Por Gonçalo Duarte Gomes Foi lançado à consulta pública o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR - aqui), o documento para a recuperação pós-Covid, que define os alvos para as “bazucadas” dos 14.000.000.000 € de dinheiro fresco que aí vem, direitinho da União Europeia! Bom, se calhar chamar a isto plano foi algo voluntarioso, pois parece ser algo meramente para consumo imediato (ao leitor mais desatento poderá mesmo ficar a sensação de estar perante um qualquer folheto de campanha eleitoral).
Dimensões com grande foco em transições, componentes, reformas e investimentos… tudo pronto até 2026! Irreal ou optimista? Tanto faz, desde que os contribuintes dos restantes países da comunidade – quem realmente está a meter munição na bazuca – acreditem que o dinheiro não vai ser gasto numa folia semelhante a outras do passado, que, embora deixando o país de cara mais lavada, não o catapultaram para um verdadeiro e territorialmente coeso desenvolvimento. Pelo caminho, ficam – novamente – defraudadas as expectativas de uma dimensão estratégica, de robustecimento do país, estrutural e operacionalmente, numa lógica pensada, de projecto de futuro, desde logo assente num diagnóstico dos erros passados, para evitar repetições indesejáveis. Nada disso. A imagem que temos é então a de uma correria desenfreada, numa pressa esganada dos comensais, para se sentar à mesa, com um apetite digno dos gigantes Gargântua ou Pantagruel. Que a toalha não esteja na mesa, que os talheres e a baixela não batam certo ou que os lugares nem estejam organizados, não parece preocupar ninguém. Muito menos que aquilo que da cozinha vem esteja mal cozinhado, mal temperado ou, pura e simplesmente, cru. Sobre todas essas minudências, aplicamos o bálsamo redentor do mui belo conceito de resiliência, que enche bem o ouvido, e mastigamos, na esperança que saiba a algo remotamente parecido com frango. A resiliência é hoje uma palavra estilo canivete-suíço: dá para tudo. Por defeito profissional, convenci-me de que a ecologia nos fornece das explicações mais completas de que podemos dispor para entender praticamente a totalidade do que nos rodeia. Vai daí, agarro-me, por exemplo, a uma formulação conceptual postulada por C. S. Holling, em 1973, e que entende a resiliência como a medida da persistência dos sistemas e da sua capacidade de absorver mudança e perturbação, mantendo as mesmas relações entre populações ou variáveis de estado. Isto tem então a ver com continuidade na mudança e capacidade de incorporação da perturbação na identidade do sistema. Ora, se este plano, à boa moda d’”O Leopardo”, romance maior de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, promete que tudo mude, para que, na verdade, tudo fique na mesma, dá que pensar. Para mais na nossa região, das mais violentamente atingidas – em consequência de opções próprias, importa não esquecer – pelos efeitos da pandemia. Portanto, quando nos acenam com um regresso ao anterior normal e, com isso, a mera retoma do business as usual algarvio (por exemplo, sem ser para a questionável ponte entre Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana e a necessária variante da EN125 em Olhão, o PRR prevê 0 € de investimento para a reforma da mobilidade na região), percebemos que a tal dimensão estratégica de mudança não passa de texto para europeu ver. Um exemplo prático é ilustrado no domínio dos recursos hídricos. São 200 os milhões destinados ao investimento no Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve (PREHA), ligeiramente abaixo dos 228 anunciados em Setembro passado. Investir nesta questão é fundamental, e saúda-se, mas esse plano (analisado em maior detalhe aqui) é mais um incentivo para que a região, em vez de ajustar as suas necessidades às disponibilidades, procure sempre mais e mais disponibilidades, que cubram as crescentes necessidades que vai criando, num contexto de cada vez menos chuva. Além de apostar na captação de água no Guadiana (um investimento seguramente significativo), sem no entanto referir nada sobre diplomacia e gestão solidária, partilhada com Espanha, da bacia hidrográfica internacional do Guadiana. Pequenos saltos de fé, de nenúfar, em nenúfar, aparenta. O próprio PRR reconhece que no “Algarve, região muito dependente dos rendimentos da atividade turística, a persistência de baixas taxas de precipitação mostra já o agravamento desta tendência, com uma redução muito significativa da precipitação desde meados da década de 1990: a média móvel de 5 anos reduziu-se muito significativamente, atingindo valores próximos de 40% nalgumas estações” (pág. 86). O que não impede que as soluções que se predispõe financiar, num claro crédito ambiental, não questionem consumos através de uma adaptação de modelo. Fica assim cada vez mais longe um ainda outro plano, o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve. Há portanto um plano que vem dar dinheiro a um plano que já existia, que no entanto acaba por contrariar outro plano antecedente. Maldita geometria descritiva. Parece-me assim desenhar-se uma questão relacionada com um conceito que tenho defendido em vários escritos, também ele relacionado com resiliência: a “resiliência negativa”. Regra geral, a resiliência foca-se em sistemas que se encontram em estados geralmente favoráveis, salvaguardando a sua capacidade para recuperar de perturbações que coloquem essa condição em risco. Mas e se a identidade do sistema for o desordenamento, a falta de estrutura, a entropia? Nesses casos, defender a resiliência será defender a capacidade de manutenção e/ou recuperação da (des)estrutura, implicando a anulação sistemática dos efeitos causados – ou tentados – por quaisquer impulsos ordenadores. Ou seja, estamos assim tão desejosos de reorganizar o Algarve, de forma a colocá-lo precisamente no mesmo rumo, e exactamente onde e como estava, antes de ser destroçado por esta pandemia? Ou, para lá de um PRR, o Algarve precisava de algo mais como um Plano Poupança Reforma (PPR) de base territorial? Se ao menos houvesse tempo para pensar nisso...
2 Comments
rosa guilhermina lomba correia guedes
24/2/2021 12:23:56
Vai participar na C. Pública?
Reply
Paulo Penisga
12/3/2021 14:44:41
Excelente artigo. Partilho o receio do autor, de que tudo fique na mesma, pouco mude ou até piore. É a questão da água; quanto ao modelo de turismo no PRR nada muda na região, o entendimento continua a ser quantos mais vierem melhor, sem preocupação de sustentabilidade e defesa de recursos naturais. Não há salvaguarda da reserva ecológica e agrícola do Algarve dos interesses vorazes da expansão urbana exagerada. Quanto há cultura como o governo não definiu uma estratégia, não há propostas de enquadramento, gestão e expansão das atividades culturais, recorre-se mais uma vez à estafada e enganadora evocação das indústrias culturais e criativas... de que podem candidatar-se e apresentar propostas... Para quem não vive de ilusões todos sabemos da vacuidade e vazio disto... quanto muito servirá dinheiro fácil com a máscara de cultural a reboque do turismo. Aqui não estamos muito distantes dos PIN da dupla Sócrates/Pinho e do encantador Allgarve.
Reply
Leave a Reply. |
Visite-nos no
Categorias
All
Arquivo
October 2021
Parceiro
|