Por Gonçalo Duarte Gomes Era uma vez um Ministro das Obras Públicas. Certo dia, tão ilustre personalidade, buscando um sítio para instalar um aeroporto, e mirando o Tejo de Norte para Sul, teve uma violenta epifania, ao nível do intestino grosso, que rapidamente fez ligação directa às cordas vocais, levando-o, num incontrolável e irreprimível impulso, a afirmar que para lá do rio, não havia gente, não havia escolas, não havia hospitais, não havia cidades, não havia indústria, não havia comércio, não havia hotéis. No fundo, um deserto. Conclusão óbvia: jámé lá se faria o que fosse. O Ministro descobriu entretanto a sua verdadeira vocação e dedicou-se à Revista à Portuguesa. Mas deixou escola. E o Algarve, para não variar, trama-se. Vem esta patusca memória ministerial a propósito de um novo episódio de desertificação do Algarve. Não uma desertificação pedológica, não uma desertificação populacional, mas sim uma desertificação conceptual e, novamente, pela voz de um responsável político.
Desta feita, Carlos César, Presidente do Partido Socialista e Conselheiro de Estado, comentando as Jornadas Parlamentares que a sua agremiação realizará em Bragança, afirmou (citado pelo Diário de Notícias): "Podíamos fazer destas jornadas mais uma reunião entre as muitas que fazemos em Lisboa, ou até aproveitar esta época do ano com mais sol para ir para locais turísticos, trabalhando aí. Mas queremos insistir em estar no Portugal que mais precisa da atenção política e dos decisores políticos". Ora a subtil e galhofeira ferroada do “prefiro dar no duro em vez de me ir estender ao Sol” vai direitinha para o Partido Social Democrata e para o Bloco de Esquerda, já que ambos os partidos irão realizar as suas Jornadas Parlamentares no Algarve, em Albufeira e Tavira, respectivamente. De caminho, o preclaro presidente partidário insinua duas coisas: o Algarve só serve para a rambóia e nunca para trabalhar a sério, e esse mesmo Algarve não precisa de atenção política. Sou parcialmente solidário com este raciocínio. Tal como o Conselheiro de Estado, também eu desconfio dos hábitos de trabalho dos políticos. Mas vou mais longe, e desconfio por igual não apenas dos mandriões que vêm para o molengão Algarve para se estenderem ao Sol a esturricar, como litões salgados à seca, mas também daqueles que vão para Bragança, pois faz-me logo desconfiar de uma demanda pelo proverbial mercado dos prazeres carnais, acompanhado pelo vinho verde do vizinho Minho (a proximidade propicia a partilha), artigos de resto internacionalmente reconhecidos. Tudo uns malucos. Discordo no entanto da história da atenção política. O Algarve precisa de imensa atenção política, mas é por parte dos cidadãos, que têm, em definitivo, que abrir a pestana relativamente à forma como a região é tratada. A visão redutora do Algarve que predomina numa franja importante dos nossos responsáveis políticos adia a realização do tremendo potencial da região, pois tolhe à partida o capital mais importante: a esperança e a confiança na capacidade de realizar. Não que isto de deputados, ministros e políticos em geral (a imbecilidade não olha a cores) a debitarem boçalidades seja novidade. Ganha é uma preocupantemente crescente frequência, ameaçando tornar-se regra. Legitima-se então a pergunta: é este o grau de exigência para desempenho destas funções? É no entanto sintomático da forma como uma fatia crescente dos responsáveis pelo País encaram o seu mandato, desclassificando os partidos políticos, as instituições e, no limite, o sistema democrático. Afirmo isto apenas como nota de rodapé, pois não sou pessoa de colocar em causa os gostos da maioria. Sim, porque é facto que Portugal (e o Algarve naturalmente incluído) vive satisfeito com o que tem. Caso contrário, haveria uma reacção transversal e vigorosa da sociedade, exigindo melhor. Entretanto o deputado algarvio Cristóvão Norte reagiu energicamente, defendendo a dama regional. Parece estar sozinho, já que o Bloco aparenta ter amochado, eventualmente por motivos de geringonça, e possivelmente os correligionários do autor do disparate calam por solidariedade cromática. E é pena, pois nesta questão o Algarve deveria falar mais alto junto daqueles que graças à região estão onde estão. Veremos. De qualquer forma, umas das coisas que mais magoa é que o brincalhão, para além de tacanho, foi injusto. O Algarve, o sítio onde se vive um frenesim de obras e eventos, mesmo que descabido, desenquadrado, inútil ou até prejudicial. Baixas de cidades transformadas em circos, zonas históricas aviltadas pelo mau gosto deliberado, intenções de resorts absurdos, sorteios de camas turísticas alheias ao ordenamento do território, tudo nos empurra para uma vertigem territorialmente cacofónica. Em ano de eleições então... E não se trabalha!? Talvez seja um momento de deslumbramento capital, à moda de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, já que se trata de um homem que vem também da província, ainda por cima insular, restando a esperança de que esta soltura mental lhe passe, eventualmente quando for fotografado com aquele ar veraneante (e todos sabemos qual é), por uma qualquer revista cor-de-rosa, numa qualquer praia, daquelas que cá os tuaregues reservam para as elites. E que bom, que gosto imenso, acolher e mimar o descanso de quem realmente trabalha neste País...
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