O Senhor Deus preparou um jardim em Éden, lá para o oriente, e colocou nele o homem que tinha modelado. Da terra, fez nascer toda a espécie de árvores que eram agradáveis à vista e davam bons frutos para comer Por Gonçalo Duarte Gomes
A perda de grandes figuras é sempre um momento perturbador. Mas também catártico. Gonçalo Ribeiro Telles era um dos Senadores de Portugal – em minha opinião, a par de Adriano Moreira e Eduardo Lourenço. São pessoas que, em diferentes áreas, acumulam, pelo seu trajecto de vida, experiências e competências que constituem já não património seu, mas antes memória estratégica do País, tornando-as tutelares. Foi precisamente Eduardo Lourenço quem nomeou Ribeiro Telles “jardineiro de Deus”, face aos seus assinaláveis êxitos na procura do Paraíso perdido, que, inscrito nas nossas memórias matriciais, constantemente tentamos recriar nos jardins. E Ribeiro Telles assumia-se como jardineiro. Mas um jardineiro de escala variável, em cujas mãos cabia tanto a paisagem da região ou do País, como o mais pequeno canteiro. Porque a paisagem, enquanto todo global orgânico, cumpre-se num contínuo ininterrupto, desde a ideia – a política, o futuro – até à sua expressão espacial junto das pessoas, no traço do projecto da sua rua ou do seu quarteirão, e no que esse desenho encerra, em termos de relação com as condicionantes biofísicas, que são o nosso suporte de vida. Não vale a pena tentar aqui sequer esboçar um exercício biográfico de uma vida que, ao longo de quase um século (e atravessando dois) foi inteiramente dedicada ao serviço, como tão bem ficou patente na principal preocupação do seu discurso de aceitação do Prémio Sir Geoffrey Jellicoe: só será útil se motivar outros na busca pela excelência. Serviço de um povo, de uma cultura, de um País. Para a Arquitectura Paisagista portuguesa, o desaparecimento físico de Ribeiro Telles representa uma nova fase: a orfandade. Durante décadas, Ribeiro Telles foi a referência maior da profissão, um mentor, literalmente primus inter pares. Não porque estivesse acima de alguém – conceito que seguramente o arrepiaria, ciente de que a ideia cresce e consolida-se na conversa de café, sempre com outros – mas porque esteve sempre à frente do seu tempo, sem no entanto deixar de estar no seu tempo plenamente envolvido. Para lá da dor da perda, reside a comemoração da escola que deixou, e que tantos e tão brilhantes continuadores criou. A dimensão política e cívica de Ribeiro Telles é um testemunho de integridade e de coragem. Fosse em ditadura ou em democracia, nunca temeu apontar o dedo a tudo aquilo que entendia violar princípios basilares do humanismo que incansavelmente defendeu, não apenas na paisagem, mas na mente, no coração e, principalmente, na acção do Homem. Na balança entre o conforto da omissão ou a turbulência da denúncia e da proposta de fazer diferente, nunca teve dúvidas em escolher a segunda. Sem fatalismos ou catastrofismos, só com proposta de futuro; diferente, melhor. Remorsos, apenas os de não ter sido mais incómodo, como tantas vezes afirmou. Graças a ele, a história da Arquitectura Paisagista cruza-se, e muitas vezes é, a história da política de ambiente e de ordenamento do território em Portugal. Uma história de foco inequívoco: as pessoas. A sua qualidade de vida, a dignidade dessa vida, a equidade na distribuição das oportunidades de acesso aos recursos, a salvaguarda da perenidade e a transmissão aos próximos de algo acrescentado ao encontrado pelos anteriores. O sonho de um País identificado e respeitador das suas raízes telúricas, expresso na paisagem e na cultura que ela molda, e que, por sua vez, a conforma reciprocamente, num processo vivo. Cassandra é uma figura da mitologia grega, dotada de capacidades proféticas e, simultaneamente, amaldiçoada a que ninguém acreditasse nas suas previsões do futuro. Em consequência disso mesmo, a sua cidade natal de Tróia, governada pelo rei Príamo (seu pai) caiu às mãos de Agamémnon e dos gregos, por ninguém acreditar no conselho de Cassandra, para que o malfazejo Cavalo de Tróia fosse destruído, e não acolhido. Ribeiro Telles, como Cassandra, raramente foi escutado, para lá da circunstância do verde, entretanto tornado politicamente correcto e indispensável na cartilha oratória papagueada – porque não realmente compreendida – pelos responsáveis e decisores, de quem nunca desistiu, mesmo face a mediocridade indizível. Costuma dizer-se que na morte todos os homens são bons, e os panegíricos excessivos. Este, genuinamente, foi-o em vida. O respeito transversalmente granjeado, inclusivamente por parte daqueles que dele discordavam – e que ele tanto apreciava, por contribuírem, com as suas diferenças, para o enriquecimento da discussão – é atestado disso mesmo. E todos os louvores serão, de facto, excessivos. Não por serem iméritos, mas porque ele os dispensaria, trocando-os por acção. Portanto, a Gonçalo Ribeiro Telles há apenas uma única homenagem que pode ser prestada por todos nós, enquanto cidadãos: o respeito e a concretização pelas ideias que formulou e materializou, e a continuação da sua insaciável curiosidade e do seu incansável espírito lutador. Estaremos realmente dispostos a realizá-la, dia após dia?
3 Comments
Nelson Mendes
15/11/2020 12:54:32
Uma perda Enorme!
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Gonçalo Duarte Gomes
16/11/2020 10:18:13
Nelson Mendes, tem muita razão quando diz que muitos dos que agora lamentam o seu desaparecimento, pouco ou nada ligaram à sua mensagem em vida.
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Miguel
16/11/2020 12:31:28
Gonçalo Ribeito Telles, foi e é para mim, que sou "jovem" e nem sequer Lisboeta mas Algarvio de Gema, a maior inspiração politica nacional - discordando de parte das suas crenças desde o catolicismo à Monarquia - a sua visão de justiça social e humanismo, e sobretudo a forma como perspectivava o país na sua paisagem e ordenamento, continuam actuais, e por cumprir.
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