Por Andreia Fidalgo Hoje, 29 de Setembro, celebra-se o dia de São Miguel. Não é meu costume relembrar os dias dos santos – ou, no caso em particular, dos arcanjos –, mas parece-me que este é especial e merece ser recordado, pela importância que detém na herança cultural da região algarvia. Não há no Algarve quem não conheça o Cerro de São Miguel, também designado por Monte Figo, ou até, mais coloquialmente, por “cerro das antenas”. Este sobressai como o ponto mais alto de um conjunto de elevações de orientação paralela ao litoral, denominado Serra de Monte Figo, que se estende pelos concelhos de Faro, Loulé, São Brás de Alportel e Olhão. Com 411 metros de altitude, o cerro situa-se na freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, e constitui um miradouro privilegiado do sotavento algarvio: em dias claros, é possível avistar-se, daí, uma ampla extensão do território algarvio e contemplar as três sub-regiões naturais que tradicionalmente caracterizam o Algarve – o litoral, o barrocal e a serra – e cuja subdivisão tem em consideração as diferentes e particulares características geológicas da região. Por ser um elemento de elevado destaque paisagístico, a importância do Cerro de São Miguel como um ponto geográfico de referência é atestada desde a Antiguidade Clássica. Tudo indica que este cerro aparece pela primeira vez referenciado num escrito datado do século VI a.C. (I Idade do Ferro), um Périplo massaliota que se conservou na posterior composição poética Orla Marítima, de Avieno, autor latino do século IV d.C., e que contém a seguinte descrição: “Em seguida estende-se o cabo consagrado a Zéfiro. Por fim, o cume da elevação chamada Zéfiris, cujas altas cristas sobressaem no cimo da montanha. Grande intumescência rasga os ares, envolvida sempre por uma espécie de névoa que lhe oculta o cume em nuvens. (…) Todo o que, de barco, ultrapassa a elevação de Zéfiris e penetra nas águas do nosso mar, de imediato é impelido pelo sopro do favónio". A interpretação geográfica mais comummente aceite destes versos aponta no sentido de que o cabo consagrado a Zéfiro não se trataria exactamente de um cabo, mas sim de um conjunto de elevações, mais concretamente a serra que se estende de Loulé a Tavira, sendo que o “cume da elevação chamada Zéfiris” seria identificado como o Monte Figo. Assim sendo, a tomar-se como válida esta interpretação, podemos considerar que o Monte Figo, devido à sua visibilidade, constituiu desde a Antiguidade um ponto de referência para a navegação, sendo que no século VI a.C. o culto que lhe era atribuído era o de Zéfiro, personificação grega do vento de oeste, propício à navegação. É certo que o cerro se terá mantido como referência geográfica para a navegação durante muitos séculos. Por volta de 1600, na História do Reino do Algarve, Henrique Fernandes Sarrão refere-se-lhe da seguinte forma: “Os navegantes se guiam por este serro e lhe chamam Monte do Figo per outro nome e por ele tomam a barra de Faro”. O Monte Figo seria, por essa altura, tal como certamente sempre o tivera sido e assim continuou a ser, um ponto de referência importante para navegantes e para mareantes locais, que de dia por ele se guiavam para entrar na barra de Faro, como se de um autêntico farol se tratasse. O mesmo Fernandes Sarrão relembra que “neste serro há muitas árvores de fruito, e, em roda, muitas terras de pão” – de facto, entre as razões que explicam o povoamento do cerro na sua vertente norte, destaca-se certamente um solo propício ao cultivo dessas “árvores de fruito”, típicas de sequeiro. Outras razões se podem acrescentar, tais como a configuração do terreno, o poço com água potável e a acessibilidade. Não se trata propriamente do local mais aprazível para se constituir habitação: na sua vertente sul, que apresenta grande declive, apenas alguns figueirais, pinheiros pouco desenvolvidos, medronheiros, carrasqueiras e arbustos de vários tipos o povoam; na vertente sudoeste, ainda mais hostil, o cerro está praticamente desprovido de vegetação; ainda assim, boa parte dele, sobretudo a vertente norte, é favorável ao cultivo de pomares de sequeiro. Ainda que o pomar de sequeiro tradicional do Algarve não detenha, actualmente – e muito infelizmente! –, a importância que teve durante séculos no cultivo agrícola da região, ainda podemos imaginar, observando esta longa vertente norte, o que teria sido esse cultivo no seu auge, que a polvilharia certamente de figueiras, oliveiras, amendoeiras e alfarrobeiras, árvores constituintes do pomar misto de sequeiro típico da região. Aqui, há que dar o devido destaque à figueira, uma vez que o figo, para além da importância que detinha na alimentação da população algarvia, foi durante século o produto de maior exportação à escala regional. O figo é, na minha perspectiva, o elemento chave para compreender o cerro de São Miguel, a dualidade toponímica que o caracteriza e o seu simbolismo no sotavento algarvio. É que esta paisagem cultural é, também, uma paisagem sacralizada… Será o figo, pela sua importância na economia local, também ele um fruto sacralizado? Ora vejamos. Ao aceitarmos que o Zéfiris da Orla Marítima de Avieno possa ser identificado com o Monte Figo, depreendemos naturalmente que a sacralização dessa paisagem vem já desde tempos bem remotos. Algumas interpretações apontam no sentido de que o culto do Zéfiro se teria mantido até ao domínio cristão, altura em que teria passado para o do arcanjo São Miguel, o que não seria estranho, pois este arcanjo representa um sincretismo muito comum para o culto dos ventos. Não podemos esquecer, porém, que entre o século VI a.C. – época em que sabemos com alguma segurança que o cerro era consagrado ao Zéfiro grego –, até ao domínio cristão consolidado no século XIII, existem duas ocupações significativas do território, a romana e a islâmica. Se pensarmos numa região fortemente romanizada, como era o caso, poderemos eventualmente assumir que um possível local de culto ao Zéfiro possa ter-se transformado num local de culto ao Favónio, o seu equivalente Romano, ou mesmo a um qualquer outro deus pagão da mitologia romana. Além do mais, se tivermos também em consideração que o culto ao São Miguel é antiquíssimo e que o próprio Imperador romano Constantino (272-337) – primeiro imperador a professar a fé cristã – lhe dedicou um templo perto de Constantinopla, então por que não assumir, eventualmente, uma origem mais antiga para o culto dedicado a esse santo no cerro? Aliás, durante o período islâmico é facto assumido que esse culto existia, como provável fruto da convivência entre moçárabes e muçulmanos, ou mesmo como resultado de se tratar de um arcanjo também incorporado pela religião islâmica. O culto a São Miguel em pleno domínio islâmico é, na realidade, atestado pela Crónica da Conquista do Algarve, no episódio da conquista de Tavira, datado de 1242, em que os mouros pedem tréguas aos cristãos durante o período do alacil – que corresponde à época das colheitas – cujo término indicado era, precisamente, São Miguel de Setembro. Nesta Crónica reside também a chave que permite, a meu ver, explicar a existência dos dois topónimos: Monte Figo e São Miguel. “Monte Figo” pode derivar quer do próprio desenho do cerro, que há quem diga que se assemelha a um figo, mas, mais seguramente ainda, deriva do cultivo de figueiras que cobria grande parte do monte, cultivo este que – voltamos a frisar! – constituiu, durante séculos, a mais importante produção regional; por outro lado, tal como podemos ler na Crónica da Conquista do Algarve, é precisamente na altura do alacil que os mouros pedem tréguas aos cristãos para que possam colher as suas “novidades”, época que se estende do mês de Julho até São Miguel de Setembro, que se celebra no dia 29. É nesse dia que se acabam de colher os figos e, no dizer popular “em passando o dia de São Miguel é a figueira de quem quer”, ou seja, aí se inicia também o rabisco, em que qualquer pessoa pode colher das figueiras os frutos que sobraram. Não parece, portanto, nada acidental que um Monte apelidado de Figo e um São Miguel que celebra o final da colheita desse fruto sejam dois topónimos para um mesmo local; antes pelo contrário, parecem tratar-se esses topónimos de duas faces de uma mesma moeda, pois se o primeiro alude a uma cultura tradicional de sequeiro que aí se praticava, assim como em toda a região, o segundo sacraliza a colheita desse fruto, marcando o seu término. E, sendo o figo a produção mais importante na região, não é de todo de estranhar que na tradição local tenham perdurado, até aos nossos dias, os dois topónimos. Fruto da sacralização do espaço, encontramos ainda na encosta norte uma ermida com o orago a São Miguel, e em tempos teria existido no topo do cerro um cruzeiro, do qual já não subsistem quaisquer vestígios. Quanto à ermida, trata-se de uma modesta edificação, sucessivamente reconstruída ao longo dos séculos, de onde é difícil retirar elementos estilísticos que nos permitam datá-la com alguma segurança; porém, os seus vãos de pedra que formam arcos ligeiramente quebrados parecem sugerir uma construção tardo-medieval, de estilo gótico, possivelmente anterior, portanto, ao século XVI. A singela ermida é composta essencialmente por dois volumes, um correspondente à nave e o outro à capela-mor, este último com uma cobertura muito curiosa, de quatro águas, mas de onde sobressai um invulgar volume cónico feito em argamassa. No interior, nada de grande importância se destaca no recheio, a não ser um painel de madeira com pinturas e dourados do século XVII e uma imagem do padroeiro datada do século XVIII. Em tempos, a ermida na encosta e o cruzeiro no topo eram locais onde afluíam com alguma frequência os fiéis. Existem notícias de animadas romarias que se faziam ao local, sobretudo na véspera e dia da sua festa, a 29 de Setembro, relacionadas com a celebração do final das colheitas do figo. Tradições enraizadas no cultivo da terra que se vão lentamente perdendo… Quer a sua realização e quer, inclusivamente, a sua memória.
Por isso mesmo, serve este breve apontamento de hoje para recordar o dia de São Miguel, o tradicional cultivo e colheita do figo e uma paisagem cultural que deles recebe os dois topónimos pelos quais ainda hoje é conhecida. Serve também para reflectir sobre o quanto cuidamos nós das paisagens culturais que nos rodeiam? Uma paisagem ameaçada, no sopé da sua encosta sul, por uma brutal espedrega, como tem vindo a ser notado recentemente; uma paisagem quase abandonada, naquilo que era a ocupação humana e o seu cultivo tradicional de sequeiro, na encosta norte; uma paisagem suja, descuidada e vandalizada no cume dos seus 411 metros de altitude; e, acima de tudo, uma paisagem acerca da qual as tradições e a memória histórica se vão progressivamente desvanecendo. É aqui, precisamente, que surge o grande desafio: como preservar esta paisagem e a memória histórica que ela encerra?
2 Comments
Ana luisa
29/9/2020 19:42:56
Extraordinário
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Miguel
2/10/2020 10:44:04
Um excelente texto, pleno de informação, na politica e economia, não existem inevitabilidades, apenas escolhas e suas consequências - positivas e negativas - o que quer dizer que, fatalismos, só por teimosia, falta de visão ou interesses particulares.
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