Por Gonçalo Duarte Gomes A História tem tendência a repetir-se. A 6 de Junho de 1944 arrancava a Operação Overlord. Nesse dia, uma força Aliada de aproximadamente 160.000 homens, 6.000 navios e 11.600 atravessou o Canal da Mancha, numa missão potencialmente suicida: desembarcar na Normandia, ocupada pelo exército alemão. A 6 de Junho de 2020 iniciar-se-á outra operação massiva de desembarque, mas nas praias algarvias, e com uma mobilização ainda mais impressionante: a Operação Garrafão. Finalmente sabemos como e quando se pode afinal ir à praia, sem ficar sujeito aos tremendos perigos que ela representa hoje. Não mais as patrulhas da Polícia Marítima terão que se atarefar a desbaratar os incautos rebeldes que, espalhados por areais desertos, ousam sentar-se na praia, quando sabem perfeitamente que apenas de pé podem lá estar. Finalmente as pessoas que caminham na praia podem fazê-lo, apesar de já agora fazerem, ainda que não o possam fazer, excepto em penitência de culpa. Os surfistas poderão deixar de viver em medo de cair da prancha, entrando assim na transgressão de estar na água sem auxílios de flutuação. Os próprios peixes poderão suspirar de alívio, porque eles próprios já não sabiam se estavam bem ou mal. Tal como aconteceu com as máscaras que passaram de desnecessárias a obrigatórias, virado o cagagésimo de segundo que separa as 23:59.59 horas de 5 de Junho das 00:00.00 horas de 6 de Junho, tudo mudará nessa actividade subversiva que é ir à praia. Com a redenção na ponta de um despacho, o Governo anunciou ontem as orientações definitivas para usufruto das zonas balneares. Um conjunto de regras bem catitas, principalmente porque se inserem numa longa tradição portuguesa: estabelecer normas cujo cumprimento não se faz a mínima ideia de como alcançar, e que não colhem sustento quer nas estruturas, quer nos recursos disponíveis. Mas vá, serviço público: Algumas destas regras são perfeitamente delirantes, bem ao jeito da distopia asséptica e germofóbica que lentamente se vai implementando, e que põe presidentes de junta a espalhar hipoclorito nos areais. Outras, no imediato momento do seu anúncio, já toda a gente viu como vão ser contornadas e aldrabadas, pelos do costume. As praias serão, neste Verão, o feudo do chico-espertismo. Muito guarda-sol vai ter que ser deixado de véspera...
Não é à toa que o Governo deixa a fiscalização nas mãos de concessionários e utentes, ao bom estilo do salve-se quem puder. Não o fez seguramente por acreditar no civismo tuga em contexto balnear, que é aquilo que todos sabemos, algo a roçar o cruzamento entre um javali com crias e um saca-rabos com o cio. Fê-lo porque sabe perfeitamente que não dispõe de meios para fazer cumprir o que agora determina. Sabe também que não dispõe de meios para fazer o seu contrário, ou seja, impedir ou proibir a ida às praias. Resta inclusivamente saber se, com estas regras, há viabilidade ou interesse económico por parte dos concessionários para abrirem as suas explorações... Estas normas revelam também uma outra tendência, esta mais global nos tempos que correm: há coisas que são perigosíssimas por causa do vírus, mas que depois, bem vistas as coisas, não o são assim tanto, desde que alguém pague por elas, ou que interesse muito que não sejam, seja para aprovar orçamentos de estado ou outra coisa qualquer. Com tão singelo truque de magia, de repente tudo é permitido. É inquietante que nas passadas semanas cidadãos tenham sido acossados nas praias, para agora, porque já alguém está a lucrar com isso, deixar de haver problema. Se a questão é a saúde pública, ultrapassa-se com uma taxa? No início desta pandemia, adoptou-se, e muitíssimo bem, o princípio da precaução. Regado até com um pouco de medo a mais, é certo, mas a prudência face à incerteza que rodeava o fenómeno deste novo vírus assim o aconselhava. Neste momento, o conhecimento de que se dispõe é mais amplo, ainda que não total – de tal forma, que não dispomos de vacina ou tratamento completamente eficaz. Seria portanto de esperar que as medidas de gestão, principalmente quando se assume um desconfinamento progressivo, fossem assentes mais nesse conhecimento do que no anterior medo. Porque o medo é mau conselheiro, e nesta fase de profundo cansaço e até desespero das pessoas, ou as coisas são adequadamente explicadas e fundamentadas em princípios sólidos, ou a sua credibilidade cai por terra e partimos para a rebaldaria. Se diz que afinal não há problema na utilização destas zonas, como pensa o Governo assegurar a igualdade de oportunidades no acesso às mesmas? Como garantirá que não há açambarcamento ou abuso? Dessa responsabilidade não se pode descartar. Até porque se há sítio em que princípios discriminatórios caem muito mal, é nas praias. Porque nas praias – salvo raríssimas excepções a nível nacional – vigora o mais fundamental dos princípios de utilidade pública, anterior à própria Constituição. A servidão administrativa do Domínio Público Marítimo foi estabelecida em Portugal em meados do Século XIX por decreto de D. Luís, que estabeleceu que passavam a ser considerados como integrantes “do domínio público, imprescritível, (...) praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens”. A instituição desta disposição legal representou assim a espacialização de uma concepção política e social pioneira, consagrando um princípio de universalidade de acesso a determinados valores naturais associados aos recursos hídricos. No caso do litoral, dá-se uma autêntica nacionalização da orla costeira, importando notar que a reserva estratégica de áreas afectas aos recursos hídricos então estabelecida não revertia a favor do património da Coroa, mas antes do domínio público do Estado. De todos, portanto, garantindo um fim de utilidade pública, tornando-os inalienáveis, impenhoráveis, indisponíveis e imprescritíveis. Se isto é notável por qualquer prisma, mais se torna considerando a época e o pensamento político vigente, sendo interessante fazer notar a curiosidade histórica desta regulamentação corporizar um princípio quintessencial de organização comunitária, sobrepondo direitos difusos (interesse público) a direitos individuais (propriedade privada), surgindo antes mesmo de Karl Marx levar "O Capital" ao prelo e antes de Lenine ter sequer nascido. Não pode portanto ser negligenciado – aqui muito menos – o princípio da universalidade de acesso, nem pode ser deixado o acesso nas mão do modus operandi do “mercado”: qual cuco, apropria-se de algo gratuito e transforma em bem transaccionável ou serviço pago. Para já fica a sensação de estarmos numa fase de gestão por cabotagem: navega-se à vista, por não se ter – ou não confiar nos – instrumentos. Mal posso esperar por provar a bola-de-Berlim com gel desinfectante, servida por um drone socialmente distanciado e devidamente desinfectado...
3 Comments
Miguel
16/5/2020 12:39:21
Já estou a preparar as pipocas, prevejo noticias e informações sobre a eficácia destas medidas no mínimo hilariantes, ou como se espera, a maioria não serão cumpridas e o resultado vai ser maior risco e transmissão, ou menos pessoas irão à praia.
Reply
Gonçalo Duarte Gomes
16/5/2020 17:40:42
Vai ser, de facto, uma tragicomédia, e das grandes.
Reply
João
18/5/2020 14:17:34
Simplesmente delicioso! Uma análise com que concordo e que me parece ser a mais real previsão do Verão 2020 que se aproxima. Infelizmente o governo não seguiu a primeira abordagem à pandemia, aceitar como facto consumado o comportamento dos portugueses e publicitar depois o retumbante sucesso das medidas tomadas. Parece-me que desta vez, se calhar auto-convencidos da capacidade de luta ao Corona, cometem o erro de não esperar para ver como a população se quer comportar. Por minha parte, que até concordo com a parte dos caracóis , vou redescobrir o Algarve mais interior. Ainda este Fim de Semana pelos lados da Sra. do verde descobri uma ribeira com pequenas cascatas que fizeram as delicias do piquenique de Sábado. Fiquem bem.
Reply
Leave a Reply. |
Visite-nos no
Categorias
All
Arquivo
October 2021
Parceiro
|