Por Gonçalo Duarte Gomes As sequelas dos filmes são sempre piores que as películas originais. Isto é sabido. Os dias que vivemos confirmam esse aforismo empírico, e a segunda abordagem tuga de 2019 ao universo cinematográfico do Mad Max está longe do brilhantismo da primeira (ver aqui). Seja como for, a greve em curso empalidece face a uma outra que decorre em paralelo, e à qual não dispensamos uma porção infinitesimal da atenção: a do S. Pedro. Nesta greve, como na outra, e como sempre, o Algarve é a região mais penalizada. Mas, neste caso, com culpas no cartório. Seja porque esta segunda incursão dos motoristas de transporte de substâncias perigosas ao mundo das greves fora da esfera de interesse do Governo foi alvo de uma regulamentação musculada, incluindo a curiosa arregimentação de profissionais das forças de segurança e militares para suprir as lacunas criadas pelos grevistas, seja porque as pessoas se prepararam melhor, quer mental quer logisticamente, para a escassez de octanas, a coisa perde em toda a linha para a primeira versão. Apenas uma coisa se mantém: a capacidade que umas meras centenas de profissionais conseguem ter sobre a dinâmica de um País. Pode ser que na ressaca de tudo, se perceba afinal quem – se alguém, ou até mesmo ninguém – tem razão no braço-de-ferro entre patrões, sindicatos e trabalhadores (gosto sempre de lembrar que os interesses dos segundos e dos terceiros nem sempre coincidem), e se afinal isto é um sector de actividade sobre o qual seja interessante haver um maior controlo estatal, pelo menos de forma a assegurar o fornecimento estratégico de serviços e actividades nucleares para a sociedade (serviços de saúde, emergência, autoridades, etc.). Ou então talvez não, e talvez a coisa se salde por umas costumeiras e inconsequentes águas de bacalhau. Até à próxima. Entretanto, nós no Algarve, vivemos com o coração nas mãos, face à incerteza das barcaças que carregam botox e silicone se conseguirem abastecer em Vilamoura, ou se as hordas de acólitos do GPS se podem arrastar de um lado para o outro nas frotas de rent-a-car e afins, pois o Turismo é o que mais interessa. Em boa verdade, a Ele devemos ser gratos, pois coincidisse a greve com período em que o País não resvalasse latitude abaixo, em direcção a este nosso desterro, e provavelmente teríamos ainda menos pontos incluídos na Rede Estratégica de Postos de Abastecimento (a tal rede onde a exclusão do concelho de São Brás de Alportel, fundamental no desenho de uma outra rede, a de prevenção e combate a incêndios rurais, mostra bem as prioridades...). E não, não vou bater na velha tecla das deficiências estruturais e processuais, em termos de cadeias de abastecimento e distribuição, nem na da debilidade e fragilidade da mobilidade no Algarve, assente exclusivamente no transporte rodoviário e individual. Principalmente porque quem corre por gosto não cansa. De qualquer forma, que bom seria que as pessoas se preocupassem tanto com a falta de água como com a falta de combustível, e que, de igual forma, se precavessem contra gastos supérfluos de um recurso fundamental em quadro de escassez. É certo que sem gasosa no bólide, principalmente no Algarve, nada se faz. Mas sem água, faz-se ainda menos, incluindo aquela coisa que se chama viver, ou lá o que é... As disponibilidades hídricas no Algarve são limitadas. Não apenas devido à precipitação total, mas também, e fundamentalmente, devido à sua distribuição (concentrada em poucos e curtos períodos no ano), que dificultam sobremaneira o seu armazenamento e aproveitamento. Isto não é de hoje, nem de ontem, mas com o aumento das captações, das extracções, dos consumos, e o efeito das alterações climáticas quer nos períodos de Inverno, quer de Verão (as estações intermédias estão mais ou menos pulverizadas), o cenário é de agravamento de uma situação já de si delicada. Vai um exemplo? O Palmer Drought Severity Index (PDSI) é um índice utilizado para monitorizar o estado de seca no território nacional, combinando os efeitos de temperatura, precipitação e capacidade de água disponível no solo. Actualmente, e de acordo com esse índice, calculado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera para Portugal, em Julho o Algarve encontrava-se já em seca extrema, o estado mais grave. Um dos reflexos desta condição é a escassa disponibilidade hídrica no solo, que lhe confere a capacidade para suportar vida, e que assegura a função vital da água na paisagem. Também de acordo com dados do IPMA, à data de início da greve dos camionistas de matérias perigosas, também esse indicador estava bem mirrado no Algarve. Note-se que o problema aqui não é o facto destes dois indicadores estarem neste ponto, mas o facto de, com cada vez maior frequência, virem parar a este ponto.
Mas quanto a isto, pouco se fala, e o Algarve mantém uma atitude displicente perante os recursos hídricos (ver aqui). Os gastos e perdas de água são em regime de fartar-vilanagem, as campanhas de sensibilização pedem “pingos” de consciência em vez que exigirem baldes da mesma, sonha-se com iniciativas que vão esgotar ainda mais os aquíferos, como praias serranas, entre muitos outros devaneios. Se perante a escassez de combustíveis já mergulhamos em cenários de “civismo” que fazem lembrar uma versão adulta d’O Senhor das Moscas, de William Golding, o que acontecerá quando o fundo destes outros reservatórios se vislumbrar, e sem haver jerricans que nos valham? Entre greves, rentrée futebolística e sunsets, talvez valesse a pena pensar nisso. Ou não.
1 Comentário
Miguel
19/8/2019 14:47:20
O não pensar nisso sendo exercício que o comum cidadão faz quase diariamente - e que vivendo no Algarve é necessário para manter a sanidade mental - é exemplarmente cumprido pelos dirigentes de além e aquém Tejo, logo se vê, amanhã é outro dia, os campos de golfe estão verdes e as piscinas cheias, e resta sempre a praia, clama o Estado Central e acenam de forma copiosa os responsáveis locais .
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