Por Andreia Fidalgo Não há a menor dúvida de que, na história da região algarvia, há um “antes” e um “depois” do fenómeno turístico. O grande boom do turismo, a partir da década de 60 do século XX, reestruturou e subjugou progressivamente toda a economia regional, criando o fenómeno da excessiva dependência desse sector que hoje, perante as actuais circunstâncias, não hesitamos em lamentar. Se, por um lado, somos forçados a aceitar que o turismo foi o principal motor de “desenvolvimento” do Algarve nas últimas décadas, por outro lado também seremos igualmente forçados a reconhecer que, em larga medida, este mesmo turismo também propicia e fomenta alguns dos maiores problemas e desafios que a região tem de enfrentar. E são vários os que poderíamos aqui invocar, tais como, por exemplo: o acentuar das desigualdades económicas e sociais; a precariedade e sazonalidade do emprego; a destruição e ameaça constante ao património cultural e natural da região; a descaracterização urbanística… entre muitos outros. Acima de todos eles, paira sempre, obviamente, a questão da excessiva dependência da economia regional desse sector. Mas, tal como diz o ditado, não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Por muito interessante que nos pareça, não creio que enveredar por um exercício de história contrafactual possa ser, neste momento, muito produtivo. Isto é, questionar como teria sido o “desenvolvimento” da região sem o “turismo” como o principal ingrediente à mistura será certamente um exercício interessante, mas que não nos leva a lado absolutamente nenhum. Nem creio, tampouco, que procurar culpados, ou tecer acusações de foro político-ideológico, ou até achar que se trata de uma conspiração cósmica (perdoem-me, mas há gostos para tudo!) seja igualmente produtivo. O “mal” já está feito, os problemas já existem, os desafios são constantes e o Algarve assume-se definitivamente como o exemplo máximo de que não se podem colocar todos os ovos no mesmo cesto. O que há a fazer, agora, em plena crise pandémica, é colocar os olhos no futuro e pensar na melhor forma de se trabalhar no sentido da diversificação da economia regional como, de resto, já tem vindo a ser defendido em diversas ocasiões e em diversos meios, e inclusivamente também aqui no Lugar ao Sul, por vários dos nossos autores. Colocar os olhos no futuro não significa, claro está, ignorar e desprezar o passado. Há que aprender com os erros cometidos, assim como beneficiar e explorar o que de positivo se fez. Será sempre mais fácil para qualquer um de nós que nos identifiquemos com o passado mais recente, recorrendo à História Contemporânea como uma aliada para a reflexão sobre os tempos que vivemos. Na verdade, é inevitável que o façamos, na medida em que o próprio turismo é fruto da Modernidade e da sociedade de consumo que a caracteriza. Então e se recuarmos um pouco mais? E se pensarmos na região no contexto de uma economia pré-industrial? E se pensarmos na região antes do desenvolvimento das indústrias, antes do turismo ser sequer uma possibilidade? E se pensarmos num Algarve em que o sol e a praia não eram mais do que elementos de uma bela paisagem e não uma forma de lazer? Nas economias pré-industriais, os rendimentos encontravam-se alicerçados na terra, nos recursos naturais e na capacidade de exploração e produção a partir desses mesmos recursos. Poderíamos até dizer que essas economias subsistiam precisamente por respeitarem os recursos que tinham disponíveis, retirando daí o melhor proveito possível. Nesta ordem de ideias, poderemos recordar que o Algarve subsistiu economicamente, durante séculos, com base na produção dos frutos tradicionais, de entre os quais o figo era o mais importante, e com base nas pescarias, particularmente do atum, mas também da sardinha e de outros peixes “miúdos”. Para ilustrar esta realidade, hoje relembro aqui um documento de autoria do Engenheiro José de Sande Vasconcelos (1738-1808), disponível online na Biblioteca Nacional Digital. Trata-se de um Mapa resumido dos géneros que entraram e saíram deste Reino do Algarve, entre Julho de 1780 e Junho de 1783. Em suma, neste documento estão registados todos os géneros que foram comercialmente transaccionados durante o referido período. Não o vou analisar exaustivamente, mas deixo aqui algumas das principais considerações que, na minha óptica, se podem fazer:
Posto isto, talvez a consideração mais significativa que se possa retirar da leitura deste documento diga respeito ao saldo da balança comercial francamente positivo, pois se de entradas (importações) se contabilizam 120.041$007 réis, de saídas (exportações) somam-se 408.986$998 réis. Não obstante o facto de devermos olhar de forma crítica para a fonte documental em causa e, inclusivamente, de termos em consideração que a sociedade daquela época era marcada por uma forte desigualdade de rendimentos que se reflectia numa componente social igualmente muito assimétrica, parece-me que é sempre bom recordar que o Algarve, mesmo “isolado” como um reino à parte que era – embora, supostamente, apenas de forma simbólica –, teve capacidade de manter a sua vitalidade económica, aproveitando e rentabilizando os recursos naturais disponíveis. Soube fazê-lo sempre, ao longo dos séculos, explorando os seus principais frutos, e investindo nas pescarias. E soube fazê-lo mais tarde, com o desenvolvimento industrial, reinventando-se através das pescas com destino às conservas, e da exploração do sobro com destino à indústria corticeira, sem nunca, no entretanto, deixar de investir no pomar de sequeiro tradicional. Isto da reinvenção, da diversificação e do respeito pelos recursos disponíveis foi algo em que, nós, os modernos (ou não seremos já nós os pós-modernos?!) falhámos redondamente! Falhámos, por exemplo, quando deixámos que o sector turístico – frágil e sempre dependente de terceiros – se transformasse na nossa principal e quase exclusiva fonte de rendimento; falhámos, por exemplo, quando desinvestimos sucessivamente nas pescas; falhámos, por exemplo, ao permitir o alargamento do regadio numa região tradicionalmente de sequeiro, comprometendo inclusivamente a existência daquele que é o mais vital recurso de todos: a água. As fragilidades regionais estão, actualmente, mais a descoberto do que nunca, com a actual crise que enfrentamos e bastará, para tal, recordar que o Algarve foi a região onde mais aumentou o desemprego, nos últimos meses. Até porque isto de se dizer que “falhámos” na estratégia económica adoptada nas últimas décadas não é uma mera abstracção… Por detrás da abstracção existem pessoas, existe o mundo real e o drama humano! Pessoas que perderam empregos, famílias que passam necessidades… Por isso mesmo, pergunto: até quando sacrificaremos o bem-estar dessas pessoas, em prol de modelos económicos esgotados, que não têm os interesses do todo em vista?
1 Comment
José Lúcio Amaral de Almeida
14/10/2020 14:14:28
Artigo magistral, como é apanágio da Autora. Acerta na "mouche" quanto aos temas que trata e escreve com evidente e sólido conhecimento de causa. Ao contrário daqueles que falam do que não sabem, nem querem saber, a Autora, Dra. Andreia Fidalgo, estudou profundamente os assuntos e a História, e dá-nos testemunho do resultado de tal estudo. Para ler e reler. Parabéns, Dra. Andreia Fidalgo, é uma "fidalga" nos assuntos que aborda e como os aborda !
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