Por Gonçalo Duarte Gomes No passado dia 15 de Outubro foi publicada a Portaria n.º 277-B/2018, que reconhece o aglomerado populacional da Culatra, localizado na ilha-barreira da Ria Formosa com o mesmo nome, como núcleo residencial piscatório consolidado. O reconhecimento desta comunidade piscatória e d, e o seu enquadramento específico no Domínio Público Marítimo, constitui um acto de justiça para aqueles que realmente vivem da e na Ria Formosa, e que fazem activamente parte da riqueza paisagística que origina a classificação de Parque Natural. Esta regulamentação dá também passos na direcção do saneamento de um paradoxal conflito de ordenamento e gestão territorial que há muito durava: um núcleo considerado ilegal era alvo de investimentos públicos, quer ao nível de infra-estruturas básicas (num valor per capita a que poucos outros locais e habitantes podem aspirar), quer das suas actividades económicas, como atesta o porto de pesca existente naquele local desde há cerca de uma década, entre outros. No entanto, e por entre o muito que este momento traz de positivo à Ria Formosa, importa agora prestar muita atenção, para que, a reboque deste processo e à custa do esforço da comunidade da Culatra, não exista um aproveitamento indevido por terceiros, em esquemas a lembrar o que se passou na “reabilitação” das “casas” “ardidas” de Pedrógão… A história do esquema fraudulento de Pedrógão é conhecida.
Através de expedientes administrativos, moradas e papeladas foram alteradas ad hoc (por exemplo online, num minuto, para no minuto seguinte extrair declarações atestando uma falsa veracidade), transformando barracos, currais e ruínas que tais – mesmo que não sequer lambidas pelo devastador incêndio de 2017 – em primeiras habitações, que desviaram milhares e milhares de euros (de dinheiros públicos e contributos solidários) destinados a quem realmente precisava, num esquema abjecto e indigno. Pois bem, os critérios estipulados pela presente Portaria para aferição das situações de primeira habitação e de edificações associadas ao exercício de actividade profissional ligada à pesca ou a serviços à comunidade assentam em princípios expostos a essa mesma fragilidade. Pelo que se impõe um exercício de controlo rigoroso por parte das entidades responsáveis. Fundamentalmente para que se não legitimem esquemas de falsas primeiras habitações, segundas e terceiras residências e/ou economias paralelas associadas ao edificado – todos eles geradores de não-lugares – em prejuízo da verdadeira comunidade. Mas também para que outros, na mesma Ria Formosa, não tentem mascarar contextos incomparáveis com igual roupagem. No fundo, por respeito à verdadeira Culatra. Uma Culatra que se vê simbolicamente refundada, agora com acrescidas responsabilidades, nomeadamente a de abandonar certas atitudes de desrespeito pelas regras e normas que regem todos os restantes, patentes em episódios passados, de que será porventura exemplo maior a construção do "heliporto" ilegal. Porque o presente acto não desafecta a Culatra do Domínio Público Marítimo, mas antes a enquadra num regime criado especificamente para núcleos piscatórios abrangidos por essa figura legal, através da Lei n.º 12/2018, de 2 de Março, que alterou o Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, que estabelece o regime da utilização dos recursos hídricos. Porque é tremenda a responsabilidade que advém desta excepcionalidade aberta naquele que é, porventura, um dos mais importantes regimes de ordenamento territorial. Porque importa nunca esquecer que o Domínio Público Marítimo representa, para lá de questões legais ou ecológicas (como se fossem coisa pouca), um princípio de organização social: o do espaço comum, do que é de todos e de ninguém, não sujeito a titularidade privada, materializando o Interesse Público – coisa bem diferente do somatório dos interesses particulares – de forma inalienável, impenhorável e imprescritível. O que autorizando uma utilização, não confere posse. Este acréscimo de responsabilidade é no entanto recíproco. Porque doravante os direitos reais do Estado são substituídos por direitos obrigacionais – dito por este vosso jurista de café, talvez não seja de fiar – reivindicáveis pelos particulares junto da Administração, que agora autoriza, regularizando, estas ocupações do DPM. Concretamente o direito à salvaguarda de pessoas e bens, integrado na protecção contra o risco, mais que não seja, pela dimensão estratégica do ordenamento territorial. Considerando os riscos biofísicos incidentes sobre esta área, de particular susceptibilidade e vulnerabilidade, que se agrava na directa proporção da evolução do ciclo de alterações climáticas que atravessamos, esta não é uma imputação ligeira. Maioritariamente porque um uso estático – legalmente reconhecido ou não – implantado sobre um sistema elástico como o da Ria Formosa e as suas ilhas barreira, é como montar um touro mecânico: podemos não saber quando vamos cair, mas temos a certeza que irá acontecer. Sobretudo porque a Natureza, tal como a realidade, é, de facto, muito abusadora e impõe-se. Importa portanto que esta nova realidade da Culatra se paute pelo equilíbrio. Através de um modelo que compatibilize a vida e felicidade das pessoas, a sensibilidade dos valores e recursos naturais em que se inserem e o bem comum, de todos nós, que fica temporariamente à sua guarda. Até porque no arrumar da barca se vê o pescador.
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