Por Gonçalo Duarte Gomes Uma vez que aqui no Lugar ao Sul a maré – quase literalmente – é de Ria Formosa, e tendo em conta que ainda esta semana a Andreia Fidalgo foi ao baú da memória para nos trazer o seu apontamento sobre a Fortaleza de S. Lourenço, vamos lá remexer em mais velharias. E aproveitando a oportuna lembrança da Andreia, sem nos afastarmos muito dela e com recurso a outras preciosidades que ela encontrou sob a poeira do tempo, e teve a gentileza de me indicar. A imagem acima é o Plano Hidrográfico das barras e portos de Faro e Olhão, de 1885. Observa-se nesta carta como neste troço central da Ria Formosa a Barra do Lavajo, ou da Armona, com aproximadamente 2,3 milhas (algo como 4,3 quilómetros, sempre e naturalmente dependente da maré) de largura, constituía o mais amplo e significativo ponto de troca entre as águas oceânicas e o sistema lagunar. Sensivelmente a meio, estão indicadas as “pedras do antigo forte S. Lourenço”. Mais a Poente, é identificável o Farol de Santa Maria, erigido por volta de 1851. E na Península do Ancão, mesmo no centro do que é hoje a Praia de Faro… a Barra do Encão, com cerca de 500 metros de largura! Saltemos agora cerca de 30 anos, até 1916. Na carta acima, é representada a barra e canais de Faro e Olhão, onde novamente os restos da Fortaleza de S. Lourenço marcam presença, e a Barra da Armona continua a ser um elemento preponderante. No entanto, neste intervalo, a sua amplitude reduziu-se para perto de 1,7 milhas (3,2 quilómetros, mais ou menos). Nota também para a representação de arraiais de pesca na ponta da Culatra – então identificada como ponta do Cabelo – e na Armona. Atalhando caminho, e avançando pouco mais de um século, até aos nossos dias, verificamos que o cenário mudou dramaticamente. Recorrendo já não à magnífica cartografia náutica, mas ao bem mais moderno e familiar Google Earth, é possível constatar que a outrora portentosa Barra da Armona está hoje reduzida a uma amplitude que andará na casa dos 550 metros, mais coisa menos coisa. Um aspecto determinante para explicar esta alteração profunda na morfologia desta zona é, sem dúvida, a abertura/alargamento, por dragagem, da Barra de Faro/Olhão e subsequente fixação com molhes, num processo que decorreu entre o final da década de 1920 e meados da década de 1950.
No entanto, mais do que para analisar casos específicos, este brevíssimo e muito simplificado exemplo serve para ilustrar, alertando para, um aspecto determinante para a compreensão da Ria Formosa: a sua dinâmica. O sistema da Ria Formosa é constituído por cinco ilhas barreira e duas penínsulas, separadas por seis barras, que promovem a comunicação das águas interiores da laguna com as águas oceânicas. Estes elementos organizam-se de acordo com um grande dinamismo, em que a forma e extensão dos corpos arenosos é altamente mutável, em intervalos relativamente curtos, a par da migração e/ou abertura de novas barras e colmatação de outras. Das barras referidas, duas delas, a já referida Faro-Olhão e a de Tavira, encontram-se artificialmente fixadas, com recurso a molhes, sendo a sua manutenção assegurada através de dragagens periódicas para salvaguarda das condições de navegabilidade. O corpo lagunar definido e confinado entre as ilhas e penínsulas e a margem continental é constituído por sapais, rasos de maré, canais de maré e pequenas ilhas de carácter lodoso ou arenoso, encontrando-se neste ecossistema vários habitats prioritários em termos de conservação da natureza, o que levou não apenas à classificação como Parque Natural, mas também à sua inclusão na Rede Natura 2000, a par da atribuição de outros estatutos de conservação. Em termos de dinâmica do ecossistema, um dos aspectos mais marcantes prende-se com as trocas de água entre a laguna interior e o oceano, importantes não apenas em termos de prisma de maré – medida das trocas de água através das barras – mas também em termos de transporte sedimentar e respectiva influência na evolução da morfologia do sistema. Nesse enquadramento, as barras constituem-se como elementos determinantes, verificando-se que as mesmas (à excepção das artificialmente fixadas) se caracterizam por um regime migratório, onde se destacam as deslocações longitudinais, acumulando areias na extremidade de uma das ilhas e erodindo a extremidade da ilha seguinte. Para lá destes padrões verifica-se ainda uma tremenda vulnerabilidade do sistema face a eventos climáticos extremos – como tempestades, por exemplo – que, no actual quadro de alterações climáticas tendem a aumentar a sua intensidade e periodicidade, pelo que a redução da exposição será de acautelar. Os antigos conheciam bem e mantinham presente a consciência desta mutabilidade e quase volatilidade – temperamental, para os seguidores da Teoria de Gaia – e por isso baseavam as suas ocupações das ilhas-barreira em estruturas maioritariamente efémeras, com recurso a materiais locais, para que os inevitáveis estragos e perdas não fossem significativos. É por isso que, quando olhos gulosos assentam sobre a Ria Formosa, pensando em implantar usos estáticos – por exemplo edificações – sobre um sistema elástico, convém não perder de vista esta imagem...
4 Comments
Manuel Brito
5/9/2020 17:39:12
Muito bem Gonçalo,
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Manuel Brito
7/9/2020 09:13:08
concluiria com a necessidade de medidas graduais de redução da navegação na Ria em geral e dos motores a combustão em particular ao indispensável. A manutenção e recuperação do capital natural da Ria Formosa é prioritário por uma série de razões de preservação do eco-sistema e diversidade, pela salvaguarda da produção económica existente em termos de bivalves e espécies piscícolas e finalmente para o turismo, pelo menos a médio e longo prazos, pois uma Ria "morta" não terá qualquer interesse.
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Gonçalo Duarte Gomes
7/9/2020 14:38:43
Caro Manuel Brito, muito obrigado pela reflexão partilhada, da qual subscrevo muito.
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João Baltazar
22/9/2020 10:49:52
A mutabilidade da ria não entra nos planos de negocio de quem constrói.
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