Por Gonçalo Duarte Gomes Há precisamente uma semana, falava (aqui) da possibilidade de uma revolta dos esquecidos. Umas eleições presidenciais volvidas, verificou-se que em vez de insurreição, houve apenas um protesto dos esquecidos. Para evitar desde já o costumeiro discurso de ódio ou os axiomas de superioridade moral, apresento uma declaração de interesses: votei em branco nestas eleições, após ter votado em Marcelo Rebelo de Sousa há 5 anos. Optei pelo voto consciente – não me vendo representado em nenhum dos candidatos – em vez do útil – a proverbial escolha do mal menor – tema que, ainda assim confesso, me suscita sempre grande debate interno. Marcelo Rebelo de Sousa, conforme esperado, ganhou inequivocamente, à primeira volta, e com reforço de votação (venceu em todos os concelhos do País), as eleições presidenciais. A vitória da personificação da moderação – muitas vezes para lá do aceitável – e do bloco central representa, acima de qualquer dúvida, o prevalecer da normalidade democrática. Mais ainda quando, em segundo lugar, ficou uma candidata cujo lastro político é o de um envolvimento profundo nas dinâmicas e representações partidárias de uma estrutura responsável por cerca de 70% do tempo de governação em democracia. Ambos os candidatos agregaram praticamente ¾ dos votos depositados em urna, demonstrando a solidez do status quo político. Não fosse a brutal abstenção, poder-se-ia assim dizer que o nosso sistema político está de muito boa saúde. Mas nem é esse pequeno grande pormenor (que nesta eleição teve várias condicionantes extraordinárias) o que concentra as análises desta ressaca eleitoral. André Ventura, candidato populista, terceiro classificado na geral, ficou em segundo lugar em 11 (ou 12) dos 18 distritos nacionais, sendo Faro um deles. Veja-se este mapa ilustrativo da votação de André Ventura no território continental: Agora vejam-se estes dois mapas, constantes do Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (PNPOT, aprovado pela Lei n.º 99/2019, de 5 de Setembro): Para melhor clarificação, as vulnerabilidades ilustradas no mapa da esquerda prendem-se maioritariamente com desemprego, envelhecimento, precariedade social e dependência, enquanto que os serviços de interesse geral, à direita, são as actividades, comerciais ou não, sujeitas a obrigações específicas de serviço público e/ou de soberania (serviços de saúde, escolaridade obrigatória, serviços de emprego e formação, habitação social, infantários, cuidados de longa duração, serviços de assistência social, transportes públicos, segurança, justiça, energia, comunicações, etc.). Os serviços mínimos da dignidade, se quisermos. Naturalmente, a realidade do País não se esgota nestes dois mapas (que não reflectem ainda as dramáticas realidades introduzidas pela pandemia), e muitos outros se poderiam acrescentar. Mas todos revelarão mais ou menos as mesmas assimetrias e o défice de coesão territorial de Portugal, que se reflecte na sua população. Podemos acreditar muito em coincidências. Ou podemos, perante factos que nos suscitam preocupação, tentar encontrar as suas causas, em vez de nos entretermos a maldizer a espuma dos sintomas. O crescimento do populismo, que encontra nestas eleições uma expressão democrática significativa, aparenta ser uma forma de comunicação às oligarquias por parte das bases, dos esquecidos, dos que estão nos extremos errados das assimetrias, desesperados que estão perante o falhanço de todos os outros canais e o ensurdecedor silêncio em resposta aos seus problemas, a par da total degradação ética do regime. O status quo é livre de fazer o que faz melhor, desvalorizando tal facto, menorizando os votantes de que discorda, de os apelidar de estúpidos, fascistas, ignorantes, tudo e mais alguma coisa – incluindo sugerir, num espírito profundamente democrático, que nem todos deveriam poder votar, quase ao estilo das centúrias eleitorais romanas. Ou pode optar por experimentar algo diferente, e escutar.
6 Comments
Miguel
25/1/2021 13:13:57
Concordo em absoluto e digo-o muitas vezes, o Ventura - e os Venturas desta vida - não crescem com agua e sol, crescem porque as aspirações de sectores significativos da população, não são tidas em conta,e enquanto os partidos se centrarem no "combate à extrema direita" com os mesmos jargões e fantasmas ideológicos que quase nada dizem à maioria da população, estão a largar ainda mais lenha nessa fogueira.
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Gonçalo Duarte Gomes
25/1/2021 14:25:05
O André Ventura só é perigoso pelo espaço que pode abrir e conquistar para alguém que venha a seguir, já com outra profundidade ideológica.
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salvador santos
25/1/2021 18:14:18
boa análise. faltará avaliar, também, as razões da inclinação para o «populismo» de muitos privilegiados. Esse mapa também importa.
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Gonçalo Duarte Gomes
25/1/2021 18:21:11
Bem verdade, Salvador. Mas temo que esse será em tons de cinzento. Talvez cinzento neblina, para esconder o preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
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Nelson Mendes
25/1/2021 20:11:25
Mas não foi o mais populista dos candidatos foi quem ganhou? Para um Pais em certos Direitos Humanos básicos como cuidados de Saúde minimos e a Justiça em tempo aceitável não existem para o cidadão normal quando alguém diz umas alarvidades as pessoas querem acreditar. Claro que acho estranho um funcionário público em situação de licença-sem-vencimento ser o candidato contra o sistema eheh
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Gonçalo Duarte Gomes
26/1/2021 11:31:10
Nelson, compreendo o que diz.
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