Por Gonçalo Duarte Gomes Há uma semana tive o privilégio de ser convidado a fazer uma apresentação do livro “Transitoriamente Reitor”, da autoria do António Branco e editado pela Sul, Sol e Sal, em conjunto com o Bruno Inácio. Para quem não saiba, eu e o Bruno somos os maiores especialistas em António Branco, num período compreendido entre cerca das 21:30 e uma hora posterior que não sei precisar, de todas as Sextas-feiras que calhem no dia 13 de Dezembro de 2019, no espaço confinado da Fnac de Faro. Uma espécie de singularidade espácio-temporal literário-cultural, vá, com poucas probabilidades de se repetir. Nessa sessão, e explanando tal sapiência, demos resposta a todas as perguntas que as pessoas sempre quiseram fazer sobre ele, mas tinham vergonha. Ou então, de forma mais prudente e ponderada, limitámo-nos a dinamizar uma amena cavaqueira acerca de um livro que é mesmo bom e que, estando nós à beira do Natal, me parece uma excelente prenda para o sapatinho de qualquer pessoa que se interesse sobre reflexões em torno da Educação, da Universidade, da Sociedade, da Cultura, do exercício do poder, da Cidadania e… do Amor! Partilho então, mutatis mutandis, as ideias que, pela minha parte, foram ali veiculadas, e outras que entretanto me esqueci e que gostaria de me ter lembrado. Metem-se com amadores, dá nisto… “Sou atavicamente deficitário em protocolo. Por isso mesmo, vou aproveitar a oportunidade de aqui estar - graças ao generoso mas inconsciente convite que o António Branco me endereçou e agradeço, mas que comparo à introdução de um paquiderme numa loja de porcelana - para falar não do autor (sobejamente conhecido e por todos acarinhado) nem tanto da obra - comprem e leiam, o que fará as simultâneas delícias de editor e autor - mas antes de mim. O meu nome é Gonçalo Duarte Gomes, e entrei na Universidade do Algarve em 1998, tendo sido inscrito como o aluno n.º 15528 daquela casa, na então inovadora Licenciatura em Arquitectura Paisagista (num tempo em que as licenciaturas não eram servidas à bolonhesa), integrando a irrepetível primeira fornada daquele curso. Completei a componente curricular em 2003, e defendi a minha tese nos primeiros dias de 2006. No decurso dos 5 anos em que frequentei assiduamente (e esta é a versão oficial dos factos, não vão os meus pais ler isto) a Universidade, envolvi-me nas representações dos estudantes nos órgãos da Unidade de Ciências e Tecnologias Agrárias, e mais tarde da Faculdade de Engenharia e Recursos Naturais. Colaborei também com a Associação Académica, contribuindo para a preparação da base do que viria mais tarde a ser o Núcleo de Estudantes de Arquitectura Paisagista. Conjuntamente com outros, participei na discussão e definição do currículo e corpo docente do meu curso, lutei por condições de estudo adequadas a necessidades inéditas na Universidade, mendiguei por livros estranhos para a biblioteca. Integrei discussões e conflitos institucionais fracturantes, de onde destaco o penoso processo de reconhecimento e credibilização (interna e externa), mais até do que acreditação, da licenciatura. Temperei, confeccionei e servi dezenas e dezenas de bifanas e servi centenas de litros de bebidas (alcoólicas mas não só) na barraquinha de Arquitectura Paisagista na Semana Académica de um longínquo ano, algures no século passado. Nunca, em todo este tempo, em todo este percurso, ouvi sequer falar de António Branco. Ora, sendo-me desconhecido, fácil será antever que nunca me tenha dado uma aula formal (ou qualquer outra). Não obstante, considero-o um meu Professor. Conheci-o anos mais tarde, para lá do furor mediático que a eleição de um Reitor gera, no âmbito de uma iniciativa eloquente relativamente ao espírito do seu mandato: o périplo que realizou pelos concelhos do Algarve, numa espécie de "Reitoria Aberta", destinada a fazer a Academia descer da sua "torre de cristal", numa aproximação e abertura da Universidade à realidade administrativa, social, cultural e económica da região que lhe empresta o nome, integrando a sua comunidade efectiva, e com ela estreitando laços, extravasando os limitados limites de um mecânico fornecedor de títulos académicos. Foi assim que, a 28 de Março de 2014, no Museu do Trajo, em São Brás de Alportel, integrei, enquanto Presidente da Al-Portel - Associação de Defesa do Ambiente e do Património Cultural de São Brás de Alportel, e a convite do Município, uma comitiva que com António Branco reuniu. Recordo-me de aí lhe ter transmitido a preocupação pelo distanciamento da UAlg relativamente às questões cívicas e de defesa dos valores naturais e patrimoniais da região, fragilizando a massa crítica regional e o papel da Universidade, enquanto fonte de cidadãos activos e conscientes, para além de técnicos em maior ou menor medida qualificados. Do diálogo resultante, franco e desassombrado, resultou uma impressão estranha, porque estranhamente boa, daquele então desconhecido Reitor. A de alguém que não temia debater abertamente as fragilidades da sua instituição, sem no entanto transigir no seu enquadramento nas dificuldades e constrangimentos intrínsecos de tempo e circunstância, nunca como desculpas para o que fosse, mas antes como objectivos de aperfeiçoamento, num esforço que, no espírito desse seu périplo, convidava a que fosse partilhado, para bem comum, e construção de uma democracia cada vez mais participativa, saudável e robusta. Mais tarde nesse ano, novo encontro, dessa feita em nome da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, para discutir perigosas derivas no perfil formativo e corpo docente da licenciatura em Arquitectura Paisagista da UAlg. No contexto de um confronto duro, mas recto, entre Prática e Academia – velho cisma – no qual os poderes de intervenção do Reitor eram limitadíssimos, conheci o papel mediador do António Branco, e a sua apurada sensibilidade às várias questões de dois mundos que são, afinal, um só. Em jeito de confissão, confessarei que foram estes contactos particularmente marcantes pelo facto de, nos meus tempos de UAlg, não ter encontrado uma verdadeira alma mater*, mas antes um espaço de consumo de informação, pouco propenso à geração de efectivo e nutritivo Conhecimento, e sempre algo fechado sobre si mesmo. Mesmo sendo eu um felizardo que teve o privilégio de contactar com autênticos Mestres no meu percurso académico. Arriscando na heresia, e sendo certo que todos os Reitores são magníficos, ouso afirmar que uns são, por força de sensibilidades e valores pessoais, mais magníficos do que outros. Por isso afirmo que gostaria de ter sido aluno deste Reitor, inspirador pela palavra e pelo gesto. E este livro, em meu ver, explica o porquê, algo que tentarei partilhar convosco, tentando não estragar grandemente o exercício de descoberta da leitura. Tenho no entanto que declarar desde já que o livro tem um tremendo calcanhar de Aquiles em termos de enredo (spoiler alert): todos sabemos que ele se demite no fim. Mas comecemos pelo princípio: o magistral discurso de tomada de posse. Constitui, na sua riqueza e profundidade, uma autêntica sinfonia de palavras, que nos envolve num crescendo desafiante, porque faz sentir e pensar, até ao seu simples, desarmante e, ainda assim, apoteótico final, homenagem maior a quem tão grande e decisiva influência teve na sua vida: Sou o António Branco, 52 anos, nascido em Angola, filho de uma professora e de um jornalista, filho adotivo do Algarve, professor. Transitoriamente reitor. Contai com isto de mim, para a UAlg e para o resto. Senti-me então, no final da leitura desse texto (que por culpa própria desconhecia em absoluto), Salieri, no inesquecível retrato de F. Murray Abraham no "Amadeus" de Milos Forman, quando recebe das mãos de Constanze as pautas de Mozart, para sobre elas opinar: "Deslocasse-se uma palavra, haveria diminuição. Deslocasse-se uma frase, e a estrutura ruiria!". Por entre tal epifania, e tal como Salieri, senti um misto de deslumbramento e, admito, inveja (embora da boa, note-se). Pela palavra, pela postura, pela ideia, por ver nos valores da Universidade deste Reitor - ainda que meramente sob a forma desejada - uma em que gostaria de ter estudado, de forma a encontrar a tal alma mater que há pouco manifestei perdida na “minha” UAlg. No fundo, uma tomada de posse que, mais do que mera formalidade pomposa, daquelas imortalizadas de forma tão certeira e mordaz na tomada de posse do Dr. Oliveira Casca enquanto Presidente d'”O Tal Canal”, pela imaginação de Herman José, foi apresentação de um manifesto. Ou antes, de uma declaração de amor. Pela Educação, pela Cidadania, pela Democracia, pela Universidade enquanto bastião dos valores mais elevados sobre os quais se constrói o progresso da Sociedade. Mas, sendo este um livro sobre um Reitor transitório, atravessa e reflecte, necessariamente, um intervalo, com um antes e um depois. Nesse caso, haveria também um António Branco antes do Reitor e um António Branco depois do Reitor? E, sendo ele alguém que, em discurso directo "tanto ama as palavras" e "sabe como elas podem ser as nossas piores inimigas", de que forma este intermezzo alterou o seu verbo? Ainda para mais quando, no seu discurso, as palavras são surgem à toa, mas antes são meticulosamente seleccionadas, em reverente respeito pelo seu significado e contexto... Foi essa curiosidade que presidiu e orientou a minha leitura deste livro. Perceber que impacto teve o Reitor sobre o Homem. Porque este livro, embora sobre o Reitor, mostra-nos sempre o Homem, já que poucas coisas despem tanto a alma como o acto de escrever - e aqui pronuncio-me em plena farsa, como se percebesse algo do assunto. Porque a palavra escrita não apenas abre o nosso pensamento ao Mundo, como o faz para a eternidade, impossibilitando recuo ou alternativa. Pior ainda, deixa de ser nossa, e fica à mercê do infinito de possíveis interpretações que os outros possam ou queiram dela fazer. A revisitação e publicação destes textos é então generosa partilha, corajoso testemunho e gesto de amor por todos nós (e o amor é tema recorrente para António Branco, seja ao pronunciar-se acerca de violência doméstica ou o papel das freguesias no Mundo). Textos em que a palavra (enquanto materialização do pensamento) é ferramenta de construção do Mundo e arma contra o obscurantismo do Medo, do Ódio, da Ignorância. Um legado que nos deixa, através das suas palavras, num infelizmente ainda raro exercício de retrospectiva introspectiva por parte de titulares de cargos públicos relevantes, que importa saber escutar e sobre ele reflectir. No princípio, como Verbo primordial, uma consciência. De que o poder – em qualquer das suas múltiplas expressões – coloca diante daquele que o toma, perigos e vícios, exigindo vigilância e escrutínio. Dos outros, mas principalmente do próprio. De seguida, uma segurança. A de que o poder está sempre bem entregue nas mãos de quem o respeita, teme, e não deseja, tomando-o como responsabilidade. No final, um apelo. Ao envolvimento e responsabilização de toda uma estrutura, recolhendo contributos, promovendo um exercício de plena democracia participativa, em complemento à representativa. Aí é notória a projecção da sua perspectiva de serviço enquanto Reitor na própria Universidade. Alicerçada numa força institucional que se edifica de baixo para cima, com o envolvimento e participação empenhada de todos os actores, num exercício de plena comunidade. Uma comunidade consciente. Da Universidade que é e da região em que se insere e que dela muito precisa, embora por vezes os dialectos de ternura entre ambas esbarrem em problemas de expressão. Nas paredes desta Universidade, é então projectada em sombras uma alegoria da caverna, através de um filtro redentor que pretende pensar e imaginar um Pais melhor, mais atento, mais cidadão, mais pleno. De que essa mesma Universidade é berçário, enquanto viveiro dos valores sobre os quais se ergue uma Democracia, com pensamento livre e descomprometido – excepto para com o progresso da Humanidade, local, regional, nacional ou globalmente – crítico, consciente, empenhado, activo e participativo, com a centelha da curiosidade e da inquietação a animar cada espírito e cada mente. A Educação como desígnio e missão da Universidade, entendida como mais do que mero “ensino” e, acima de tudo, como pilar fundamental do Estado Democrático. No fundo, uma posição de firme resistência contra os perigos e tentações da mercantilização e massificação (não confundível com democratização) da Academia. Uma consciência profunda da Universidade como repositório da “conversa mais antiga e mais inacabada entre aqueles que estão a chegar e aqueles que já chegaram e que, por isso, sabem que chegar é começar a partir”. Dentro dela, a preocupação com o “letramento” – conceito cuja sonoridade me não é confortável, confesso – é outra marca da elevação das preocupações pedagógicas e cívicas deste reitorado: o estudante universitário como guardião da responsabilidade do Conhecimento, a quem não basta saber juntar letras e números em processos mecânicos, mas antes apenas se sacia na capacidade de ler e escrever, criticamente, o Mundo. Tais estudantes, assim capacitados, serão o maior contributo desta (ou qualquer outra Universidade) para o seu País: cidadãos plenos, conscientes e interventivos, solidários e humanos, não meros autómatos, técnica e profissionalmente treinados e refinados. A Universidade transforma-se assim em templo do Conhecimento, o seu corpo docente nos seus sacerdotes e cada aluno num fervoroso e inabalável devoto, para sempre marcado pelo seu tempo na UAlg. Liderada pelo exemplo e pelo verbo, na pessoa do seu transitório Reitor. Aberto ao diálogo, não apenas no confortável espaço da concordância, mas antes sempre convidando à manifestação da discordância. Com o sereno mas firme alerta à navegação – para quem o quisesse ler – de que o consenso não se faria de hipocrisia, cedências ou trocas, mas antes num quadro de leal e frontal (por dura que pudesse ser) negociação, enquadrado por valores fundamentais, esses sim, inegociáveis. Corajoso e honesto, assumindo que nem tudo correu bem, num tempo de falsas mas constantemente espectaculares perfeições. Corajoso e honesto, enfrentando os problemas estruturais, administrativos, legais, orgânicos e financeiros que tempos cruelmente pragmáticos impõem ao sonho da Educação, e as vitórias e derrotas alcançadas. Corajoso e honesto, na abordagem e recontro sem medo com polémicas de difícil gestão, como por exemplo as praxes, principalmente na sequência dos acontecimentos de Outubro de 2015, na Praia de Faro. Não posso deixar de chamar a atenção para o epílogo do livro. Um magistral, escorreito e imaculado exercício de honestidade intelectual, que constitui um testemunho basilar de cidadania, e que dela deverá constituir referência futura, pelo menos de um futuro digno desse nome. Guardo, como privilégio e honra pessoal, a oportunidade que me foi dada de ser anfitrião da publicação desse texto no blogue e espaço de reflexão “Lugar ao Sul”, num encontro a meio caminho entre a ousadia atrevida de um convite meu e a generosidade da partilha do António. Num tempo em que as Universidades, em vez de constituírem vacinas contra a estupidez, se parecem cada vez mais tornar focos dessa fatal infecção, li neste conjunto de discursos uma Universidade, a de António Branco, como Thomas More escutou de Rafael Hitlodeu a descrição da República de Utopia**. E tal como More em relação às instituições daquele país imaginado, desejo-a mais do que a espero. Ainda assim, e para isso, conto com ele, um homem que não foi Reitor. Esteve Reitor. E conto com ele porque, na saída como na entrada, afirmou-se: António Branco, 56 anos, algarvio nascido em Angola, filho de uma professora e de um jornalista, professor e investigador que transitoriamente foi reitor. Contem com isto de mim, para a UAlg e para o resto. Vamos então ao resto. * para que se perceba como são desconcertantes os verdadeiros Professores, tenho que confessar que, no simples decurso desta sessão, e com apenas algumas frases, o António Branco me obrigou a pensar nesta questão por outro prisma, fazendo com que hoje não tenha assim tanta certeza de que esta lacuna de alma mater seja uma coisa afinal tão má…
** obra que só hoje, na preparação deste texto, descobri fazer parte do retrato oficial do 7º (quem ligue mais a números não deixará de fazer a associação) Reitor da Universidade do Algarve, António Branco.
1 Comment
Miguel
20/12/2019 19:14:15
Mais uma vez caro Gonçalo, subscrevo e aplaudo o texto em questão.
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