Por Gonçalo Duarte Gomes Em 1776, na sua obra de referência “Uma investigação sobre a natureza e as causas da Riqueza das Nações”, Adam Smith postulou princípios teóricos que são comummente aceites como a base do liberalismo económico. Numa das suas reflexões, estabeleceu o que seria conhecido como o paradoxo do valor. Muito simplesmente, estipula que os objectos ou artigos com maior valor de uso têm frequentemente reduzido valor de troca, e vice-versa. Como exemplo deste princípio, utilizou dois itens diametralmente opostos: água e diamante. Considerava Smith que, embora nada seja mais útil do que a água, pouco ou nada pode com ela ser adquirido. Inversamente, se o diamante pouca ou nenhuma utilidade tem, é muito o que se pode adquirir em troca dele. Esta constatação, muito em linha com reflexões que datam até de Platão, desenvolve-se numa formulação lapidar: “O verdadeiro preço de tudo, o que tudo realmente custa a quem o queira obter, é o trabalho e o incómodo de o adquirir”. Talvez pela facilidade de abrir uma torneira tenhamos deixado de dar real valor à água, e nos limitemos, tal como o Adam Smith, a ter sonhos molhados. Mas em mau. Nestas coisas da água, além da sua função ecológica na paisagem, não me consigo afastar muito de um princípio base: é recurso fundamental à vida, e portanto direito inalienável em vez de bem transaccionável – peço desculpa à malta mais arraçada de máquina registadora.
Mas, entretanto, e com alguma razão, lá nos empurraram para a ideia de que o mais eficaz instrumento de consciencialização para a conservação e utilização racional da água enquanto recurso era, precisamente, o da valorização económica. No entanto, e no caso particular do Algarve, rapidamente se percebe que tal não passa de um embuste. Basta olhar, quer para as perdas verificadas nos sistemas de distribuição (principalmente em baixa, onde nem se sabe exactamente o que se perde, de forma consolidada), quer para a água não facturada (média regional de 30%, oscilando entre os 5 e os… mais de 50%[!], onde, importa dizer, se incluem usos de água de carácter social e solidário), quer para o facto de na utilização dos recursos hídricos subterrâneos – sendo na prática um recurso mineral, não está sujeito a propriedade privada, constituindo um valor colectivo do Estado – se pagar apenas a electricidade consumida pelo sistema de bombagem do furo e não a água utilizada ou para os usos displicentes e desproporcionais permitidos. Isto reflecte, para além de uma reduzida responsabilidade colectiva, por acção e omissão, fraco sentido empresarial, agora claramente piscando o olho aos tais autómatos humanos que por aí andam. Que raio de negócio é este, em que a água é encarada como uma receita (a receber, que é devida) quando, na verdade, é capital (valores, numerário)? Qualquer empresa ou actividade económica que sistematicamente utilize e coloque em risco a continuidade do seu capital, caminha para a bancarrota. Sabem quem lá andou perto, há bem pouco tempo? A Cidade do Cabo, na África do Sul. Googlem. Por cá, de há uns tempos a esta parte, dava ideia de que o lobby das barragens se começava a agitar, vislumbrando a proverbial oportunidade que sempre surge em tempos de crise. Pois bem, eis que começa a entrar em velocidade de cruzeiro, prometendo a salvação e o El Dorado hídrico, ao alcance do paredão de uma nova represa, a barragem da Foupana. E já começa a colher simpatias, principalmente autárquicas e empresariais. Porque uma barragem paga pela Administração Central é mais barata que o investimento nas redes de distribuição, pago pelos Municípios; porque os partidos políticos vêem as grandes obras públicas como grande incentivo de reforço desses verdadeiros mecanismos de coesão territorial que são os donativos; porque a dinâmica económica regional agradece uma boa empreitada; porque tratar um défice é sempre mais fácil pelo aumento do input do que pela optimização dos consumos. Resta saber se porque é mesmo a mais eficaz solução para o problema em apreço. A AMAL já veio pedir que se estudem soluções para a escassez. Mas, de caminho, parece já ter escrito as conclusões desse mesmo estudo, que passam pela necessidade de… uma nova barragem – quem diria – e de estações de dessalinização. Perante a complexidade do problema, estas aspirinas receitadas para uma doença crónica são na verdade sonhos – ou pesadelos – molhados, na medida em que apenas servem a perpetuação do modelo de consumos de crescimento constante, nem que seja para praias fluviais inventadas em plena serra algarvia, como em S. Brás de Alportel. Este perigoso modelo alimenta-se da peregrina ideia de que o reforço do abastecimento está garantido pela vontade e pelo pensamento positivo, e não procura alternativas integradas para adaptação a novas realidades. Realidades essas em que as alterações climáticas funcionam como amplificador, aumentando o intervalo de incerteza que é desde sempre intrínseco aos padrões climáticos do Algarve, aconselhando um reforço das margens de segurança em termos de recursos estratégicos. Incompreensivelmente, progredimos então no sentido contrário ao da razão, desaprendendo. Na sessão ontem realizada pela Associação Faro 1540, no Café Aliança em Faro, subordinada ao tema da água (disponível aqui), o Prof. José Paulo Monteiro, da Universidade do Algarve, fazia notar, salvo erro meu de percepção, que na segunda metade do Século XX, o consumo de água no Algarve aumentou 10 vezes em relação aos anteriores valores de referência. Esta alteração do perfil de consumo terá seguramente várias explicações. Arrisco dizer que a melhoria e reforço dos sistemas de abastecimento doméstico e dos padrões de higiene e salubridade virão em lugares cimeiros. Mas o desperdício e o desvio face à gestão racional em contexto de disponibilidade incerta não deixarão de vir logo a seguir. Desperdício conceptual nos usos e suas características (progressão do regadio, literal e figurativamente, em todos os domínios) e operacional (perdas, dimensionamentos, horários, etc.). Alterámos então a forma e a atitude perante o consumo dos recursos hídricos, divergindo de modelos ancestrais que, ainda que empiricamente elaborados, são técnica e cientificamente verificáveis na sua eficácia e adequação – a esse propósito, também ontem se referiu e aconselhou, e aconselha, vivamente, o livro de Sónia Tomé, “A água dá, a água tira”. Se a eles não conseguirmos voltar, de forma criativa e adaptada, com urgência (que nem sempre é emergência) mas simultaneamente ponderação, equilíbrio e, acima de tudo, responsabilidade e consciência, corremos o risco de sérias travessias no deserto.
1 Comment
Miguel
18/1/2020 12:41:07
Infelizmente não pude estar presente do referido debate; não sei se as conclusões foram semelhante a um outro realizado uma ou duas semanas antes, que foram salvo erro: como referiu, barragem, dessalinização e a urgência de garantir que não pode sobre circunstância alguma, nem que a terra se torne plana, faltar com a agua no turismo e nos abacates, espero que assim não tenha sido.
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