes e contentes (e quem os pode culpar?!).

No entanto, se pararmos para pensar um pouco, talvez fizesse mais sentido que estas mesmas instituições escolares se preocupassem em manter vivas as tradições portuguesas (e, felizmente, ainda há algumas que o fazem!), transmitindo-as aos mais novos, para que com o passar dos anos estas não se percam por completo.

Por cá, em certas regiões, havia um ritual igualmente interessante e já muito esquecido, chamado Pão-por-Deus (o nome nem sempre era este, variava de terra para terra). Trata-se de um peditório que decorria na manhã do Dia de Todos os Santos, no qual as crianças e os pobres batiam à porta das casas da sua vizinhança, com um saco de pano, pedindo pão por Deus, em troca de orações pelos mortos. As dádivas que recebiam não eram unicamente pão, ou bolos: podiam ser frutos da época ou mesmo moedas.

O peditória era acompanhado de versos, tais como:

"Pão por Deus,
Fiel de Deus,
Bolinho no Saco,
Andai com Deus."


Quando era oferecida a dádiva, podia-se responder:

"Esta casa cheira a broa
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho
Aqui mora algum santinho."


Quando a dádiva era recusada, podia dizer-se o seguinte:

"Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto."


Na ausência de resposta:

"Se tem pão e não quer dar
Deus lhe parta o alguidar
Quando estiver a amassar."


Esta tradição tem raízes antigas, provavelmente proveniente de rituais pagãos, posteriormente incorporados no Cristianismo. Há notícia, no século XV, de que havia a obrigação de distribuir pelos pobres, no Dia dos Fiéis Defuntos, o pão por Deus. O terramoto de 1 de Novembro de 1755 é apontado por alguns estudiosos como um momento-chave para cimentar a tradição do pão por Deus, visto que a miséria e a fome por ele gerados teriam incitado os peditórios.

Uma tradição actualmente quase esquecida, substituída por um ritual importado, de origem anglo-saxónica. Não seria bem mais interessante reavivá-la?
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Foto retirada do site da Câmara Municipal de São Roque do Pico, onde esta tradição ainda se mantém viva.

Sobre o Pão por Deus e todo o ritual do Dia dos Mortos, veja-se a interessante tese de Mestrado de Margarida Dourado Dias, O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana de Meixide : a expressão estética da lembrança e a procura da imortalidade, Universidade do Minho, 2009.
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No Dia de Todos os Santos, a terra tremeu: o Algarve e o terramoto de 1 de Novembro de 1755

28/10/2020

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Por Andreia Fidalgo

Na História de Portugal há um antes e um depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755. Precisamente no Dia de Todos os Santos, há 265 anos, a terra tremeu e deixou grande parte da capital portuguesa destruída. Centenas de edifícios ficaram reduzidos a ruína. Milhares de vidas se perderam sob os escombros. Os que conseguiram fugir, aterrorizados, dos edifícios que desabavam, para perto do Tejo, foram surpreendidos pelo tsunami que se seguiu. Findo o tsunami, vieram os incêndios, que conduziram parte da capital à devastação total. 

Foi um duro e inesperado golpe para Lisboa e para o Reino de Portugal.

Esta catástrofe veio agravar uma situação económica que já por si era bastante calamitosa. Estima-se que o montante das perdas económicas causadas pelo terramoto possa ter correspondido a cerca de 75% do valor do produto interno bruto do ano de 1755*, o que é bastante revelador do seu impacto nefasto na economia do país.

Porém, foi também o terramoto que abriu caminho à ascensão de Sebastião José de Carvalho e Melo – mais tarde Marquês de Pombal – como o homem de força do governo de D. José. Sob a sua alçada seriam implementadas várias medidas económicas de carácter vincadamente proteccionista, destinadas a valorizar os sectores produtivos (agricultura e a indústria), a diminuir a dependência económica do exterior, a reduzir os desequilíbrios da balança comercial e, de uma forma geral, a favorecer o reforço do próprio Estado.

Havia que centralizar o Estado e recuperar economicamente o Reino, que já entrara numa situação de crise antes do terramoto, e que com este se agravara ainda mais.
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Ruínas de Lisboa após o Terramoto de 1 de Novembro de 1755 [Disponível na BNP Digital: http://purl.pt/27605]
Ao contrário do que costuma ser geralmente salientado, o terramoto de 1755 não teve apenas impacto destrutivo em Lisboa. Com o epicentro localizado a sudoeste de Sagres,  também a região algarvia foi muito afectada por esta catástrofe e pelo tsunami subsequente. Sobretudo a zona do barlavento: na cidade de Lagos, a devastação foi tal que os relatos da época dão notícia de uma urbe onde quase todos os edifícios ficaram em ruínas e se registaram algumas centenas de mortos. Mas também semelhante cenário se teria registado nas cidades de Faro e Tavira, onde inúmeras edificações religiosas e civis foram afectadas e também se registaram dezenas de baixas.
​​
De Faro, à época com cerca de 7000 habitantes e onde o sismo contabilizou 200 vítimas mortais, chegou-nos o testemunho impressionante do intelectual Damião António de Lemos Faria e Castro, aí residente:
“Em poucos minutos foi vista a formosa Faro um monte de ruínas, ela arrasada pelos fundamentos, raros edifícios escaparam, estes ficaram moídos. A devoção do dia havia chamado grande concurso às Igrejas, aonde muita gente ficou sepultada debaixo das suas abóbadas. As casas caídas que tomavam todo o vão das ruas, esmagou outra grande quantidade. Na praça se abriu uma rotura a que não se achava fundo” [1786].

A região demoraria muito tempo a recuperar desta catástrofe… Se em Lisboa, os esforços para recuperar a cidade foram imediatos, no que ao Algarve diz respeito, só na década de 70 é que teria alguma atenção por parte da Coroa e de Pombal, que então elaborou um plano para a sua “Restauração”. Plano este de curta duração e com escassos efeitos, visto que D. José morreu em 1777 e o Marquês foi imediatamente afastado do poder político, sem ensejo de continuidade de muitos dos projectos reformistas em curso.

Desta forma, quando em 1789 D. Francisco Gomes de Avelar é nomeado bispo do Algarve, ainda se viria a deparar com uma região onde os efeitos do terramoto eram bem visíveis, sendo que grande parte da sua acção pastoral se viria a concentrar precisamente na reconstrução de muitos edifícios religiosos que ainda padeciam, na viragem do século XVIII para o XIX, dos danos causados pelo terramoto.

A morosa recuperação da região encontra-se também atestada no relato do botânico e naturalista alemão Heinrich Friedrich Link, que visitou o Algarve em 1799. Sobre a cidade de Lagos, por exemplo, Link registava o seguinte:
"Quando o grande terramoto destruiu Lisboa no ano de 1755, o mar também aqui se agitou, entrou de rompante por uma enseada em direcção a terra e devastou a região em redor. (…) Vive muita gente de condição na cidade e vêem-se algumas belas casas, mas também ainda lugares deixados vazios pelo terramoto de 1755, que muito fez sofrer esta cidade”.
 
O terramoto deixou, pois, marcas profundas na região algarvia nas décadas seguintes. Mas será que podemos dizer que, por exemplo, os problemas económicos da região, ou mesmo do país, nessa época, resultaram única e exclusivamente desta catástrofe imprevista? Não, claro que não, pois embora esta os tenha agravado substancialmente, os problemas eram estruturais e pré-existentes.

Também hoje não podemos dizer que os problemas que enfrentamos perante os desafios levantados pela pandemia, sejam única e exclusivamente derivados dela. Já aqui, numa outra ocasião e num plano mais filosófico, comparei (com as devidas reservas!) o terramoto de 1755 com a Covid-19: ambos constituem eventos extremos e inesperados, desencadeados pela natureza, que colocam em causa a ordem natural do mundo e inspiram reflexões algo semelhantes; mas, além disso, ambos tiveram/têm consequências graves sob o ponto de vista social, económico e político.
​
Sendo certo que o Algarve precisa, actualmente, de uma atenção especial por parte do governo, dada a fragilidade da sua economia tão dependente do turismo, esperemos, no entanto, que os desafios que a região tem agora de enfrentar não se arrastem, sem resolução à vista e sem intervenção específica, como aconteceu em épocas anteriores da nossa História, de que o terramoto constitui um excelente exemplo.
 
* De acordo com: José Luís CARDOSO, “Pombal, o terramoto e a política de regulação económica”, in Ana Cristina ARAÚJO et. al. (org.), O Terramoto de 1755: impactos históricos. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp.165-181.

Para uma descrição detalhada sobre os efeitos do Terramoto de 1755 no Algarve, veja-se: Alexandre COSTA, Carla SEABRA, Sara NUNES, “O que nos diz a História”, in Alexandre COSTA e Maria da Conceição ABREU (Coords.), 1755 – Terramoto no Algarve. [s.l.]: Centro de Ciências Viva do Algarve, 2005, pp. 13-152.


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2020: o ano que a economia do Algarve não pode voltar a ter

20/10/2020

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Por Luís Coelho

O Algarve abanou quando em Março se percebeu que a pandemia ia forçar o País (e o mundo) a parar. De facto, todos sabemos que sem turismo a região é (quase) economicamente irrelevante. A ironia acabar por ser grande: depois de um 2019 absolutamente extraordinário a todos os níveis (20.9 milhões de dormidas, das quais 76.2% geradas por não residentes; 1.2 mil milhões de proveitos totais captados pelos nossos estabelecimentos de alojamento turístico classificados, valor que que representa um crescimento homólogo face a 2018 de 7.1%) 2020 prometia ser ainda melhor. ​Infelizmente, tudo mudou muito rapidamente. ​Atentemos então na Tabela 1 para perceber melhor o que se passou:
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Tabela 1

Como é possível verificar, face ao ano anterior, o Algarve conseguiu crescer em dormidas em Janeiro e Fevereiro de 2020. Estas são boas notícias para uma região historicamente assolada por níveis de sazonalidade elevados, os quais dificultam significativamente a gestão parcimoniosa dos avultados recursos – públicos e privados – dedicados à exploração do nosso fenómeno turístico.

Lamentavelmente, a pandemia ditou o colapso do sector turístico na europa (e no mundo) a partir, sensivelmente, do final do primeiro trimestre. Os dados disponibilizados na Tabela 1 mostram a violência do que se abateu sobre nós: quebras de 52% nas dormidas em Março que são até simpáticas quando comparadas com as perdas de quase 100% registadas em Abril e Maio. As más notícias não se ficam por aqui. Os meses de verão, momento alto da economia algarvia, também não correram bem. Em particular, face a 2019, Junho registou uma quebra na procura turística de uns impressionantes 86% e Julho de 65%. Agosto, mês-rei do sol e praia a sul, também não resistiu. Perderam-se 39% das dormidas em termos homólogos. No final e em termos acumulados, os primeiros oito meses de 2020 registaram apenas 5.4 milhões de dormidas, valor que choca quando comparado com os 15 milhões do ano anterior. A quebra na procura sentiu-se tanto no mercado interno como externo embora com intensidades diferentes, facto que fica bem patente nas Tabelas 2 e 3 abaixo:
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Tabelas 3 e 4

​Como é possível verificar, o mercado externo colapsou totalmente a partir de Março. As perdas homólogas de dormidas neste segmento são absolutamente indiscritíveis em Abril, Maio e Junho e extremamente pesadas em Julho em Agosto. Na vertente interna verificam-se também quebras acentuadas entre Março e Junho, havendo alguma "recuperação" em Julho. Valha-nos Agosto que trás consigo uma boa notícia: nesse mês verifica-se um crescimento homólogo de 10% face a 2019, o qual se explica pelo facto de muitos nacionais terem optado por ficar em Portugal em vez de passarem as suas férias no estrangeiro. Ainda assim, em termos globais, a perda no mercado externo é de uns impressionantes 76% (2.7 milhões de dormidas vs. 11.2 milhões em 2019) e de uns muito penalizadores 28% no mercado interno (2.7 milhões de dormidas vs. 3.8 milhões). Estes valores são, naturalmente, muito preocupantes para a região do Algarve e tornam-se agoniantes quando se monetizam, algo que fazemos com o auxílio da Tabela 4: 
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Tabela 4

​Chamo a atenção do leitor para três aspecto-chave presentes na Tabela 4. O primeiro prende-se com o facto do sector hoteleiro algarvio ter conseguido aumentar os seus proveitos em termos homólogos nos primeiros dois meses de 2020. O segundo resume-se a um número: 537 (mil euros). Foi esta a facturação combinada da totalidade das empresas hoteleiras do algarve em Abril. A variação homóloga registada nesse mês é de 99%, o que volta a registar-se em Maio. As perdas nestes dois meses são, pois, simplesmente catastróficas e exemplificam bem o aperto que a tesouraria deste sector levou por esta altura. Infelizmente, o cenário não se altera significativamente em Junho e Julho. Agosto é já um pouco melhor mas ainda assim fica bem aquém do que seria esperado num ano normal. No final, em termos acumulados, a hotelaria classificada do Algarve perdeu 64% da sua facturação nos primeiros oito meses de 2020 face ao registado em 2019.

Como sabemos, o governo decidiu apoiar as empresas nacionais implementando várias medidas de emergência. Permito-me destacar duas que me parecem especialmente importantes para as nossas empresas hoteleiras. A primeira é a do layoff, a qual penalizou fortemente os rendimentos dos trabalhadores mas desafogou a tesouraria das empresas, salvando - potencialmente - muitos postos de trabalho. A segunda diz respeito às moratórias sobre o crédito bancário. Esta é absolutamente vital já que, em face da natureza do seu activo e da sazonalidade do negócio, são muitas as empresas hoteleiras que dependem criticamente do acesso a este tipo de financiamento para poderem investir e sustentar o seu ciclo de exploração.

Chamo a atenção para este aspecto por uma única razão: não sendo possível antecipar o cenário de saúde pública em Portugal (e na Europa e no Mundo) em 2021, é crítico que o governo olhe para a região do Algarve com particular atenção. A nossa dependência dos humores da procura turística tornam-nos especialmente frágeis do ponto de vista económico e social. Urge por isso continuar a implementar medidas que ajudem de facto a conservar ao máximo o nosso tecido empresarial, o qual se caracteriza por ser altamente fragmentado, concentrado em torno do fenómeno turístico e assente em microempresas com competências de gestão muito modestas. Qualquer hesitação nesta matéria pode desencadear tensões sociais severas passíveis de ditar a destruição de um dos principais activos turísticos da região: a segurança e o nosso famoso saber-receber.
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Varejando robalos numa alfarrobeira

16/10/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Numa altura em que no Algarve tanto se discute água, regadio, culturas agrícolas e outras coisas que tais, eis que surge a criatividade humana, descomplicando o que antes parecia difícil.
Surgiu, aqui há dias, numa sessão de apresentação realizada a propósito da consulta pública da proposta de Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, a ideia de afectar terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN) à instalação de explorações aquícolas.

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O conceito subjacente é simples: sendo o Algarve a região turística que é, a brutal pressão urbanística que incide sobre o litoral deixa pouco espaço ao que quer que seja. Vai daí, há quem queira instalar em terra equipamentos e estruturas associadas à aquacultura e… não tenha onde!

Olhando em volta, o que é que se encontra de cantinhos disponíveis? As manchas de terrenos que, afectos à RAN, foram – sabe-se lá como! – resistindo aos ímpetos de betoneira, pois está claro! Recorrendo a um entendimento lato do que é a RAN e daquilo para que serve, apostando numa concepção lata de “reserva alimentar”, por oposição à mais estrita ideia agrícola, serviriam então estas bolsas de solos para estabelecimento de áreas de aquacultura (também aqui aparentemente com liberdades criativas na interpretação do conceito, regra geral aplicado em zonas de águas interiores e/ou de transição, como a Ria Formosa).

Ordenamento do território, dizem.

Em 1982, aquando do estabelecimento e criação da Reserva Agrícola Nacional, com o contributo decisivo de Gonçalo Ribeiro Telles, foi materializada uma visão estratégica, com o objectivo de salvaguardar os melhores solos agrícolas do País, consagrando-o como valor patrimonial essencial à permanência da Nação e recurso de segurança alimentar. Portanto, a ideia é reservar o solo pelo seu potencial produtivo, enquanto suporte de vida, e não apenas como suporte físico de fundação ou assentamento para tanques, bombas, casinhotos e afins – partindo do pressuposto optimista que a inovação não chega ao ponto de criar planos de água salgada em zonas mais interiores…

Ou seja, isso sim, era verdadeiramente um acto de ordenamento do território. Inscrever na paisagem uma estratégia, em que a capacidade de produzir a partir da fertilidade do solo – e não a mera capacidade de produzir em cima de terra – ficava salvaguardada, ao serviço da geração presente e das vindouras.

O Algarve não é extensivamente bafejado em termos de terras agrícolas, tendo hoje em dia cerca de 21% da sua área afecta a esse uso (ver aqui), sendo parte fruto da conversão de matos mediterrânicos. O sucesso desta actividade na região (que já originou saldo positivo na balança comercial, como ainda esta semana a Andreia aqui demonstrou), construiu-se historicamente sobre uma interpretação das condicionantes de solo e clima, a partir da qual foram apurados processos e técnicas construtivas para modelação de terrenos, acompanhados de criteriosa selecção de culturas, e sempre com grande respeito pela escassez do espaço útil e das terras com potencial produtivo – um traço cultural tipicamente mediterrânico.

No ano passado, dados do Instituto Nacional de Estatística indicavam que, ao nível de soberania e défice alimentar, Portugal era auto-suficiente em leite, ovos, azeite, vinho, arroz e tomate para indústria, ao passo que se mantinha deficitário nos restantes produtos agrícolas, nomeadamente nas carnes, frutos, cereais (excepto arroz), batata, leguminosas secas, sementes e frutos de oleaginosas (excepto azeitona) e gorduras e óleos vegetais (excepto azeite), resultando num grau de auto-aprovisionamento* de aproximadamente 75%. No peixe, importa lembrar que o bacalhau, com base em dados de 2018, representa cerca de 500 milhões de euros de importações na balança comercial portuguesa. Para a soberania alimentar nacional, arrisco especular que o contributo do Algarve será residual (aceitam-se correcções). Se o crédito externo fechar ou for dificultado – devido a, por exemplo, uma pandemia – e as importações alimentares cessarem ou diminuírem por não haver mais vendas a fiado, como ficamos? Quem escolhe quem deixa de comer o quê?

A aquacultura é uma actividade importante. Gera receita, gera emprego, diversifica a economia regional e está associada ao mar, um dos principais recursos da região, contribuindo para a auto-suficiência alimentar e para a prevenção da sobrepesca e dos seus impactos devastadores sobre os stocks pesqueiros e sobre toda a ecologia marinha.

Mas sendo certo que quem vai ao mar se avia em terra, não é em terra que o mar se ordena – ou, pelo menos, não nestas terras de RAN.

Porque comprometer o fundo de fertilidade que a RAN representa é um erro estratégico colossal, e totalmente desprovido de visão, que nos deixa ainda mais mal preparados para situações imprevistas e/ou de emergência, sendo a fome o risco primeiro no horizonte.

A monocultura económica do turismo deixou o Algarve apeado em tempos de pandemia, demonstrando à saciedade que não é uma aposta sustentável, dada a tremenda vulnerabilidade que revela face a externalidades – o que não impede que os do costume continuem a impingir as mesmas velhas tretas, como se isto fosse só um percalço, e não uma deficiência estrutural.

A aplicação dos dinheiros comunitários não resolveu nada de estrutural nesta matéria, fruto de todo um conjunto de circunstâncias que não cabe aqui analisar. Em tempos de novos quadros de apoio, e quando tanto ouvimos falar da “bazuca” de financiamento prestes a ser disponibilizada, e do seu tamanho, temos que acautelar que aqueles que ficam por ela responsáveis não disparam às cegas, nem têm dedos nervosos no gatilho, desejosos de gastar só por gastar, e em ideias mal consolidadas.

Sob pena de, no futuro como agora, bazucas se revelarem minas anti-pessoais, e rebentarem com passos em falso.

Mais do que o tamanho do martelo, interessa é acertar no prego. E o “prego” é a integração do Algarve e da sua economia no “Pacto Verde" europeu, com um modelo territorial verdadeiramente ordenado, que inscreva nas paisagens uma estratégia coerente e um futuro viável, e não uma manta de retalhos imediatistas – novamente, sem prejuízo do mérito das actividades em causa. Só assim iniciará a transição da sua economia para modelos assentes nos recursos e respeitadores das suas particularidades, em vez de se afundar no atraso de modelos meramente predatórios, quer das paisagens, quer das pessoas.

Além de que, bem vistas as coisas, peixe de sequeiro não é a mesma coisa…

* capacidade para satisfazer as necessidades de consumo de bens alimentares da população através da produção interna e/ou da importação de bens alimentares, financiados pelas correspondentes exportações
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Por um Algarve com futuro, com os olhos postos no passado

14/10/2020

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Por Andreia Fidalgo

Não há a menor dúvida de que, na história da região algarvia, há um “antes” e um “depois” do fenómeno turístico. O grande boom do turismo,  a partir da década de 60 do século XX, reestruturou e subjugou progressivamente toda a economia regional, criando o fenómeno da excessiva dependência desse sector que hoje, perante as actuais circunstâncias, não hesitamos em lamentar.

Se, por um lado, somos forçados a aceitar que o turismo foi o principal motor de “desenvolvimento” do Algarve nas últimas décadas, por outro lado também seremos igualmente forçados a reconhecer que, em larga medida, este mesmo turismo também propicia e fomenta alguns dos maiores problemas e desafios que a região tem de enfrentar. E são vários os que poderíamos aqui invocar, tais como, por exemplo: o acentuar das desigualdades económicas e sociais; a precariedade e sazonalidade do emprego; a destruição e ameaça constante ao património cultural e natural da região; a descaracterização urbanística… entre muitos outros. Acima de todos eles, paira sempre, obviamente, a questão da excessiva dependência da economia regional desse sector.

Mas, tal como diz o ditado, não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Por muito interessante que nos pareça, não creio que enveredar por um exercício de história contrafactual possa ser, neste momento, muito produtivo. Isto é, questionar como teria sido o “desenvolvimento” da região sem o “turismo” como o principal ingrediente à mistura será certamente um exercício interessante, mas que não nos leva a lado absolutamente nenhum. Nem creio, tampouco, que procurar culpados, ou tecer acusações de foro político-ideológico, ou até achar que se trata de uma conspiração cósmica (perdoem-me, mas há gostos para tudo!) seja igualmente produtivo. O “mal” já está feito, os problemas já existem, os desafios são constantes e o Algarve assume-se definitivamente como o exemplo máximo de que não se podem colocar todos os ovos no mesmo cesto.

O que há a fazer, agora, em plena crise pandémica, é colocar os olhos no futuro e pensar na melhor forma de se trabalhar no sentido da diversificação da economia regional como, de resto, já tem vindo a ser defendido em diversas ocasiões e em diversos meios, e inclusivamente também aqui no Lugar ao Sul, por vários dos nossos autores.

Colocar os olhos no futuro não significa, claro está, ignorar e desprezar o passado. Há que aprender com os erros cometidos, assim como beneficiar e explorar o que de positivo se fez. Será sempre mais fácil para qualquer um de nós que nos identifiquemos com o passado mais recente, recorrendo à História Contemporânea como uma aliada para a reflexão sobre os tempos que vivemos. Na verdade, é inevitável que o façamos, na medida em que o próprio turismo é fruto da Modernidade e da sociedade de consumo que a caracteriza.

Então e se recuarmos um pouco mais? E se pensarmos na região no contexto de uma economia pré-industrial? E se pensarmos na região antes do desenvolvimento das indústrias, antes do turismo ser sequer uma possibilidade? E se pensarmos num Algarve em que o sol e a praia não eram mais do que elementos de uma bela paisagem e não uma forma de lazer?

Nas economias pré-industriais, os rendimentos encontravam-se alicerçados na terra, nos recursos naturais e na capacidade de exploração e produção a partir desses mesmos recursos. Poderíamos até dizer que essas economias subsistiam precisamente por respeitarem os recursos que tinham disponíveis, retirando daí o melhor proveito possível. Nesta ordem de ideias, poderemos recordar que o Algarve subsistiu economicamente, durante séculos, com base na produção dos frutos tradicionais, de entre os quais o figo era o mais importante, e com base nas pescarias, particularmente do atum, mas também da sardinha e de outros peixes “miúdos”.
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Para ilustrar esta realidade, hoje relembro aqui um documento de autoria do Engenheiro José de Sande Vasconcelos (1738-1808), disponível online na Biblioteca Nacional Digital. Trata-se de um Mapa resumido dos géneros que entraram e saíram deste Reino do Algarve, entre Julho de 1780 e Junho de 1783. Em suma, neste documento estão registados todos os géneros que foram comercialmente transaccionados durante o referido período. Não o vou analisar exaustivamente, mas deixo aqui algumas das principais considerações que, na minha óptica, se podem fazer:

  1. O figo [em passa] é, de longe, o fruto através do qual se obtinha o maior rendimento.
  2. Além do figo, há que referir outros géneros igualmente rentáveis, como o atum salgado ou fresco, assim como outro tipo de pescado; o azeite; a amêndoa; a fruta de espinho (laranja); o sumagre; a cortiça...
  3. Os géneros que dão entrada correspondem necessariamente aos que escasseavam na região, ou não eram por cá produzidos: vários tipos de vasilhame, ferro, madeira, tecidos, entre outros; é significativa a entrada de trigo, centeio, cevada e milho, de forma a fazer face à escassez endémica de cereais de que sempre padeceu a região algarvia.
  4. O Algarve afirma-se como um local de passagem nas rotas comerciais, com géneros que denunciam a sua origem quer no  Atlântico Norte, quer no Mediterrâneo.

Posto isto, talvez a consideração mais significativa que se possa retirar da leitura deste documento diga respeito ao saldo da balança comercial francamente positivo, pois se de entradas (importações) se contabilizam 120.041$007 réis, de saídas (exportações) somam-se 408.986$998 réis.

Não obstante o facto de devermos olhar de forma crítica para a fonte documental em causa e, inclusivamente, de termos em consideração que a sociedade daquela época era marcada por uma forte desigualdade de rendimentos que se reflectia numa componente social igualmente muito assimétrica, parece-me que é sempre bom recordar que o Algarve, mesmo “isolado” como um reino à parte que era – embora, supostamente, apenas de forma simbólica –, teve capacidade de manter a sua vitalidade económica, aproveitando e rentabilizando os recursos naturais disponíveis. Soube fazê-lo sempre, ao longo dos séculos, explorando os seus principais frutos, e investindo nas pescarias. E soube fazê-lo mais tarde, com o desenvolvimento industrial, reinventando-se através das pescas com destino às conservas, e da exploração do sobro com destino à indústria corticeira, sem nunca, no entretanto, deixar de investir no pomar de sequeiro tradicional.

Isto da reinvenção, da diversificação e do respeito pelos recursos disponíveis foi algo em que, nós, os modernos (ou não seremos já nós os pós-modernos?!) falhámos redondamente! Falhámos, por exemplo, quando deixámos que o sector turístico – frágil e sempre dependente de terceiros – se transformasse na nossa principal e quase exclusiva fonte de rendimento; falhámos, por exemplo, quando desinvestimos sucessivamente nas pescas; falhámos, por exemplo, ao permitir o alargamento do regadio numa região tradicionalmente de sequeiro, comprometendo inclusivamente a existência daquele que é o mais vital recurso de todos: a água.

As fragilidades regionais estão, actualmente, mais a descoberto do que nunca, com a actual crise que enfrentamos e bastará, para tal, recordar que o Algarve foi a região onde mais aumentou o desemprego, nos últimos meses. Até porque isto de se dizer que “falhámos” na estratégia económica adoptada nas últimas décadas não é uma mera abstracção… Por detrás da abstracção existem pessoas, existe o mundo real e  o drama humano! Pessoas que perderam empregos, famílias que passam necessidades… Por isso mesmo, pergunto: até quando sacrificaremos o bem-estar dessas pessoas, em prol de modelos económicos esgotados, que não têm os interesses do todo em vista?
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E se a Mafalda fosse algarvia?

2/10/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Morreu esta semana Quino, genial cartoonista argentino que deixou órfã a sua mais conhecida filha, a inquieta e reivindicativa Mafalda, que desenhou durante cerca de uma década, e que se afirmou como um ícone cultural e político.

Eu não sou do tempo da Mafalda. Ela nasceu quase a meio da década de 60 do século passado, e eu só me juntei a ela no mundo uma arroba de anos depois. E só muito depois disso a conheci. Mas aprendi imenso com ela.

A Mafalda, na inocência aguerrida da sua ficcional meia dúzia de anos de idade, e no fervor arrebatador da afirmação da sua ética humanista e feminista, discutiu as grandes questões do seu tempo, do mundo e da sua Argentina. Guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado (o facto da sua tartaruga se chamar Burocracia diz muito), corrupção e nacionalismos foram temas fortes, por entre reflexões – ou aflições – em torno de uma democracia conturbada, em cujo horizonte se desenhava a depois concretizada ameaça de uma ditadura. E, claro, o assunto mais fracturante de todos: a sua aversão à sopa!

Ora as questões do meu tempo, que é o nosso tempo agora, são outras: guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado, corrupção e nacionalismos, por entre as convulsões de democracias que não parecem ter respostas para a emergência de autoritarismos de natureza e espectro político variado e que se precipitam para distopias que embora imaginadas, nunca pareceram concebíveis.

Bem vistas as coisas, a Mafalda não tem tempo nem idade. Tal como a consciência.

Esta semana também, no passado dia 1, o Lugar ao Sul assinalou o 4.º aniversário desde que os seus residentes assentaram arraiais neste espaço sem geografia.

Desde Outubro de 2016 que este espaço virtual é partilhado por pessoas de diferentes formações, profissões, actividades públicas e interesses, que aqui se juntam para em conjunto reflectir sobre o Algarve e o seu futuro. Num espaço livre e plural – que bom é poder não concordar! – e que funciona como tribuna que se abre para vozes que de outra forma dificilmente chegariam à praça pública.

Pensar o Algarve não é fácil. Pensar no Algarve muito menos.

Porque é uma região complexa. Porque é uma região pequena, onde quem diz o que pensa se expõe em circuitos muito curtos e pouco dinâmicos, com fraquíssima taxa de renovação, em que a cultura democrática é, apesar de tudo, incipiente, e onde discordar é antagonizar e não apenas... discordar.

Porque é uma região que, mais do que província, se mantém, em muitos aspectos, inexplicavelmente provinciana, no que isso de menos bom implica, com visões ultrapassadas, e que ultrapassadas se inscrevem nas pessoas e na paisagem. Não por atavismo ou falta de capacidade de se arrancar dessa condição, mas por falta de rasgo para o tentar. Condicionada falta de fé, de acreditar. Para depois se mobilizar e conseguir.
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A antítese da Mafalda, portanto. Porque a Mafalda, com o seu olhar e pensamento crítico sobre o mundo e as pessoas foi, e é, toda uma escola de lutadora cidadania, ingenuamente acutilante, ambiciosamente sonhadora e corajosamente desassombrada.   

Num tempo em que os muros do extremismo, da intolerância e do medo cercam as pessoas, isolando-as, em que a falsa promessa de segurança abafa a liberdade, em que a normalização e a higienização – muitas vezes em nome da diferença – purgam espontaneidade e diversidade, aumentando o desafio de tentar pensar abertamente, gosto de imaginar que, se a Mafalda fosse algarvia... teria gosto em fazer parte do Lugar ao Sul.

​E que aqui ajudaria, não obstante a modéstia deste espaço, a mostrar que o Algarve é capaz de (se) pensar!
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Pandemia, Saúde e Algarve

30/9/2020

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Por Maria Inês Simões (convidada deste Lugar ao Sul)

Num momento em que a Europa se confronta com o ressurgimento em força dos casos de COVID19 decidi convidar a Dr.ª Inês Simões, uma orgulhosa Algarvia, para nos dar a sua visão sobre o que esta pandemia pode significar para o nosso Serviço Nacional de Saúde, em particular na nossa região. Boas Leituras (Luís Coelho). 

Sobre a Maria Inês Simões:
. Assistente Hospitalar em Medicina Interna na Unidade Hospitalar de Portimão – Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE., Hospital Lusíadas de Albufeira e Clínica Mediarade em Portimão
. Coordenadora médica da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Barlavento
. Médica do Serviço de Helicópteros de Emergência Médica (SHEM) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM)
. Médica no Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM
. Médica no Serviço de Medicina Hiperbárica do Hospital Particular de Alvor
. Docente afiliada na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
. Docente convidada na Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve
Ah, a Inês é uma grande Sportinguista!
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​Sou médica, por vocação. Sou algarvia, com orgulho e paixão. Condições estas que poderiam tornar mais fácil esta coisa de falar sobre pandemia, saúde e Algarve. Mas não. Na verdade, quando tento juntar estas três palavras, obrigo-me a assumir que muito antes da pandemia, a saúde já era catastrófica no Algarve.
 
Sou médica, como já disse. Fiz toda a minha formação em Lisboa e, por isso, durante 15 anos estive afastada da realidade do Algarve.
 
Cheguei à Unidade Hospitalar de Portimão, Centro Hospitalar Universitário do Algarve, no final de Outubro de 2018, praticamente na mesma altura em que as temperaturas começam a baixar e as típicas infecções respiratórias fazem aumentar a afluência aos serviços de urgência.
 
E porquê dizer isto quando o que se pretende é falar de pandemia? Pois é, é que falar de pandemia, saúde e Algarve sem antes contextualizar que os serviços já estavam sub-dimensionados e sub-preparados para o que é o normal e expectável todos os anos, ano após ano, é apenas demagogia. Falar de pandemia, saúde e Algarve sem referir as pessoas que todos os dias, dia após dia, se sujeitam a trabalhar em condições deploráveis e sem mencionar as pessoas que não se sentem valorizadas (e valem tanto!) ou as pessoas que não são reconhecidas (e merecem tanto!), é apenas hipocrisia. Falar de pandemia, saúde e Algarve sem antes dizer que os serviços já funcionavam com recursos humanos (muito) abaixo dos mínimos, que é cada vez mais difícil ‘vestir a camisola’ quando se exige tanto e oferece tão pouco, é ignorar o verdadeiro problema da saúde no Algarve. A culpa não é só da pandemia. A culpa não é da pandemia.
 
No Hospital de Portimão, no início de Março, foram definidas duas prioridades: a organização do serviço de urgência/Unidade de Cuidados Intensivos e a constituição de uma equipa dedicada à COVID-19, com o intuito de priorizar a segurança. Do doente e dos profissionais. Foram definidos circuitos e foi criado um serviço de internamento COVID-19.  Houve muita ajuda externa e destaco o contributo fundamental dos outros agentes de Protecção Civil (incluindo o Instituto Nacional de Emergência Médica que foi irrepreensível na adaptação de normas e procedimentos e em garantir a segurança dos seus profissionais), das Câmaras Municipais, de privados e anónimos. Volto a frisar as pessoas, aquelas que trabalham em circunstâncias miseráveis, todos os dias, dia após dia, nos hospitais, centros de saúde e outras instituições de saúde, que se dedicam de corpo, alma e coração para evitar aquilo que tenho mais medo, a total desumanização dos cuidados.
 
A saúdo no Algarve não é fácil. Nunca o foi. O Algarve fica sempre esquecido de Setembro até Julho. Falta gente, faltam incentivos, faltam condições dignas de trabalho. As pessoas estão exaustas, multiplicam-se entre tarefas cada vez mais cansativas e burocráticas. São constantemente agredidas, física, moral e emocionalmente. Mas são, somos, resilientes e continuamos a acreditar que esta capacidade de adaptação será recompensada. Exigimos mudar o destino da saúde no Algarve.
 
Na verdade, a saúde no Algarve em tempos de pandemia não me preocupa mais do que antes. Preocupa-me sim, e muito, o que será da ‘saúde’ do Algarve depois da pandemia. O que me inquieta é a consciência de que o Algarve, que vive predominantemente do turismo, entrou e está a afundar-se numa verdadeira crise económica e financeira; que os próximos meses serão de muito sacrifício para todos e que haverá muito mais pobreza, fome e doença.
 
Sou médica, por vocação. Sou algarvia, com orgulho e paixão. Quem me conhece sabe que sou uma sonhadora nata e optimista por natureza. Condições estas que tornam inevitavelmente mais fácil falar desta coisa de pandemia, saúde e Algarve. É tão mais simples juntar estas três palavras numa frase quando, tal como eu, somos muitos a trabalhar com doentes e pelos doentes, por vocação; e no Algarve, com orgulho e paixão.
 
E como eu acho que tudo tem, às vezes inacreditavelmente, um lado positivo, que esta coisa da pandemia nos permita olhar com orgulho, dignidade e respeito para os nossos profissionais; e que os próprios consigam perceber o seu real valor. Somos incríveis mas faltava-nos aprender uma coisa: resiliência não é sinónimo de resignação.
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Paisagem cultural com uma pitada de figo à mistura: o Cerro de São Miguel

29/9/2020

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Por Andreia Fidalgo

Hoje, 29 de Setembro, celebra-se o dia de São Miguel. Não é meu costume relembrar os dias dos santos – ou, no caso em particular, dos arcanjos –, mas parece-me que este é especial e merece ser recordado, pela importância que detém na herança cultural da região algarvia.

Não há no Algarve quem não conheça o Cerro de São Miguel, também designado por Monte Figo, ou até, mais coloquialmente, por “cerro das antenas”. Este sobressai como o ponto mais alto de um conjunto de elevações de orientação paralela ao litoral, denominado Serra de Monte Figo, que se estende pelos concelhos de Faro, Loulé, São Brás de Alportel e Olhão. Com 411 metros de altitude, o cerro situa-se na freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, e constitui um miradouro privilegiado do sotavento algarvio: em dias claros, é possível avistar-se, daí, uma ampla extensão do território algarvio e contemplar as três sub-regiões naturais que tradicionalmente caracterizam o Algarve – o litoral, o barrocal e a serra – e cuja subdivisão tem em consideração as diferentes e particulares características geológicas da região.
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Pormenor da Carta Corográfica do Reino do Algarve de João Baptista da Silva Lopes, 1842.

​Por ser um elemento de elevado destaque paisagístico, a importância do Cerro de São Miguel como um ponto geográfico de referência é atestada desde a Antiguidade Clássica. Tudo indica que este cerro aparece pela primeira vez referenciado num escrito datado do século VI a.C. (I Idade do Ferro), um Périplo massaliota que se conservou na posterior composição poética Orla Marítima, de Avieno, autor latino do século IV d.C., e que contém a seguinte descrição:
“Em seguida estende-se o cabo consagrado a Zéfiro. Por fim, o cume da elevação chamada Zéfiris, cujas altas cristas sobressaem no cimo da montanha. Grande intumescência rasga os ares, envolvida sempre por uma espécie de névoa que lhe oculta o cume em nuvens. (…) Todo o que, de barco, ultrapassa a elevação de Zéfiris e penetra nas águas do nosso mar, de imediato é impelido pelo sopro do favónio".

​A interpretação geográfica mais comummente aceite destes versos aponta no sentido de que o cabo consagrado a Zéfiro não se trataria exactamente de um cabo, mas sim de um conjunto de elevações, mais concretamente a serra que se estende de Loulé a Tavira, sendo que o “cume da elevação chamada Zéfiris” seria identificado como o Monte Figo. Assim sendo, a tomar-se como válida esta interpretação, podemos considerar que o Monte Figo, devido à sua visibilidade, constituiu desde a Antiguidade um ponto de referência para a navegação, sendo que no século VI a.C. o culto que lhe era atribuído era o de Zéfiro, personificação grega do vento de oeste, propício à navegação.

É certo que o cerro se terá mantido como referência geográfica para a navegação durante muitos séculos. Por volta de 1600, na História do Reino do Algarve, Henrique Fernandes Sarrão refere-se-lhe da seguinte forma: “Os navegantes se guiam por este serro e lhe chamam Monte do Figo per outro nome e por ele tomam a barra de Faro”. O Monte Figo seria, por essa altura, tal como certamente sempre o tivera sido e assim continuou a ser, um ponto de referência importante para navegantes e para mareantes locais, que de dia por ele se guiavam para entrar na barra de Faro, como se de um autêntico farol se tratasse.
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O mesmo Fernandes Sarrão relembra que “neste serro há muitas árvores de fruito, e, em roda, muitas terras de pão” – de facto, entre as razões que explicam o povoamento do cerro na sua vertente norte, destaca-se certamente um solo propício ao cultivo dessas “árvores de fruito”, típicas de sequeiro. Outras razões se podem acrescentar, tais como a configuração do terreno, o poço com água potável e a acessibilidade. Não se trata propriamente do local mais aprazível para se constituir habitação:  na sua vertente sul, que apresenta grande declive, apenas alguns figueirais, pinheiros pouco desenvolvidos, medronheiros, carrasqueiras e arbustos de vários tipos o povoam; na vertente sudoeste, ainda mais hostil, o cerro está praticamente desprovido de vegetação; ainda assim, boa parte dele, sobretudo a vertente norte, é favorável ao cultivo de pomares de sequeiro.

Ainda que o pomar de sequeiro tradicional do Algarve não detenha, actualmente – e muito infelizmente! –, a importância que teve durante séculos no cultivo agrícola da região, ainda podemos imaginar, observando esta longa vertente norte, o que teria sido esse cultivo no seu auge, que a polvilharia certamente de figueiras, oliveiras, amendoeiras e alfarrobeiras, árvores constituintes do pomar misto de sequeiro típico da região. Aqui, há que dar o devido destaque à figueira, uma vez que o figo, para além da importância que detinha na alimentação da população algarvia, foi durante século o produto de maior exportação à escala regional.

O figo é, na minha perspectiva, o elemento chave para compreender o cerro de São Miguel, a dualidade toponímica que o caracteriza e o seu simbolismo no sotavento algarvio. É que esta paisagem cultural é, também, uma paisagem sacralizada… Será o figo, pela sua importância na economia local, também ele um fruto sacralizado? Ora vejamos.

Ao aceitarmos que o Zéfiris da Orla Marítima de Avieno possa ser identificado com o Monte Figo, depreendemos naturalmente que a sacralização dessa paisagem vem já desde tempos bem remotos. Algumas interpretações apontam no sentido de que o culto do Zéfiro se teria mantido até ao domínio cristão, altura em que teria passado para o do arcanjo São Miguel, o que não seria estranho, pois este arcanjo representa um sincretismo muito comum para o culto dos ventos.

Não podemos esquecer, porém, que entre o século VI a.C. – época em que sabemos com alguma segurança que o cerro era consagrado ao Zéfiro grego –, até ao domínio cristão consolidado no século XIII, existem duas ocupações significativas do território, a romana e a islâmica. Se pensarmos numa região fortemente romanizada, como era o caso, poderemos eventualmente assumir que um possível local de culto ao Zéfiro possa ter-se transformado num local de culto ao Favónio, o seu equivalente Romano, ou mesmo a um qualquer outro deus pagão da mitologia romana. Além do mais, se tivermos também em consideração que o culto ao São Miguel é antiquíssimo e que o próprio Imperador romano Constantino (272-337) – primeiro imperador a professar a fé cristã – lhe dedicou um templo perto de Constantinopla, então por que não assumir, eventualmente, uma origem mais antiga para o culto dedicado a esse santo no cerro? Aliás, durante o período islâmico é facto assumido que esse culto existia, como provável fruto da convivência entre moçárabes e muçulmanos, ou mesmo como resultado de se tratar de um arcanjo também incorporado pela religião islâmica. O culto a São Miguel em pleno domínio islâmico é, na realidade, atestado pela Crónica da Conquista do Algarve, no episódio da conquista de Tavira, datado de 1242, em que os mouros pedem tréguas aos cristãos durante o período do alacil – que corresponde à época das colheitas – cujo término indicado era, precisamente, São Miguel de Setembro.

Nesta Crónica reside também a chave que permite, a meu ver, explicar a existência dos dois topónimos: Monte Figo e São Miguel. “Monte Figo” pode derivar quer do próprio desenho do cerro, que há quem diga que se assemelha a um figo, mas, mais seguramente ainda, deriva do cultivo de figueiras que cobria grande parte do monte, cultivo este que – voltamos a frisar! – constituiu, durante séculos, a mais importante produção regional; por outro lado, tal como podemos ler na Crónica da Conquista do Algarve, é precisamente na altura do alacil que os mouros pedem tréguas aos cristãos para que possam colher as suas “novidades”, época que se estende do mês de Julho até São Miguel de Setembro, que se celebra no dia 29. É nesse dia que se acabam de colher os figos e, no dizer popular “em passando o dia de São Miguel é a figueira de quem quer”, ou seja, aí se inicia também o rabisco, em que qualquer pessoa pode colher das figueiras os frutos que sobraram.

Não parece, portanto, nada acidental que um Monte apelidado de Figo e um São Miguel que celebra o final da colheita desse fruto sejam dois topónimos para um mesmo local; antes pelo contrário, parecem tratar-se esses topónimos de duas faces de uma mesma moeda, pois se o primeiro alude a uma cultura tradicional de sequeiro que aí se praticava, assim como em toda a região, o segundo sacraliza a colheita desse fruto, marcando o seu término. E, sendo o figo a produção mais importante na região, não é de todo de estranhar que na tradição local tenham perdurado, até aos nossos dias, os dois topónimos.
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Fruto da sacralização do espaço, encontramos ainda na encosta norte uma ermida com o orago a São Miguel, e em tempos teria existido no topo do cerro um cruzeiro, do qual já não subsistem quaisquer vestígios. Quanto à ermida, trata-se de uma modesta edificação, sucessivamente reconstruída ao longo dos séculos, de onde é difícil retirar elementos estilísticos que nos permitam datá-la com alguma segurança; porém, os seus vãos de pedra que formam arcos ligeiramente quebrados parecem sugerir uma construção tardo-medieval, de estilo gótico, possivelmente anterior, portanto, ao século XVI. A singela ermida é composta essencialmente por dois volumes, um correspondente à nave e o outro à capela-mor, este último com uma cobertura muito curiosa, de quatro águas, mas de onde sobressai um invulgar volume cónico feito em argamassa. No interior, nada de grande importância se destaca no recheio, a não ser um painel de madeira com pinturas e dourados do século XVII e uma imagem do padroeiro datada do século XVIII.
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Em tempos, a ermida na encosta e o cruzeiro no topo eram locais onde afluíam com alguma frequência os fiéis. Existem notícias de animadas romarias que se faziam ao local, sobretudo na véspera e dia da sua festa, a 29 de Setembro, relacionadas com a celebração do final das colheitas do figo. Tradições enraizadas no cultivo da terra que se vão lentamente perdendo… Quer a sua realização e quer, inclusivamente, a sua memória.

Por isso mesmo, serve este breve apontamento de hoje para recordar o dia de São Miguel, o tradicional cultivo e colheita do figo e uma paisagem cultural que deles recebe os dois topónimos pelos quais ainda hoje é conhecida. Serve também para reflectir sobre o quanto cuidamos nós das paisagens culturais que nos rodeiam? Uma paisagem ameaçada, no sopé da sua encosta sul, por uma brutal espedrega, como tem vindo a ser notado recentemente; uma paisagem quase abandonada, naquilo que era a ocupação humana e o seu cultivo tradicional de sequeiro, na encosta norte; uma paisagem suja, descuidada e vandalizada no cume dos seus 411 metros de altitude; e, acima de tudo, uma paisagem acerca da qual as tradições e a memória histórica se vão progressivamente desvanecendo.
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É aqui, precisamente, que surge o grande desafio: como preservar esta paisagem e a memória histórica que ela encerra?
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Algarve: uma história sem jardins?

25/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Talvez pelas saudades colectivas induzidas por tempos de uma estranha pandemia que subtraiu, durante algum tempo, o espaço público ao espaço pessoal de cada um de nós, e ainda hoje o condiciona, os jardins parecem estar, felizmente, em alta.

Os jardins, no seu sentido mais abrangente, são uma constante tentativa de alterar uma condição de orfandade de Terra, recuperando o cordão umbilical que foi cortado pela nossa condição de filhos e filhas da Revolução Industrial e da posterior Revolução da Informação. Seres perturbados na nossa relação essencial com a nossa origem poeirenta, com a qual mantemos uma nostalgia genética que o consciente muita vezes combate, não cessamos de tentar realizar no espaço “o” inalcançável jardim – que alguns dirão ser do Éden – que a nossa psique exige.
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"O Jardim das Delícias Terrenas", de Hieronymus Bosch (1504)

Na Biblioteca Nacional de Portugal está patente uma exposição intitulada “Jardins Históricos de Portugal. Memória e Futuro”, que apresenta não só uma perspectiva sobre o acervo patrimonial de um determinado conjunto de jardins, como também olha o futuro e o papel que o jardim, enquanto repositório de memória e também processo de continuidade da identidade, pode desempenhar.

A própria RTP dedicou toda uma série de programas à temática dos jardins. No canal 1, preencheu manhãs dando a conhecer jardins históricos nacionais. Através do canal 2, proporcionou serões a percorrer jardins de arte.

Em comum, todas estas iniciativas têm o facto do Algarve delas não constar.

Porque o Algarve é, no geral, pouco dado a jardins, embora seja, por determinismo climático – sol e calor em abundância e intensidade – e opção económica – turismo – das regiões nacionais que mais ajuizada se revelaria se neles apostasse em força, pois a amenidade que proporcionam é factor de conforto e de atractividade.

Não porque os não tenha. Uma prova disso é o livro “Passeio Público: jardins, alamedas e recantos ajardinados” (editado em 2008, de Telma Veríssimo), que lançava um olhar sobre alguns espaços ajardinados, procurando deles deduzir uma cultura algarvia de espaço público.

E a juntar a essa obra, muitos outros estudos e inventários existem, concretamente os desenvolvidos no âmbito do curso de Arquitectura Paisagista da Universidade do Algarve.  

Ora, tendo os ditos jardins, a região só não os parece valorizar. O que francamente, não surpreende, face ao generalizado processo de gentrificação cultural e, consequentemente, paisagística, que atravessa.

Os jardins são espaços de verdadeira realização da comunidade, onde o espírito de lugar, que é também espírito das gentes, é partilhado e continuado por todos. Nos jardins, revela-se a sociedade. Nos comportamentos sociais, nos hábitos de utilização, nas sonoridades, na linguagem arquitectónica dos espaços, na presença da vegetação e na forma como ela é tratada, no asseio e cuidado emprestado à manutenção, entre muitos outros pequenos e grandes factores. É também espaço de higiene mental, de desafogo, descompressão, de (re)encontro com o tal sortilégio das nossas raízes telúricas perdidas. É espaço de contacto com nós próprios e com os outros. Onde nos permitimos ser humanos, numa sociedade cada vez mais desumanizada. Parques e jardins são mesmo viveiros de amor e de poesia.

Em Faro foi recentemente anunciado um investimento perto dos 2 milhões de euros, por parte do Município, na requalificação de dois “espaços verdes” emblemáticos, a Mata do Liceu e o Jardim da Alameda. Isto pode abrir novos capítulos não apenas para a conservação dos espaços públicos existentes na cidade, mas também perspectivas para a construção de novos espaços de raiz, concretamente jardins. No entanto, tendo em conta a dendrofobia vigente um pouco por todo o lado, e concretamente em Faro – já se abateu, inclusivamente, sobre o próprio Jardim da Alameda – importa perceber o que se entende por requalificação.

Veja-se o exemplo de Silves, em que a requalificação do jardim no Largo da República causou – e causa – polémica pelo abate de parte importante da vegetação existente (aparentemente fundamentado por um estudo do Instituto Superior de Agronomia, sobre o estado fitossanitário das árvores e uma avaliação de risco das mesmas). Não obstante eventuais razões, o resultado é um espaço desprovido de amenidade (pelo menos enquanto as novas árvores não crescem) e despido da própria memória e identidade.

Os jardins não param no tempo – aliás, o tempo é sempre o material mais difícil de trabalhar num jardim. Desengane-se também quem isso pensa. Até mesmo os jardins históricos, com desenhos datados de determinada época, estão sujeitos a vivências contemporâneas, caso contrário seriam peças de museu. Por isso, é natural e desejável que os espaços públicos também evoluam. Salvaguardando, naturalmente, aquilo que é o património que encerram, quer se trate de árvores, elementos construídos ou… um espírito, uma memória. Mas dando respostas adequadas à sociedade que os vive.

Talvez aqui tenha acontecido isso, e as respostas dadas digam muito sobre nós, enquanto todo.  
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Portanto, a questão não é tanto que os jardins do Algarve não tenham História. É mais perceber se o Algarve quer ter uma história com jardins.
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O trimestre horribilis

22/9/2020

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Por Luís Coelho
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Todos sabíamos que compatibilizar turismo com a pandemia COVID19 seria difícil. Os números estão aí para, infelizmente, provar esta ideia. Em particular, o mais recente destaque publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a actividade turística revela uma quebra homóloga de -66.4% face a 2019 nas dormidas em estabelecimentos classificados em solo nacional. Uma análise mais fina dos números revela ainda que a queda do mercado nacional é expressiva (48.1%) e absolutamente dramática quando o foco é o mercado internacional: 73.9%.

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Adoro o fundo de uma barragem vazia ao pôr-do-sol!

10/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Num tempo que está a acabar, em que a arte podia ser livre, o filme “Apocalypse Now” deixou um vasto legado na História do Cinema e também na cultura popular. Uma das pérolas que ficam para a posteridade – pelo menos até que alguém a decida sanear e/ou higienizar – é a fala do Tenente Coronel Kilgore, quando, do alto da sua serena mas entusiástica desumanização, afirma: “I love the smell of napalm in the morning” (adoro o cheiro do napalm pela manhã).

Pois bem, olhando para a barragem de Odeleite nos seus 33% de capacidade de armazenamento ao pôr-do-sol, também eu tive o meu momento Kilgore, pensando como era simultaneamente hipnotizante e angustiante o cenário diante dos meus olhos.

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Perante tal secura, não pude deixar de regressar à velha mas sempre nova – porque sempre ignorada e secundarizada – preocupação da falta de água no Algarve.

Mas, porque ontem foi publicada uma entrevista com o Director Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, foi inevitável a instalação de alguma confusão. Isto porque, na abordagem a variados temas, foram ali apresentadas algumas perspectivas importantes para a reflexão, de que destacaria três.

Primeiramente, importa subscrever o princípio veiculado nesta entrevista de que, nestas discussões, não se deve perseguir determinada cultura. Centrar obsessões numa determinada espécie, seja na agricultura, na silvicultura, ou em qualquer outro contexto, é centrar o olhar na árvore – aqui literalmente – perdendo de vista a floresta. Além de que é como multar um carro em excesso de velocidade, quando na verdade é para a pessoa que o conduz que devemos olhar com espírito crítico...

Das ideias a destacar, começo pela ideia de que o ordenamento de culturas agrícolas pode, de alguma forma, ser empurrado para a esfera dos Planos Directores Municipais, ficando então sob a alçada e responsabilidade dos Municípios. A necessidade – ou, no mínimo, a conveniência – de uma organização e avaliação estrutural da produção agrícola na região (consoante parâmetros de solo, clima, disponibilidades hídricas, canais comerciais, apostas estratégicas dentro de grandes opções de plano, etc.) não parece muito compatível com a sua transformação numa manta de retalhos casuística, feita do somatório das decisões municipais – o que tornaria, de resto, redundante a respectiva Direcção Regional. É um daqueles casos em que os cacos de uma jarra partida, mesmo depois de colados com muito cuidado, já não encantam prateleira alguma.

A segunda, a economia da coisa, ou de parte dela. Foi lançado à discussão um volume óptimo de facturação global do abacate no Algarve algures na casa dos 53 milhões de euros (1.600 hectares assumidos como plenamente produtivos, produzindo cerca de 15 toneladas por hectare, vendidas a 2,2 €/kg), o que é muita fruta. Resta saber quanto é lucro, deduzindo os custos operacionais.

Foi, inclusivamente, feito notar como, dessa forma, o abacate se posiciona competitivamente muito acima do sequeiro – considerado inviável para base da agricultura regional, excepto em visões líricas e românticas – sem no entanto apresentar números que possibilitassem a comparação.

No entanto, sabendo-se que, por exemplo, a alfarroba se vendeu – no circuito sério, não naquele em que as sacas caem misteriosamente da traseira de umas carrinhas – este ano entre 12 e 13 euros a arroba (cerca de 0,87 €/kg), que ocupa cerca de 13.500 hectares na região e que pode ter uma produtividade na casa das 3 toneladas por hectare, o valor de facturação ascenderia a algo como 35 milhões de euros – aos quais há que subtrair também custos de operação, naturalmente.

Ou seja, o abacate, numa área de cultivo 8 vezes inferior, obtém um valor 1,5 vezes superior. Dá que pensar.

Mas sequeiro não é só alfarroba, pelo que importaria também depois juntar a economia de outras culturas, nomeadamente o figo. E importaria ponderar o valor dos serviços de ecossistema que os pomares tradicionais de sequeiro prestam ao nível da biodiversidade ou da captura do carbono, que no caso da alfarrobeira atinge valores na casa das 17/18 toneladas por hectare.

Regadio também não é só abacate, dir-se-á, e muito bem, na mesma linha. Não dispondo de números mais abrangentes para os dois regimes, torna-se impossível o avanço nesta ideia, mas fica o desafio.

Finalmente, a água. Na entrevista, é referido que no Algarve a agricultura capta cerca de 75% dos seus consumos de rega nos aquíferos, e que os seus consumos correspondem a 56% do total regional (embora dados oficiais apontem para 67%, o que é diferente). Seja quanto for, será que esse custo operacional é efectivamente pago? Isto porque, embora as explorações paguem a electricidade que alimenta as bombas nos furos e as necessárias licenças e taxas sobre os mesmos, não pagam os volumes de água propriamente ditos, como fazem outros consumidores. Tendo que o fazer, manter-se-ia o regadio economicamente competitivo?

Além disso, nestas contas de somar e de sumir que se vão fazendo, a competitividade económica é ponderada face ao défice ecológico, que no fundo representa a socialização dos custos não internalizados no balanço do regadio?

E a água, independentemente de ser tirada do subsolo ou de barragens, não pertence toda ao mesmo ciclo? Não tem também um valor ecológico na paisagem, através das suas funções vitais, por exemplo no solo? Não existem riscos de intrusões salinas nas extremidades costeiras dos aquíferos que se vão esgotando, não há o problema da redução da qualidade da água – muita para consumo humano – nos volumes que se vão reduzindo?

Se tudo isto estiver a ser ponderado, óptimo. Caso contrário, boa sorte para todos nós.
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De qualquer forma, já com tudo isto em mente, lancei um olhar bem mais descontraído à albufeira de Odeleite, apercebendo-me de que afinal está tudo controlado, e que esta coisa dos níveis da água engana muito...
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O touro mecânico da Ria Formosa

4/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Uma vez que aqui no Lugar ao Sul a maré – quase literalmente – é de Ria Formosa, e tendo em conta que ainda esta semana a Andreia Fidalgo foi ao baú da memória para nos trazer o seu apontamento sobre a Fortaleza de S. Lourenço, vamos lá remexer em mais velharias.

E aproveitando a oportuna lembrança da Andreia, sem nos afastarmos muito dela e com recurso a outras preciosidades que ela encontrou sob a poeira do tempo, e teve a gentileza de me indicar.
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A imagem acima é o Plano Hidrográfico das barras e portos de Faro e Olhão, de 1885.

Observa-se nesta carta como neste troço central da Ria Formosa a Barra do Lavajo, ou da Armona, com aproximadamente 2,3 milhas (algo como 4,3 quilómetros, sempre e naturalmente dependente da maré) de largura, constituía o mais amplo e significativo ponto de troca entre as águas oceânicas e o sistema lagunar. Sensivelmente a meio, estão indicadas as “pedras do antigo forte S. Lourenço”.
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Mais a Poente, é identificável o Farol de Santa Maria, erigido por volta de 1851.  
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E na Península do Ancão, mesmo no centro do que é hoje a Praia de Faro… a Barra do Encão, com cerca de 500 metros de largura!  
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Saltemos agora cerca de 30 anos, até 1916. 
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Na carta acima, é representada a barra e canais de Faro e Olhão, onde novamente os restos da Fortaleza de S. Lourenço marcam presença, e a Barra da Armona continua a ser um elemento preponderante. No entanto, neste intervalo, a sua amplitude reduziu-se para perto de 1,7 milhas (3,2 quilómetros, mais ou menos).

Nota também para a representação de arraiais de pesca na ponta da Culatra – então identificada como ponta do Cabelo – e na Armona. 
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Atalhando caminho, e avançando pouco mais de um século, até aos nossos dias, verificamos que o cenário mudou dramaticamente. Recorrendo já não à magnífica cartografia náutica, mas ao bem mais moderno e familiar Google Earth, é possível constatar que a outrora portentosa Barra da Armona está hoje reduzida a uma amplitude que andará na casa dos 550 metros, mais coisa menos coisa.
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Um aspecto determinante para explicar esta alteração profunda na morfologia desta zona é, sem dúvida, a abertura/alargamento, por dragagem, da Barra de Faro/Olhão e subsequente fixação com molhes, num processo que decorreu entre o final da década de 1920 e meados da década de 1950.

No entanto, mais do que para analisar casos específicos, este brevíssimo e muito simplificado exemplo serve para ilustrar, alertando para, um aspecto determinante para a compreensão da Ria Formosa: a sua dinâmica.

O sistema da Ria Formosa é constituído por cinco ilhas barreira e duas penínsulas, separadas por seis barras, que promovem a comunicação das águas interiores da laguna com as águas oceânicas. Estes elementos organizam-se de acordo com um grande dinamismo, em que a forma e extensão dos corpos arenosos é altamente mutável, em intervalos relativamente curtos, a par da migração e/ou abertura de novas barras e colmatação de outras. Das barras referidas, duas delas, a já referida Faro-Olhão e a de Tavira, encontram-se artificialmente fixadas, com recurso a molhes, sendo a sua manutenção assegurada através de dragagens periódicas para salvaguarda das condições de navegabilidade.

O corpo lagunar definido e confinado entre as ilhas e penínsulas e a margem continental é constituído por sapais, rasos de maré, canais de maré e pequenas ilhas de carácter lodoso ou arenoso, encontrando-se neste ecossistema vários habitats prioritários em termos de conservação da natureza, o que levou não apenas à classificação como Parque Natural, mas também à sua inclusão na Rede Natura 2000, a par da atribuição de outros estatutos de conservação.

Em termos de dinâmica do ecossistema, um dos aspectos mais marcantes prende-se com as trocas de água entre a laguna interior e o oceano, importantes não apenas em termos de prisma de maré – medida das trocas de água através das barras – mas também em termos de transporte sedimentar e respectiva influência na evolução da morfologia do sistema. Nesse enquadramento, as barras constituem-se como elementos determinantes, verificando-se que as mesmas (à excepção das artificialmente fixadas) se caracterizam por um regime migratório, onde se destacam as deslocações longitudinais, acumulando areias na extremidade de uma das ilhas e erodindo a extremidade da ilha seguinte.

Para lá destes padrões verifica-se ainda uma tremenda vulnerabilidade do sistema face a eventos climáticos extremos – como tempestades, por exemplo – que, no actual quadro de alterações climáticas tendem a aumentar a sua intensidade e periodicidade, pelo que a redução da exposição será de acautelar.

Os antigos conheciam bem e mantinham presente a consciência desta mutabilidade e quase volatilidade – temperamental, para os seguidores da Teoria de Gaia – e por isso baseavam as suas ocupações das ilhas-barreira em estruturas maioritariamente efémeras, com recurso a materiais locais, para que os inevitáveis estragos e perdas não fossem significativos.

É por isso que, quando olhos gulosos assentam sobre a Ria Formosa, pensando em implantar usos estáticos – por exemplo edificações – sobre um sistema elástico, convém não perder de vista esta imagem...
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Uma fortaleza submersa na Ria Formosa

2/9/2020

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Por Andreia Fidalgo

Na passada sexta-feira, o Gonçalo Duarte Gomes registou aqui, no Lugar ao Sul, as suas preocupações quanto ao uso totalmente desregrado da Ria Formosa e as consequências nefastas que as actividades recreativas desorganizadas poderão ter naquele que é um património de todos e que, por isso mesmo, deve ser preservado.

Creio que verdadeiramente se deve entender aqui o conceito de património lato sensu: acima de tudo, o património como algo que herdamos e damos a herdar, o que pressupõe que tenhamos consciência histórica do que nos precedeu, mas também de que o futuro pertence às gerações vindouras; o património como um elemento identitário fundamental, através do qual se gera e mantém o sentimento de pertença de uma determinada comunidade a um determinado local, pelo que a sua preservação se deve assumir como prioritária; e o património na suas múltiplas vertentes, que vão desde o património ambiental, ao património cultural material e imaterial.

A Ria Formosa, pela sua herança e pelas suas características únicas, dialoga com esta concepção mais abrangente de património.

Em termos históricos, por exemplo, seria impossível compreender a lógica de ocupação do território do sotavento algarvio desde os tempos mais remotos sem considerar a presença da Ria Formosa, que, se por um lado possui uma riqueza natural que lhe permitiu a alimentação e a economia das populações ao longo do tempo, por outro lado, é um sistema lagunar com uma morfologia muito própria que constituía uma barreira de protecção estrategicamente aproveitada contra os perigos que do mar ameaçavam quem estava em terra.

No entanto, quanto desse património que resulta da ocupação e exploração multissecular da Ria Formosa não estará já hoje esquecido e até negligenciado?

Hoje decidi trazer aqui ao Lugar ao Sul um breve apontamento sobre a Fortaleza de São Lourenço, que actualmente, além de uns escassos vestígios in situ, quase apenas subsiste na memória da comunidade local. A história desta fortaleza remonta ao período da Guerra da Restauração. Durante a União Ibérica (1580-1640), a costa algarvia tinha ficado algo vulnerável e desprotegida no que respeita à sua defesa militar, pelo que após 1640, com a Restauração da Independência, se procura reforçar militarmente alguns pontos estratégicos de maior fragilidade. É neste contexto que em 1653 se inicia a construção desta fortificação, com o objectivo de vigiar e defender do corso e da pirataria a barra marítima que então dava acesso à cidade de Faro (Barra da Armona ou Barra Grande).
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Configuração da costa entre a barra da Fuzeta e o Ancão, com a localização da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

É o Eng.º militar Pedro de Santa Colomba que sugere ao então Governador e Capitão Geral do Reino do Algarve que a fortaleza se construísse na ponta de uma elevação de areia, em plena Ria, perto da barra (a sul da ilha do Coco). Como tal, a sua estrutura e alicerces deveriam assentar numa grade de traves de madeira grossa e bem pregada, que seria preenchida com alvenaria miúda, sobre a qual se colocariam lajes a partir de onde arrancariam as paredes. Ademais, a fortaleza deveria compor-se de quatro baluartes.

As obras avançaram, e em Abril de 1654 há notícia de que a edificação estaria prestes a receber artilharia num dos quatro baluartes já concluído. No entanto, em 1657 ainda não estaria totalmente edificada e não demoraria muito tempo a que se começassem a revelar os problemas estruturais de uma construção em areal tão instável e sujeita às intempéries e aos avanços das marés, num sistema dinâmico como o que caracteriza a Ria Formosa. Logo em 1661, o forte teria começado a ruir, o que conduziu a uma posterior reconstrução.
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Na realidade, toda a história do forte iria assentar nessa dinâmica constante e sucessiva de ruína e reconstrução, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em 1755, o terramoto de 1 de Novembro arrasou por completo a fortificação, mas novamente foi concedida autorização para a sua reconstrução. Nos finais dessa centúria, é interessante observar os desenhos que Baltazar de Azevedo Coutinho, Capitão do Real Corpo de Engenheiros, nos deixou da Fortaleza e sua localização, no Livro “Fortificações do Algarve”, de 1798. Por essa data, a fortaleza tinha planta quadrangular e compunha-se de aquartelamentos, de um paiol de pólvora, de uma capela e de uma bateria artilhada com três peças de ferro de calibre 18, e duas peças de bronze de calibre 6. O desenho da planta regista, ainda, as ruínas de anteriores edificações da fortificação.
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Planta da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

Em 1821, as fontes documentais dão conta do total estado de ruína desta fortificação, sendo então completamente abandonada e progressivamente engolida pelo mar. Actualmente, ainda dela restam alguns vestígios visíveis na baixa-mar, nomeadamente três bocas de fogo de ferro, sendo que muitas das pedras da anterior edificação foram reaproveitadas pelos habitantes locais para delimitação de viveiros ou construção de habitações; mas acima de tudo, é interessante notar que a memória da Fortaleza de São Lourenço teima em persistir entre a comunidade local, nomeadamente entre os pescadores olhanenses e culatrenses que frequentemente se deslocam ao local para a apanha de polvos e que a ele se referem como “o Forte”.

A persistência da designação de “Forte” e também do topónimo “São Lourenço” na memória da comunidade local evidenciam a presença de uma herança patrimonial que ainda não está totalmente esquecida… Mas há que questionar o quanto dela verdadeiramente se conhece, e se efectivamente não estará deixada à sua sorte e abandono até que dela nada reste…

Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, da riqueza e diversidade patrimonial da Ria Formosa. Uma Ria que tem actualmente muito mais a oferecer, além das actividades recreativas prazerosas… Uma Ria que conta uma história multissecular, com alguns testemunhos bem visíveis, mas com muitos outros submersos nas suas águas cristalinas.
 
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NOTA: Os mais interessados poderão encontrar um estudo mais aprofundado sobre este tema na tese de mestrado em Arqueologia de autoria de Maria de Fátima Claudino, intitulada Forte de São Lourenço (Olhão): Arqueologia e História de uma Fortificação Moderna.
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Sou algarvio, e a minha Ria tem a favela ao fundo

28/8/2020

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Por Gonçalo Duarte  Gomes

A área da Brandoa, ali para os lados da Amadora, nos arrabaldes e às portas da capital Lisboa, foi durante muito tempo considerada a maior área urbana de génese ilegal da Europa, que é como quem diz, o maior bairro clandestino do continente.

Agora que entramos no último fim-de-semana de um Agosto de loucura algarvia que nem uma pandemia conseguiu travar, e que não corremos o risco de melindrar Nosso Senhor Turismo – vade retro – talvez fosse boa oportunidade para se falar de um certo “abrandoamento” que, de ano para ano, cresce na Ria Formosa...

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Não, não falo das ocupações ilegais em Domínio Público Marítimo nas ilhas-barreira. Isso é coisa que já tem indulto, bênção e bónus do regime, e a factura já está passada para gerações futuras, pelo que é deixar andar, e ver como se cose (ou coze!) a coisa com as alterações climáticas – comme d’habitude, de resto! Mas gosto da vossa forma de pensar.

Falo, isso sim, da proliferação e dispersão desenfreada e descontrolada de embarcações ao longo do plano de água e margens da Ria Formosa.

Barcos, barquinhos, barcões e, pasme-se, até casas flutuantes, praticamente tudo o que bóie serve para este caótico condomínio aquático, pouco menos do que ao sabor da vontade. Em época estival então, formam-se autênticos bairros flutuantes, como a foto acima tenta ilustrar, no caso ao largo da Ilha da Culatra.

A Ria Formosa é um espaço idílico, que exerce sobre qualquer pessoa um sortilégio irresistível. Junta a isso condições ímpares para a prática da náutica de recreio e para os desportos náuticos, algo que é incontestável, ainda que, numa opinião pessoal, mais nas vertentes “suaves” (ver aqui). Mais, tal vocação deveria ser plena e efectivamente assumida por todas as urbes ribeirinhas, localizadas no arco “continental” do sistema lagunar – insisto no facto do desporto escolar aí não passar, pelo menos nos meses mais quentes, por uma aposta consolidada, sistemática e abrangente na náutica, ser mistério incessante.

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No entanto, tal deve sempre ser ponderado no quadro da sensibilidade dos valores e recursos naturais presentes numa área que é, também, Parque Natural da Ria Formosa. Esta classificação é o reconhecimento último da presença de um modelo equilibrado entre as actividades humanas (produtivas mas também recreativas) e os valores ambientais que lhes servem de base.

Sendo equilíbrio a palavra chave.

A quantidade, densidade e desorganização que actualmente se verifica dificilmente trará benefícios a alguém. Desde o arrasar dos fundos – cujas pradarias são importantes habitats para espécies emblemáticas – pelo fundear das embarcações à ocupação desregrada de praias não regulamentadas (transformadas em sanitários a céu aberto, como no caso do pequeno bote em primeiro plano na foto, de onde desembarcaram quatro mânfios, orgulhosos do que iam fazer, cada um com o seu rolo de papel higiénico), passando pela erosão de margens e sapais causada pela ondulação do rasto das embarcações, pelos perigos para a navegação ou por águas residuais e/ou cinzentas deitadas borda fora em escape livre, os danos e riscos são variados.

Os benefícios, é certo, também existem.

Descer e subir embarcações, e abastecê-las, dá dinheiro. O vai e vem constante das carreiras de passageiros de e para as ilhas, e das marítimo-turísticas a descarregar lotes de turistas nos areais também, tal como os voos rasantes dos táxis marítimos – ultrapassados em velocidade apenas por essas pérolas dos mares que são as motas de água. Dos Alojamentos Locais flutuantes, nem falar! E todas estas actividades geram importantes empregos, dinamizando muitas outras actividades relacionadas.

Portanto, ainda bem que existem tais actividades, e que as pessoas contactam, usufruem e se deixam encantar por este património comum. Mas que não seja um amor de perdição.

Embora brutalmente resiliente, qual o ponto de ruptura do sistema da Ria Formosa, face à sua capacidade de carga? E no entretanto? E depois? Será a receita fiscal dessas actividades investida na preservação e recuperação dos ecossistemas? Abdicarão os promotores de lucros para esse efeito? Haverá recuperação possível? E serão esses mealheiros suficientes?

Para que este não se torne mais um caso de proxenetismo paisagístico no Algarve, mais vale prevenir, apostando atempadamente na organização e gestão do plano de água e suas interfaces terrestres, de forma coerente e equilibrada, para que todas as actividades possam coexistir, respeitosamente ajustadas à capacidade da Ria Formosa.

Para tal, há desde logo um longo caminho de capacitação das entidades administrativas e fiscalizadoras (Capitanias, Polícia Marítima e Vigilantes da Natureza à cabeça) pela frente. Com meios, recursos e... respaldo político para que possam cumprir a sua missão, num diálogo franco mas firme com todos os actores envolvidos.

Seria criminoso ver a Ria Formosa transformada na sucursal de Sotavento do chavascal verificado na costa a Barlavento, em que as grutas e algares, para além de uma barulheira muitas vezes ensurdecedora, se enchem de embarcações e dos mamíferos que dentro delas se atafulham, em densas nuvens de fumo, o que lhes permite saírem quais enchidos de fumeiro, direitinhos para as bem regadas e mal musicadas grelhadas mistas, em areais transformados em arraiais.

Agora parece que até uma rave flutuante se vai juntar a este circo ali para os lados de Lagos...
Sem fruição ou vivência. Apenas afluência.

A Ria Formosa vale tudo. Mas na Ria Formosa não pode valer tudo.
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A falta de água no Algarve só se resolve com um al-Sahhaf!

21/8/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Muhammad Saeed al-Sahhaf era o Ministro da Informação, e porta-voz do governo de Saddam Hussein, durante a invasão do Iraque, em 2003.

Porventura o mais fervoroso e pioneiro adepto do #vaificartudobem, al-Sahhaf ficou conhecido pelo seu optimismo néscio e pela capacidade de não deixar que a realidade e os factos afectassem o seu discurso. Particularmente famosa foi a sua alegação de não se verificar a presença de quaisquer forças invasoras na cidade de Bagdad quando, a poucas centenas de metros do local onde proferia a sua conferência de imprensa, as colunas de tanques da coligação ocidental se avolumavam.


Ora bem, já que o problema da falta de água no Algarve não é estruturalmente tratado, precisamos de alguém que, com esse abnegado mas cândido espírito de militante alucinação e simultânea alegria, nos convença que tem avonde d’água nesta região, suficiente para cobrir todos os desvarios, e que, faltando, teremos sempre mojitos, caipicoisas e beberagens que tais, como nos mostram os bonitos e influenciadores rabos e abdominais do Estangrã em silly season!
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Notícias recentes dão conta das reservas hídricas do Algarve não durarem para lá do final do ano, na sequência do relatório do Grupo de Trabalho de assessoria técnica à Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca, datado de 30 de Junho (disponível aqui).
​
Concretamente, e espreitando a actualização de Julho do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos, as reservas de superfície (independentemente do fim a que se destinam) algarvias estavam nisto:
Albufeira
Bacia hidrográfica
Capacidade
Funcho
Arade
56,2%
Arade
Arade
44,0%
Odelouca
Arade
55,0%
Odeleite
Guadiana
39,1%
Beliche
Guadiana
32,1%
Bravura
Ribeiras do Algarve
23,4%
Isto, é sabido, preocupa pouca gente – zero selfies com fish gapes e peace signs com uma barragem vazia em fundo, e em tão pouca água, um Presidente da República Mitch Bacano não salva ninguém… – e ainda menos entre a maior parte da gente que tem um papel mais preponderante, que é quem decide. Vai daí, e embora desde há muito se fale de medidas de racionamento dos consumos na origem, tarda em ver-se algo acontecer.

E o que é facto é que o Algarve se ocupa a sonhar não com utilizar melhor e mais conscientemente a água que tem, mas antes com dotar-se de infra-estruturas que lhe permitam continuar a desperdiçar água à bruta, seja por perdas ou projectos megalómanos - que se fazem não só de novas barragens (ver aqui) mas também do somatório de pequenos projectos, como aqui se abordava há coisa de um mês, relativamente a piscinas - seja a promover o aumento de culturas produtivas de regadio em regime intensivo – as quais, arrisco dizer (agradecendo genuinamente correcção em caso de erro), não servem sequer uma reserva estratégica de segurança alimentar da região, que não come o que produz, nem produz o que come…

Agora que o Reino Unido deu carta branca às viagens sem constrangimentos “covídicos” entre aquele país e Portugal, animam-se as hostes pela perspectiva de alguma mitigação de tesouraria adicional deste annus horribilis daquele que era o milagre económico mais sólido na história da Humanidade: o turismo algarvio.

O reverso da medalha desse encher dos bolsos, é, no entanto, o vazar adicional do odre regional em que se acumula a água, reduzindo a folga que advinha da redução dos consumos por menor número de visitantes estivais e, em consequência, da minimização do factor de ponta – razão entre os consumos máximos de determinado período e a média anual – num sector que representa 21% do total dos consumos regionais.

O impacto que isso pode vir a ter, num quadro de incerteza extrema quanto à generosidade do clima?
​
Como diria al-Sahhaf: “As nossas barragens transbordam. Os nossos aquíferos fazem repuxo. Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.”.
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Um mapa do Reyno do Algarve nos finais do século XVIII

19/8/2020

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Por Andreia Fidalgo

Em pesquisas recentes na Biblioteca Nacional Digital, deparei-me com um interessante exemplar cartográfico, intitulado Mappa Geografico do Reyno do Algarve, de autoria do Eng.º Baltazar de Azevedo Coutinho,  e datado de 1791. Já passei os olhos neste mapa, noutras ocasiões, mas a verdade é que nunca o tinha analisado com a merecida atenção.

É, a todos os níveis, uma peça cartográfica notável, quer pelo nível de informação que contém, quer pela sua beleza artística. Na senda do seu mestre Eng.º José Sande de Vasconcelos, Azevedo Coutinho deixou-nos um mapa que além de cumprir a sua função primordial de reconhecimento da região sob o ponto de vista da defesa militar, deixa também registada informação relevante sobre a organização e divisão administrativa do território e até sobre os recursos económicos aí existentes. Ora vejamos.
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No que respeita à organização administrativa do território – à qual já aludi anteriormente aqui no Lugar ao Sul –, o mapa é posterior às reformas pombalinas da década de 70 de Setecentos. Por alvará de 16 de Janeiro de 1773, o concelho de Alvor foi extinto e passou a integrar o concelho de Vila Nova de Portimão; o vasto e empobrecido concelho de Silves foi subdividido, dando origem a dois novos concelhos, o de Monchique e o de Lagoa; o lugar de Moncarapacho, dividido entre o termo de Tavira e o termo de Faro, passou a ficar inteiramente sob a jurisdição de Faro. Mais tarde, no Algarve oriental, seria fundada Vila Real de Santo António, oficialmente inaugurada a 13 de Maio de 1776, em cujo termo ficaria incorporado o entretanto extinto concelho de Cacela.

O mapa também reflecte a divisão do território por comarcas, que após a reforma administrativa pombalina se configuravam da seguinte forma: a comarca de Tavira, que incorporava os concelhos de Tavira, Loulé, Castro Marim e Vila Real de Santo António; a comarca Lagos, que contava os concelhos de Lagos, Albufeira, Portimão, Vila do Bispo e Aljezur; e a comarca de Faro, pertença da Casa da Rainha, constituída pelos concelhos de Faro, Silves e Lagoa. Quanto ao termo de Alcoutim, configurava uma excepção na realidade regional, pois à data encontrava-se incorporado na comarca de Beja.

Posteriormente, a organização concelhia do Algarve viria ainda a sofrer duas grandes alterações dignas de referência, que lhe conferiram a configuração que actualmente lhe reconhecemos. Por alvará régio de 15 de Novembro de 1808, o lugar de Olhão foi elevado a vila de Olhão de Restauração, e por alvará de 20 de Abril de 1826 oficializou-se a criação do concelho de Olhão, determinando-se que o seu território deveria englobar as freguesias de Moncarapacho, Quelfes e Pechão, até então pertencentes ao concelho de Faro. Por outro lado, já durante a Primeira República, em 1914, o concelho de Faro ainda veria o seu território ficar mais diminuído com a criação do concelho de São Brás de Alportel, que subtraiu ao concelho a freguesia com essa designação.

A criação dos concelhos de Olhão e de São Brás de Alportel diminuiu substancialmente o território do concelho de Faro, que já de si era bem menor do que outros concelhos algarvios, como Tavira, Loulé ou Lagos. Talvez seja caso para indagar se estes “golpes” não terão contribuído também, aliados a outros factores, para a incapacidade de Faro se afirmar, mesmo na actualidade, no desempenho do seu papel enquanto capital de distrito.

No que respeita aos recursos económicos da região, este mapa regista as principais produções, por concelho e respectiva comarca. Relembra o figo, a amêndoa e a alfarroba com uma produção generalizada a quase todos os concelhos algarvios, oscilando entre a mais intensa ou mais moderada; relembra a excepcionalidade de Monchique, capaz de produzir “toda a qualidade de frutas”, a que acrescem a madeira de castanho, as castanhas e o mel; relembra que a produção de vinho era bastante comum em concelhos como Faro, Albufeira, Lagoa, Portimão, Lagos e Silves; relembra, igualmente, a vocação de algumas localidades na produção de peixe seco e salgado, nomeadamente Vila Real de Santo António, criada especificamente para esse efeito.

Outro pormenor interessante é o facto de este mapa registar, ao longo do desenho da costa, a localização das armações de atum. São sete, as que aparecem registadas: Beliche, Almádena, Torralta, Torraltinha, Faro, Fuzeta e Tavira. Algumas décadas antes, o terramoto de 1 de Novembro de 1755 havia contribuído para a destruição substancial das almadravas algarvias, posteriormente revitalizadas com as reformas pombalinas, através da criação, por alvará de 16 de Janeiro de 1773, da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve.  Esta foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser instituída, e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre o atum e a corvina, reservando às restantes espécies o comércio livre.
​
O mapa apresenta outros mais detalhes por explorar, nomeadamente a nível da toponímia, da orografia e até dos eixos viários terrestres que ligavam (com muita dificuldade), o Reino do Algarve a Lisboa. Deixo aqui o meu convite, ao leitor, para explorar e analisar este belo exemplar cartográfico, que configura um testemunho de muito valor para a compreensão da história regional.
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Minha aldeia, voltei!

7/8/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes
Minha aldeia, voltei! Avé-Marias…
Teu crepúsculo de oiro até parece
Que me canta e me embala e me adormece,
A florir a amargura dos meus dias…
 
Como a urze das tuas serranias,
Poeta aqui nasci, sem que o soubesse,
E aqui, - visão de estrelas e de prece,-
Vi meu primeiro amor, quando me vias!
 
Minha aldeia, voltei! – Anoiteceu…
Sobre o meu coração como um ninho,
Estendes a asa de oiro do teu céu…
 
E ele dorme e sorri, - o abandonado!-
Como dorme e sorri um passarinho,
Sob a asa da mãe agasalhado.

Evocou-se em mim este poema de Bernardo Passos, intitulado “Regresso”, a propósito da notícia, fresquinha, de que quatro aldeias algarvias – Alte, Cachopo, Paderne e Parises, respectivamente dos concelhos de Loulé, Tavira, Albufeira e São Brás de Alportel – se vão preparar para integrar uma candidatura ao selo “Aldeias de Portugal”, uma rede nacional “de aldeias autênticas e genuínas”.

Não beliscando a bondade de qualquer iniciativa que pretenda dinamizar áreas de interior –mais ainda estando a sua dinamização por cá nas mãos da Associação In Loco, que tem provas dadas – há aspectos nestes programas que merecem alguma cautela.
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É destacado o enfoque que o título “Aldeias de Portugal” tem no potencial turístico de aldeias “autênticas e genuínas”, tendo por objectivo “preservar, valorizar e dar a conhecer a essência da vida nas aldeias”, através da consolidação dos “valores culturais” em que assenta a sua identidade e do incentivo à “partilha do estilo de vida dessas aldeias e dos seus habitantes, oferecendo aos visitantes uma experiência única de convivialidade e contacto com um Portugal autêntico”.

As quatro aldeias seleccionadas possuem claríssimas diferenças entre si, quer estruturais, quer funcionais. No entanto, partilham entre si – com excepção de Paderne – um padrão de desumanização e abandono.

Olhando para os dados dos censos populacionais à escala da freguesia, entre 1981 e 2011, Cachopo e Alte perderam, respectivamente, 63% e 51% da sua população. Em sentido contrário, em igual período Paderne aumentou a população em 13%. No caso da aldeia de Parises – a mais bonita de todas elas, digo desde já com confesso enviesamento – é mais difícil obter dados, já que o concelho de São Brás de Alportel possui uma única freguesia. No entanto, se considerarmos que nos dois terços da área desse concelho que são cobertos pela serra, correspondendo a cerca de 10.122 hectares, dificilmente se encontra 5% da população do mesmo, ou seja, nem 530 pessoas, dá para ter uma ideia do que por lá se possa estar a passar.

Se a isto juntarmos o padrão de regressão nas actividades tradicionais destas zonas rurais, nomeadamente na agricultura, pastorícia e silvicultura “tradicional” (termo arriscado, eu sei), falamos exactamente de quê, quando nos propomos preservar, consolidar, vivenciar e partilhar estilos de vida?

O próprio conceito das aldeias se proporem trabalhar para ser genuínas e autênticas é potencialmente problemático, pois faz imediatamente soar o alerta da folclorização, seja ela ao nível da arquitectura, dos hábitos, dos trajes, dos dizeres, entre muitas outras coisas. É que genuinidade e autenticidade construídas para uma candidatura… são artifícios. E parques temáticos já temos muitos.

Acresce que nestas coisas do turismo como fio condutor, é sabido – no Algarve de forma traumática – que a obsessão pela criação de “produtos” é meio caminho andado para esvaziar a essência das zonas bafejadas por tal milagre, deixando bonecos ocos que, em tempos como o presente, nem para miolo de enxergão servem e que o tempo apaga sem marca positiva deixada, de resto como outros programas no passado. Dir-se-á, até pelo cenário demográfico já invocado, que pouco há para estragar, nesse capítulo. E poderá até bem ser verdade, mas só se pede particular cuidado com isso.

Outra questão prende-se com o pensar as aldeias sem pensar as paisagens em que se inserem. Estando nós num contexto de vocação mediterrânica, a aldeia não existe sem a paisagem envolvente – de onde retira o sustento – da mesma forma que a paisagem depende em muitos aspectos das dinâmicas da aldeia, seja para organização e manutenção de estruturas ancestrais, seja para animação de vários processos. Há portanto uma dimensão telúrica e de profundidade paisagística que não pode ser esquecida.

Num programa como este, que pretende “estimular o surgimento de oportunidades locais de negócio através da valorização, promoção e comercialização de produtos locais, eventos tradicionais e serviços turísticos baseados nas experiências vividas”, como se processará este regresso ao campo, à aldeia, com turismo (lazer) a puxar por produção (labor)? Para onde se escoarão os produtos? Que camponeses híbridos daqui resultarão? i-agricultores, farm-villagers, de enxadas touch-screen? 

Poderemos ainda ser aquela “gente do campo”, simples e sem grande inquietação aparente, ao ritmo das estações, que “dorme e sorri [como] um passarinho, sob a asa da mãe agasalhado”? É que a sociedade da informação, nas suas diversas expressões, desassossegou-nos o espírito, e as alterações climáticas baralharam-nos as Primaveras e Outonos.

Ou os novos rurais “apenas” entregam chaves, mudam camas e informam sobre passwords de wifi?

Como (re)ruralizar? As paisagens resultantes da interacção da cultura contemporânea com um ecossistema em desequilíbrio e readaptação servirão este propósito?

Já agora, esta coisa do próprio conceito de “interioridade”, que no Algarve surge de forma cada vez mais vincada e inaceitável, por força das crescentes assimetrias regionais, comandadas pela maior ou menor proximidade do buliçoso litoral, tem muito que se lhe diga. Nesta nossa fímbria de terra, isto equivale a dizer que numa ridícula distância que oscila entre os 30 a 50 km na direcção latitudinal, a região se cliva por completo, passando da massificação para o despovoamento. Se pensarmos esta distância na unidade pela qual contemporaneamente a medimos, e que é o tempo, no intervalo de no máximo uma hora – mais coisa menos coisa – de caminho, o Algarve eclipsa-se.

A par de rejuvenescidas aldeias, e em seu auxílio, talvez a ideia de uma verdadeira coesão territorial no Algarve não fosse mal pensada… 

Bernardo de Passos era um poeta romântico, em que saudade e passado são temas constantes. E o romantismo é muito importante, na medida em que aporta a componente sentimental que é fundamental que esteja presente em tudo o que seja humano. Mas não pode estar só.

O delicado desafio que se coloca perante estas quatro aldeias, a equipa que vai gerir e acompanhar o processo e todas as comunidades e agentes envolvidos será o de descobrir as melhores respostas possíveis para estas, e muitas outras questões que seguramente surgirão, com o necessário compromisso entre esse romantismo bucólico e o necessário pragmatismo, fugindo ao pastiche e a uma interpretação urbana do rural.

Que o consigam, aqui se deixando votos de sucesso!
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Parabéns, Autódromo Internacional do Algarve!

31/7/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Numa altura em que pairam tantas preocupações sobre o futuro da economia algarvia, a notícia da passagem do circuito de Fórmula 1 pelo Algarve, que assim representa Portugal na mais importante competição automobilística internacional (parece-me a mim), vem mostrar a diferença entre equipamentos turísticos realmente diferenciadores e aqueles que são perfeitamente banais.


Se a região percebesse isso e optimizasse e dinamizasse estas estruturas enquanto ferramentas estratégicas para a atracção de outros sectores de investimento (se bem me lembro, ao projecto do autódromo chegou a estar associado um polo tecnológico), permitindo ao turismo servir de alavanca para a necessária diferenciação económica, em vez de sonhar com mais do mesmo para gastar a esmola dos 300 milhões de euros - que não surjam agora sonhos de mais 15 autódromos, atenção! - talvez o Algarve tivesse outra solidez.

Um bofetada de luva de condução que assenta a nível regional, nacional e internacional.

Pela mão do Autódromo Internacional do Algarve, que vê assim premiado um trabalho que vem de trás.

Parabéns!
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Os ingleses no Algarve do século XVIII não iam à praia: comercializavam figos e amêndoas

29/7/2020

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Por Andreia Fidalgo

Na passada sexta-feira, o Algarve voltou a receber notícias desanimadoras: o Reino Unido decidiu manter Portugal fora da lista dos corredores aéreos, tornando ainda mais negras as já magras potencialidades de recuperação do sector turístico regional.

Neste cenário não há grande margem para dúvidas no que respeita aos impactos negativos para a região. Tal como foi evidenciado pelo presidente da Região de Turismo do Algarve, João Fernandes, o mercado britânico representa, a nível do mercado externo, um terço das dormidas da região (33%) e quase metade dos passageiros que desembarcam no Aeroporto de Faro (49%).

Como recuperar deste golpe? Já várias estratégias têm sido apontadas – inclusivamente aqui, no Lugar ao Sul – a curto e a longo prazo. A curto prazo, passam evidentemente pela promoção do Algarve no mercado interno, com a captação de turistas nacionais, mas também no mercado externo, junto de outros países europeus em que as restrições de circulação não se imponham. A mais longo prazo, a estratégia terá de passar sempre pela diversificação da economia regional, o que permitirá reduzir a excessiva dependência do sector turístico.

A dependência do turismo é, obviamente, um reflexo da contemporaneidade, mas a dependência económica relativamente aos ingleses tem raízes históricas bem mais antigas. A propósito das restrições agora impostas pelo Reino Unido, tem sido por diversas vezes relembrado o Tratado de Windsor, assinado em Maio de 1386 entre Portugal e Inglaterra, e que é considerado a mais antiga aliança diplomática do mundo ainda em vigor.

Porém, no que diz respeito à problemática económica, é verdadeiramente significativo invocar os acordos e tratados assinados entre Portugal e a Inglaterra após a Restauração da Independência, em 1640: por acordo de 1642 e, sobretudo, após o tratado de 1654, aos comerciantes britânicos garantiu-se a liberdade de comércio e a liberdade religiosa, abriram-se os portos portugueses na Europa, mas também na Ásia e na África e facilitou-se o comércio colonial. Caso paradigmático é o da exportação do vinho do Douro, negócio que os britânicos dominariam a partir da segunda metade do século XVII, domínio este que não se limitava apenas ao trato comercial, mas que também envolvia todo o processo produtivo. Com o Tratado de Methuen, em 1703 – que, muito breve nas suas cláusulas, determinava que os portugueses retirariam as restrições à importação dos têxteis ingleses e, em troca, os britânicos reduziriam os direitos de importação do vinho português – assegurou-se a continuidade e hegemonia inglesa no lucrativo negócio do vinho, a que se associavam outros mais géneros.

Estes acordos, particularmente o Tratado de Methuen, transmutaram-se numa presença significativa de homens de negócios britânicos no território português, e acentuaram a dependência económica de Portugal face a Inglaterra.

Neste contexto, o Reino do Algarve não foi excepção. Na realidade, um dos problemas invocados para a ruína económica da região, na década de 70 do século XVIII, era precisamente a forte presença de algumas casas comerciais inglesas, que monopolizavam o comércio dos principais frutos regionais. A principal casa comercial, à época, era a do inglês João Lampriere, que sediara o seu negócio em Faro, apoiado numa rede de comissários distribuídos por todo o Algarve, e exportava os frutos regionais por comissão, sem que qualquer comerciante regional lhe pudesse fazer concorrência. A este somava-se o inglês, João Crispim de nome aportuguesado, que estabelecera uma outra casa comercial em moldes semelhantes à de Lampriere, ou ainda, a título individual, os ingleses João Keating e Parcar Pitts. Alguns destes homens eram oriundos de famílias inglesas que se haviam estabelecido no território algarvio a partir de meados do século XVII: parece ser este o caso, por exemplo, de Parcar Pitts, muito provavelmente descendente de Jan Parcher (Parker), mercador estabelecido em Tavira em 1651.
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Estes comerciantes ingleses alimentavam as rotas comerciais do Algarve com o Mediterrâneo e, sobretudo, com o Atlântico Norte, através da exportação dos frutos e géneros regionais de maior valor. Assim, para Gibraltar, Inglaterra, Irlanda, França, Países Baixos, Alemanha, Dinamarca, e até para a América do Norte, saíam do Algarve, pela mão dos ingleses, o figo, a amêndoa, a alfarroba, a laranja, o limão, o vinho, a cortiça e a cana. Essas mesmas rotas comerciais faziam chegar ao Algarve ferro, aço, madeira, alcatrão, tecidos variados, queijo, manteiga, arroz, entre outros géneros.

Podemos, em suma, dizer que o comércio regional estava dependente dos ingleses… Na mesma medida em que hoje podemos dizer que o turismo está, numa parte bastante substancial, dependente dos ingleses. E, tal como hoje se procuram estratégias para minimizar os efeitos económicos desta dependência em tempos de Covid, também naquela época se procurou diminuir a excessiva dependência que tinha o comércio regional dos homens de negócios ingleses.

Diminuir a dependência económica de Portugal face a Inglaterra foi uma estratégia claramente assumida pelo Marquês de Pombal através das suas políticas económicas e, inclusivamente, com a criação das companhias monopolistas pombalinas, mormente com a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. No que ao Algarve diz respeito, a estratégia adoptada passou por uma integração económica do Reino do Algarve no restante Reino de Portugal: aboliram-se os direitos duplicados que pagavam os frutos e géneros algarvios quando transacionados –  que até então eram tratados como se fossem oriundos de um reino estrangeiro –, e procurou-se que algumas das matérias-primas e produtos alimentares de que a região necessitava fossem fornecidos pelo Reino de Portugal, ao invés de serem importados do Atlântico Norte. Procurava-se, dessa forma, que a abolição de direitos pudesse resultar numa maior iniciativa e capacidade competitiva por parte dos comerciantes algarvios, e reduzir o monopólio dos ingleses na saída e entrada de produtos na região.

A estratégia pombalina acabou por resultar na região, dando origem, nas décadas seguintes, à emergência de comerciantes de origem portuguesa, que substituíram os ingleses no seu primado.
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Será caso para indagar se hoje, perante a situação actual, não nos faltará uma visão estratégica que produza efeitos mais duradouros. Procurar remediar a crise do turismo com o mercado interno, ou apelar a mercados externos alternativos ao inglês podem ser soluções a curto prazo – insuficientes, é certo! – mas o verdadeiro problema estrutural da região, ou seja, a excessiva dependência económica do sector turístico, mantém-se inalterado. A solução é a que tem vindo a ser já por diversas vezes notada, isto é, é fundamental diversificar a base económica da região. No entanto, esta solução requer uma visão estratégica ponderada e com efeitos a mais longo prazo - será que a saberemos, realmente, desenvolver?
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Algarve: o prenúncio de uma crise anunciada

28/7/2020

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Por Luís Coelho
O País está tristonho. O Algarve ainda mais. Desde Março que a COVID19 afasta os turistas de solo Luso, o que acaba por atingir muito negativamente o turismo, motor da nossa recuperação económica. As consequências para a nossa região? Nada de bom, infelizmente

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Uma alfarrobeira, uma amendoeira e uma figueira entram num bar

22/7/2020

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Por Andreia Fidalgo
Numa região em que a escassez de água é assunto premente– tal como já tem sido relembrado em diversas ocasiões aqui no Lugar ao Sul –, e onde, paradoxalmente, a cultura de regadio nunca teve tanta extensão como agora, nunca será demais relembrar a importância do sequeiro e das tradicionais árvores de fruto algarvias.
​

Historicamente, a tríade em destaque foi sempre a mesma, e compunha-se pela figueira, pela amendoeira e pela alfarrobeira. Não há corógrafo que não as invoque, desde Frei João de São José que, em 1577 das figueiras diz serem as que “se dão em toda a terra e é novidade de cada ano e mais certa que o pão”; ou João Baptista da Silva Lopes, em 1841, que do fruto das amendoeiras recorda que muito se exportava e que, quando amargo, dele se fazem licores, ou então “adoça-se fazendo-o curtir em água por alguns dias, e então serve para os doces”; ou Charles Bonnet, que, em 1850, a propósito da alfarrobeira relembra que, “tal como a figueira, é a árvore mais útil e mais produtiva desta província”, cujo fruto, “triturado serve de alimento aos cavalos, mulas e vacas”, mas também de alimento aos mais pobres.
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Esta tríade arbórea que sempre marcou a paisagem algarvia – e à qual se soma a oliveira, embora esta não seja tão exclusiva da região – foi durante séculos o sustento da economia regional, e os seus frutos alimento do povo; hoje vê-se relegada para segundo ou terceiro planos e substituída por outras árvores de fruto que canalizam e esgotam um recurso vital que a região, note-se bem, nunca possuiu em abundância: a água! Os antigos sabiam-no e, por isso, respeitavam as limitações naturais do território. E nós, na nossa ânsia desenfreada de produzir mais, melhor e o que está na moda, saberemos voltar a respeitar?...
​
Termino este breve apontamento invocando um poema de Leonel Neves, intitulado ​Em Louvor da Alfarrobeira, para que através dele possamos recordar a beleza singela das nossas tradicionais árvores de fruto.
Em Louvor da Alfarrobeira
           Todas são árvores de amar,
           estas que moram à nossa beira:
 
           A amendoeira, de namorar;
           amante esplêndida, a figueira;
           mas moça séria, para casar,
           fecunda e firme, – a alfarrobeira.

 
A mais bonita encanta e desespera
os namorados com seu riso breve.
Trouxe o inverno pássaros de neve
que acharam no Algarve a primavera,
 
e deles a amendoeira fez um véu
para os turistas que se encantam, vendo-a.
Mas cada flor que a tonta ofereceu
            é menos uma amêndoa…
 
A figueira é diferente: com seus modos
de matrona de beijos pequeninos,
embala a fome aos donos e a todos,
– pássaros, vagabundos e meninos.
 
Mas no Inverno já ninguém a ama,
e atira ao vento os braços desprezados,
            como uma mãe que chama
moços mortos no mar ou emigrados…

​A alfarrobeira, não! Séria, quieta,
mal se vê, não se despe, nem se perde:
concebe os frutos, íntima e discreta,
no silêncio da sua copa verde.
 
Fruto? Um esquife negro, nunca centro
de um bucólico olhar ou de uma gula.
O que é uma alfarroba? Pão de mula,
            com lágrimas lá dentro…
 
            Suor que em choro enrola
            tanta esperança morta…
Sementes de alfarroba que o Algarve exporta
            e que depois importa
            como tinta, como cola.
 
Tinta para um cartaz com amendoeiras,
cola de caixa com figuinhos lampos,
– são as lágrimas negras que nos campos
por nós choraram as alfarrobeiras.
 
Eu, que de todas sou bom amigo
e bom vizinho, sempre vos digo:
 
           A amendoeira, de namorar…
           Amante esplêndida, a figueira…
           Mas moça séria, para casar,
           – a alfarrobeira!


​Leonel Neves, Natural do Algarve
​
Faro: Universidade do Algarve, 1986.
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Arte de furtar

17/7/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Corria o ano da graça do senhor (um qualquer) de 1502, quando um planisfério náutico foi surripiado de Lisboa para Itália, no bolso de um tal de Alberto Cantino.

Nesse planisfério inscreviam-se a maior parte do mais importantes segredos da Coroa Portuguesa no que às navegações oceânicas e novas terras descobertas aos olhos europeus dizia respeito. Literalmente, lá constava o segredo que era a alma do negócio marítimo.

Cantino, espertalhão, conseguiu tal proeza através do suborno de um cartógrafo português cujo nome a História apagou - e pena foi, porque tão vil criatura merecia ser arrastada na lama para todo o sempre - que, por 12 ducados de ouro (maquia avultada à data, reconheça-se), fez cair por terra a estratégia portuguesa de manter oculta dos gulosos olhos das potências estrangeiras concorrentes a informação amealhada à custa de tanto suor, sangue e lágrimas - estas chegando mesmo a salgar o mar, segundo Pessoa.

Mais tarde, em 1652, é redigida em Portugal a seminal obra "Arte de Furtar" (furtar-me-ei à discussão da sua autoria, omitindo tal questão), que vê a luz cerca de um século depois.

Aí, basicamente, com seriíssimo humor e sublime ironia, é exposta a generalizada roubalheira e corrupção que marcava o ritmo do reino de Portugal logo após a Restauração, altura em que se viveu uma espécie de PREC seiscentista.

Há mesmo quem diga que não pede meças a uma "Arte da Guerra" ou ao maquiavélico "Príncipe". Mas como é tuga...

Serve tão singelo par de exemplos apenas para que não sejam tão duros com vós próprios ou com o País, quando olharem para os dias que correm, e vos parecer que tantos e tão descarados gatunos, salgados ou insossos, correm livres por aí...

E não se esqueçam que se há uma mão que estende, há outra que recolhe.
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“Sou algarvio
​e a minha rua tem o mar ao fundo”
 

​(António Pereira, Poeta Algarvio)

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