Por Andreia Fidalgo Assumo desde já que este título vático não é da minha autoria, mas sim de Francisco Fernandes Lopes (1884-1969): é o título de um escrito originalmente datado de 1948, no qual este médico e intelectual olhanense dava a conhecer a vila e as suas singularidades. E já que hoje é dia de celebrar Olhão, parece-me justo recuperá-lo e a todo o simbolismo que encerra. A história de Olhão é relativamente recente. Até 1715, data em que se obteve autorização para a construção da primeira casa de alvenaria, Olhão não era mais do que um aglomerado de palhotas concentradas em torno da igreja matriz. Durante essa centúria, a povoação piscatória cresce de forma exponencial, de tal forma que no dealbar de Oitocentos já era a quinta maior povoação algarvia, contando 1202 fogos, apenas ultrapassada por Tavira (2209 fogos), Loulé (1809 fogos), Faro (1805 fogos) e Lagos (1693 fogos), todas elas localidades multisseculares. O contributo dos olhanenses para a expulsão das tropas francesas, numa revolta que eclodiu a 16 de Junho de 1808, e a que se seguiu a viagem ao Brasil no caíque Bom Sucesso, foi absolutamente determinante para a história da povoação: em reconhecimento pelos feitos, por alvará régio de 15 de Novembro de 1808, o lugar de Olhão é elevado a vila, e por alvará régio de 20 de Abril de 1826 é oficialmente criado o concelho de Olhão, que se autonomiza definitivamente de Faro. A vila de Olhão cresce e prospera, sustentada economicamente pelas opulentas pescarias e, na primeira metade do século XX, por uma próspera indústria de conservas de peixe. Uma das características mais interessantes do desenvolvimento dessa povoação foi o da configuração tão característica do seu urbanismo e as particularidades arquitectónicas que aí se notabilizaram e que conferem à cidade uma grande singularidade. Neste panorama, merece particular destaque todo o intrincado de vielas sinuosas e misteriosas, que encontram o seu expoente máximo no bairro da Barreta, assim como merece particular destaque a açoteia, elemento arquitectónico que, de resto, é tão característico da região algarvia (e de todo o Mediterrâneo!), mas que encontra em Olhão uma grande profusão e atributos únicos. Tal como escrevia Fernandes Lopes no escrito que dá mote a este meu artigo, “Olhão não é só um «mar de soteias» (como a próxima aldeia da Fuzeta)”; as casas e açoteias olhanenses diferem das restantes por apresentam algumas particularidades que tornam a sua arquitectura tão singular: a existência de pangaios, de mirantes e contra-mirantes. E Fernandes Lopes descreve com acuidade todos estes elementos, pintando uma vívida imagem da arquitectura típica olhanense. O intelectual olhanense refere-se aos pangaios como estruturas que rompem “forçosamente o terraço, quando se sobe à soteia por dentro da casa e não pelo quintal (…), pangaios onde a chaminé cúbica e simples ficou incorporada ou coalescente”. Porém, segundo ele, não foi suficiente ao olhanense as açoteias com pangaio, estrutura esta que rapidamente evoluiu para “uma nova soteia que se circundou de parapeito alto, e à qual se sobe sistematicamente por escada exterior, de alvenaria” – a esta nova estrutura deu-se o nome de mirante. Mas, por vezes, este mirante é de tão largas dimensões que deixa a açoteia primitiva reduzida a um pequeno quintal no primeiro andar, constituindo ele próprio uma nova açoteia; em alguns destes casos, segundo Fernandes Lopes testemunhava, surgia ainda uma terceira estrutura, o contra-mirante, que é “um segundo mirante, ocupando de lado a lado, quase metade do terraço do primeiro, ou metido a um canto desde e minúsculo, quase simples púlpito ou torre de vigia”. Segundo Fernandes Lopes, portanto, a singularidade da arquitectura olhanense residia nesta multiplicidade de terraços, “três terraços sobrepostos, em pirâmide!...”. É, em suma, como a caracteriza no final do seu artigo: uma “estranha e misteriosa arquitectura local, genuína, inerudita…”. Uma sobreposição cúbica, portanto, que valeu a Olhão o epíteto de “vila cubista”… Uma vila absolutamente singular, também de gentes muito características, que ao longo dos tempos inspirou descrições absolutamente deliciosas que mostram o quão única é a sua essência. Não resisto, aqui, em invocar dois grandes escritores portugueses que nos deixaram testemunhos divinais sobre Olhão: Raul Brandão e Aquilino Ribeiro. Em Os Pescadores (1923), Raul Brandão condensa uma série de crónicas sobre a vida dos pescadores portugueses, passando por várias localidades. De Olhão, em Agosto de 1922, o escritor deixaria a seguinte descrição: “De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto – por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor”. E o que dizia Brandão dos homens do mar? “O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe”. Poucos anos volvidos, seria a vez de Aquilino Ribeiro deixar registado, no 2º volume do Guia de Portugal (1927), as suas impressões sobre Olhão: “Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas”. Sobre as gentes, o testemunho de Aquilino é absolutamente delicioso: “Galeões a vapor, caíques, chalupas, fragatas, a barcaça da lota, ruidosa como um arraial, e uma população acobreada, peluda, mexida, cruzando de quando em quando gritos rápidos, cantantes. (…) A pesca por essa charneca verde, sem fim, até a vista da Barberia… em cabotagem… ao contrabando, se Deus é servido. Levado pela vela rápida, triangular, o olhanense comete todos os misteres, porque para ele todos os misteres são legítimos, desde que regados com o honrado suor do seu corpo e praticados com valentia. O mar condicionou a sua audácia e a audácia a sua moral”. Destas descrições, a que poderia somar muitas outras, sobressai a singularidade olhanense, quer do seu urbanismo e arquitectura, quer das suas gentes. Sobressai uma identidade muito específica, que confere a Olhão particularidades que foram, durante décadas, destacadas e elevadas. Será caso para questionar se esta identidade ainda se mantém hoje viva, ou se já esteve de melhor saúde… É certo que parte do vasto panorama de açoteias foi progressivamente alterado e destruído durante décadas, mas que os mais recentes esforços têm sido para a sua preservação; é certo que muitas das habitações dos bairros tradicionais da Barreta e do Levante têm sido recuperadas, algumas com investimento de estrangeiros que escolheram aí residir, deslumbrados com o panorama típico da cidade, e outras com o intuito claro de servir e captar o turismo… Mas, por muito positivos que sejam esses esforços para a manutenção da feição arquitectónica característica de Olhão, isto leva-me necessariamente a questionar até quando existirão olhanenses nos bairros mais típicos de Olhão, e se não estaremos a caminhar para a total gentrificação do núcleo histórico da cidade, e, consequentemente, para a perda da sua identidade? A preservação da identidade e do património histórico-cultural de uma localidade não pode passar somente pela manutenção das suas características arquitectónicas; há que passar, também, pela preservação das suas tradições e manifestações culturais, do modus vivendi da sua população, pela manutenção da economia local… Até que ponto estamos dispostos a sacrificar tudo isto em prol da especulação imobiliária e do turismo de massas? É inegável e louvável o progresso e o melhoramento urbano de que a cidade tem sido alvo nos últimos anos, mas questiono também até que ponto um projecto como o que agora está a arrancar, de requalificação de toda a frente ribeirinha de Olhão, realmente espelha a identidade do local? O progresso é necessário e inevitável, mas queremos uma Olhão asséptica, uniformizada, estandardizada, igual a qualquer outra cidade, ou queremos que a cidade ainda continue a suscitar reflexões e testemunhos sobre a singularidade da sua arquitectura, do seu urbanismo e das suas gentes, como os que nos deixaram Raul Brandão e Aquilino Ribeiro? Não tenho respostas… Deixo apenas algumas reflexões. E porque hoje é Dia da Cidade de Olhão, termino relembrando a magnífica “Ó vila de Olhão” de Zeca Afonso.
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