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O que têm em comum a Covid-19 e o Terramoto de Lisboa de 1755?

24/4/2020

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Por Andreia Fidalgo

Bem sei que me arrisco a que a pergunta que dá mote à minha reflexão de hoje possa, aparentemente, parecer um verdadeiro desconchavo. Afinal de contas, o que podemos nós encontrar em comum entre o vírus que agora nos aflige e o terramoto que destruiu a capital portuguesa e também o Algarve a 1 de Novembro de 1755?


A resposta, porém, afigura-se-me muito evidente: une-os a filosofia!

Quer o surto pandémico que agora enfrentamos, quer o terramoto de 1755 constituem eventos extremos e catastróficos desencadeados pela Natureza que, ao colocarem em causa a aparente ordem natural do mundo, inspiram reflexões mais profundas sobre a fragilidade da condição humana e a sobre a forma de lidar com as adversidades.

A Covid-19 causou uma onda global e popular de optimismo associada ao movimento #VaiFicarTudoBem, que se desenrola nas mais diversas frentes da sociedade. Se por um lado encontramos as crianças a desenhar arco-íris em cartolinas e lençóis para embandeirar as janelas das suas habitações, motivadas pelos pais deliciados com tais proezas infantis, por outro lado assistimos a muita gente reputada na praça pública a embarcar na mesma onda optimista, que não raras vezes tem dado azo a entrevistas, a artigos de opinião e afins que se parecem ter desvinculado totalmente da realidade e são alheios a qualquer reflexão mais crítica e profunda sobre as consequências futuras desta crise.

No reverso da medalha – e numa aparente concepção maniqueísta do mundo – encontram-se aqueles que, sendo críticos do movimento #VaiFicarTudoBem, por contraste se situam exactamente no extremo oposto: além de tecerem críticas à ingenuidade dos eternos optimistas, apresentam cenários de tal modo fatalistas e distópicos que se tornam absolutamente paralisadores e inoperantes.

Esta problemática já tem sido, inclusivamente, abordada por outros autores aqui, no Lugar ao Sul. Recentemente, a Anabela Afonso relembrou que o optimismo não implica ignorar as dificuldades, e que pode inclusivamente constituir uma importante força catalisadora do trabalho que terá de ser empreendido para superarmos a crise.

Por outro lado, também o Gonçalo Duarte Gomes já tem por diversas vezes alertado para o perigo do “psicadelismo do #vaificartudobem e o niilismo do #vaitudocorrermal”, e apelado à necessidade de se encarar a situação actual e o futuro com realismo, sendo que se impõe encontrar um meio termo mais pragmático que pode ser até simultaneamente optimista e pessimista.

Com o devido distanciamento histórico, esta discussão actual faz em tudo lembrar as discussões filosóficas originadas por ocasião do Terramoto de 1 de Novembro de 1755.

Ora, como sabemos, na manhã desse fatídico Dia-de-Todos-os-Santos, a terra tremeu durante vários minutos, deixando um rastro imenso de destruição na cidade de Lisboa. Mas não só! Também o Algarve seria amplamente afectado, quer no sotavento, mas sobretudo no barlavento, uma vez que o epicentro do terramoto se localizou alguns quilómetros ao largo de Sagres. Foi, porém, em Lisboa que a destruição foi mais massiva. O terramoto fez ruir uma parte substancial das edificações da capital portuguesa, causando milhares de mortos. Os que fugiram, aterrorizados, dos edifícios que ruíam para a beira do Tejo, foram depois apanhados no tsunami que se seguiu. Findo o tsunami, vieram os incêndios, que conduziram parte da capital à devastação total. 
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Lisboa em ruínas após o terramoto de 1755 [gravura disponível online na BNP Digital]

Cenário absolutamente tenebroso e catastrófico, que constitui um dos episódios mais marcantes da História de Portugal. Foi o terramoto que deu força política ao Marquês de Pombal e fê-lo ascender como o estadista de força do reinado de D. José. Pombal conseguiu, efectivamente, reerguer a capital dos escombros, elaborando todo um plano de reconstrução da baixa lisboeta pautado pelo racionalismo das “Luzes”.

A catástrofe causada Terramoto de Lisboa de 1755 teve, no entanto, repercussões muitos mais amplas do que a escala nacional. Por toda a Europa circularam relatos, notícias e gravuras da destruição da cidade portuguesa, suscitando várias reflexões filosóficas nos mais ilustrados pensadores da época. As mais célebres encontraram expressão pela pena do filósofo Voltaire: em 1756 publica o Poema sobre o desastre de Lisboa, e em 1759 publica Cândido, ou o Optimismo.

Em ambas as obras, as principais críticas de Voltaire recaíam sobre o optimismo, conceito que requer algum enquadramento à época, na medida em que estava sobretudo vinculado à metafísica de Leibniz e à sua Teodiceia. A teodiceia foi um conceito cunhado em 1710 para tentar conciliar a ideia do “mal” com a ideia de um Deus infinitamente bondoso. Significa, no sentido literal, “justiça de Deus” e procurava, no âmago, responder à seguinte questão: “Se Deus é bom, então por que permite que exista o mal no mundo?”.

Numa visão totalizadora e universal, Leibniz concluiria sendo o mundo criado por Deus e, logo, perfeito e harmonioso, seria possível conciliar nele o máximo de bem e o mínimo de mal. O mundo é, portanto, “o melhor de todos os mundos possíveis”, máxima que resume a filosofia do optimismo de Leibniz, pois neste mundo prevalecia acima de tudo o bem.

Em suma, tudo vai bem, no melhor dos mundos possíveis! Eis o optimismo vigente na primeira metade do Século das Luzes, que em tudo nos faz lembrar os dias que correm.

Voltaire iria opor-se veementemente ao optimismo de Leibniz. Afastando-se da visão universal do filósofo alemão, Voltaire concentra-se em exemplos concretos para mostrar que nem tudo vai bem. O terramoto de Lisboa de 1755 seria precisamente um dos maiores exemplos com o qual Voltaire intentaria desmontar a metafísica de Leibniz, quando escreve o Poema sobre o desastre de Lisboa, onde questiona como é que no mais bem ordenado dos universos possíveis existe uma tão grande desordem e tamanha infelicidade, que arrasta consigo inocentes e culpados? Ainda por cima – e ironicamente –, uma tragédia ocorrida num dia de celebração da fé e de devoção, como o era o Dia-de-Todos-os-Santos.

Mas é sobretudo em Cândido, e ainda sob a influência do terramoto, que a crítica de Voltaire se agudiza. Nesta obra satírica, Voltaire narra a história do personagem homónimo, que é sempre acompanhado e exposto aos ensinamentos do seu mestre, Pangloss, o qual que simboliza a vulgarização do pensamento de Leibniz na máxima acima enunciada de que tudo vai bem, no melhor dos mundos possíveis. Sempre sob essa máxima, ao longo da narrativa Cândido é sujeito às maiores adversidades e dificuldades: é expulso do local onde mora, é preso, torturado, perde a sua amada e os seus amigos, e todas estas situações ocorrem com os maiores requintes de crueldade.

A obra serve, pois, para colocar o optimismo e a ideia de que este mundo era o melhor dos mundos em confronto com a desgraça, que aparece aí hiperbolizada, mas que leva o protagonista a questionar os ensinamentos do seu mestre: talvez o mundo não seja, afinal, o melhor dos mundos!

Mas, à medida que Cândido vai sofrendo uma sucessão picaresca de dissabores, existe uma outra ideia que vai surgindo ao longo da obra e que se exprime na sua última linha: é preciso cultivar o nosso jardim. Isto é, o mundo é uma mistura entre o bem e o mal e pode não ser o melhor possível, mas pode ser tornado melhor. É possível ao homem manter-se no bom caminho se for devidamente esclarecido pelas luzes da razão e se tiver consciência do seu papel no mundo. Fosse Cândido mais consciente da existência do mal e das imperfeições do mundo, e ter-se-ia certamente poupado de passar por tantos desgostos!

Apesar da crítica aguçada, Voltaire não assume uma posição diametralmente oposta ao optimismo, que se espelharia no pessimismo. O que ele critica, acima de tudo, é a ideia de predestinação que aparece associada ao optimismo leibniziano, que isenta o homem de qualquer papel activo na construção de um mundo melhor, pois pressupunha-se que este mundo harmonioso e ordenado era criação divina e já era o melhor dos mundos, ainda que nele também existisse o mal e a tragédia.

Para Voltaire, o optimismo nos moldes em que era desenhado espelhava uma visão pueril, ingénua e meramente contemplativa do mundo que era muito prejudicial à ideia de progresso. E o progresso era uma das principais bandeiras do Iluminismo, sendo que para existir progresso é necessário que haja esclarecimento e pragmatismo.

Ora, quer-me parecer que é possível transportar para a actualidade esta discussão filosófica setecentista. Isto porque, salvo algumas excepções, a onda do #VaiFicarTudoBem quase parece uma adaptação para a actualidade do optimismo leibniziano e da ideia de que os eventos seguem o seu rumo “natural”, não havendo muito que possamos fazer para os contrariar. É uma noção absolutamente inoperante e imobilizadora! Desenharmos arco-íris e repetirmos vezes sem conta que “Vai ficar tudo bem”, enquanto à nossa volta o mundo se desmorona, será mesmo a melhor forma de encarar a situação que temos de enfrentar?

O que mais me deixa perplexa nesta onda actual de optimismo não é o optimismo em si, pois acredito que uma boa dose de optimismo faz mais pela motivação do que o inverso. O que me deixa perplexa é quando esse optimismo se transmuta num recalcamento dos problemas e numa total ausência de espírito crítico relativamente ao futuro difícil que temos de enfrentar. Não quero com isto dizer que seja necessário resvalar para o campo oposto do pessimismo, igualmente pernicioso, mas sim que neste cenário generalizado de optimismo pueril, introduzir uma boa dose de realismo e pragmatismo voltairianos não faz se não bem.
​
Isto é, não creio que devemos aceitar, passivamente, que as coisas são como são e que tudo vai ficar bem no melhor dos mundos possíveis. Ao invés, talvez possamos relembrar que nem sempre tudo fica bem e que o mundo nem sempre é o melhor dos mundos, mas que este mundo pode ser transformado num mundo melhor. E é nesse sentido que temos de trabalhar: conscientes do presente, com um olhar mais amplo voltado para o futuro e contribuindo activamente para transformar o mundo em que vivemos.
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