Por Gonçalo Duarte Gomes A Costa Vicentina, bem como a faixa litoral que lhe dá continuidade pelo Sudoeste Alentejano acima, é das últimas pérolas ainda não muito avacalhadas que o Algarve e o País possuem. Aquelas paisagens, onde a terra se sublima no mar e o mar se condensa na terra, são de tal forma especiais que desde há milénios são consideradas sagradas pelos povos que as ocupam, como desde logo o atestam os monumentos megalíticos por aquelas bandas erigidos, celebrando o Promontorium Sacrum, qual autêntico templo. Mas pasmem-se, boa gente, há penicos a ser vazados na igreja. Penicos com rodas. Ano após ano, o autocaravanismo tem proliferado um pouco por toda a parte. Como sempre, é bom ter visitas mas, como em tudo, importa não apenas que sejamos bons anfitriões, mas também que os comensais sejam corteses e respeitadores. Quando assim não é, temos a caravana nas couves.
Na Costa Vicentina este fenómeno alastrou a tal ponto que é já raro encontrar localidade ou principalmente acesso ou estacionamento de praia que não esteja repleto destes veículos, alguns deles verdadeiros prodígios da improvisação hoteleira sobre rodas, em patuscas agremiações a fazer lembrar favelas motorizadas, com acampamentos complementares e esgotos a céu aberto. Nada me move contra o autocaravanismo ou outras formas de viagem e contacto próximo com a Natureza. Pelo contrário, acho que maioritariamente traduzem uma atitude de desprendimento e simplicidade que é extremamente valiosa. Apenas me abespinham práticas selvagens, principalmente quando lesivas de um património comum de valor incalculável. Portanto, aos bons autocaravanistas que possam ler estas linhas: não sendo de vós que se fala, não caiam na tentação de corporativamente parir dores alheias, até porque quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele e o bom autocaravanista deve ajudar a purgar o mau. E, já agora, também não é às costas das autocaravanas que se trava a luta das classes, do turista pobre vs o turista rico… De resto, não falo sequer de autocaravanismo, mas sim de autocaravarandismo. Passo a explicar: é a prática de autocaravanismo com o mesmo nível de gosto e classe das varandas portuguesas, ou seja, generalizado abarracamento e marquises a granel, que paulatina e impiedosamente destrói qualquer coerência arquitectónica ou harmonia visual, para além de violar regras e regulamentos. Sim, porque se a infame marquise é uma instituição da descaracterização urbana, as autocaravanas em regime selvagem são já uma das suas homólogas na paisagem rural, com a agravante de se mexerem. Porque é de selvajaria que falamos. Pessoal que mete ao comando dos destinos do bólide habitacional a bolinha de cotão residente nos seus umbigos, sem querer saber de mais nada. “Liberdade total e inalienável” já ouvi dizer. Sim senhor, tudo muito lindo, até pode ser, mas é lá em casa. Cá fora, em sociedade, há regras para cumprir e espaços e outras pessoas a respeitar. Nos últimos anos tem inclusivamente havido um investimento significativo na criação de locais que segura, higiénica e condignamente possam albergar as autocaravanas, disponibilizando os necessários serviços de apoio à sua manutenção e ao conforto dos seus ocupantes. Ou seja, já vai sendo difícil colar a desculpa de não ter para onde ir. É certo que é a pagantes, e quando o laxismo e incapacidade de resposta das autoridades permitem a borla com os pés na areia ou noutro sítio qualquer que lhes aprouver, sempre se poupam uns cobres para gastar em bujas e mortadela no [inserir nome de cadeia de hipermercados a gosto]. Quem vier atrás que limpe o estrago. E todos somos co-responsáveis. Não apenas pela omissão na denúncia e censura in loco destes comportamentos, mas também pela generalizada falta de civismo que grassa e o regime de maus tratos constantes a que sujeitamos as nossas paisagens, que potencia comportamentos menos próprios em terceiros. Mesmo quando provenientes de países célebres pelo seu civismo, solta-se-lhes a franga javardolas, instalam-se aquelas excitadas borboletas no estômago de quem faz uma incursão ao Terceiro Mundo, e sentem-se legitimados por aquele raciocínio boçal do "se eles que são de cá não cuidam, vou eu estar a ralar-me com isso?". A falta de amor e respeito próprio tem destas coisas. Mas tem também limites, e um momento em que dizemos basta. Por isso já é mais do que tempo de que quem de direito pense nisto e, acima de tudo, intervenha efectivamente. A nossa dignidade regional agradece, pois o que é demais, literalmente enoja.
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