Por Gonçalo Duarte Gomes Hoje é dia de Boião de Cultura. Porque só o título da rubrica “cultural”, assim baptizada por Herman José no programa Parabéns, serve de recipiente à maionese em que ousadamente me proponho mergulhar. Ingredientes: cultura, elitismo e… os refrigerantes Jaguar! E o que relaciona tão díspares temas? Nada, e precisamente o seu contrário… Nesta semana ocorreu um debate promovido pela Acesso Cultura, em torno da pergunta “O que é o elitismo na cultura?”. Um painel composto por pessoas interessantíssimas, intervenções plenas de matéria desafiante e uma reflexão amplamente participada pelos presentes. No entanto, ficou-me plantada uma serena inquietação, derivada da constatação de que as ideias abordadas neste debate focaram-se totalmente na cultura que simplisticamente (por necessidade) designarei como “dos eventos”, ou das expressões artísticas plásticas e/ou de palco, quase na cultura (e aqui sei que estou a entrar numa provocatória quase heresia) do entretenimento. Nem uma palavra para a cultura vernacular. As premissas da conversa estavam completamente em aberto, não havendo qualquer obrigação ou expectativa que orientasse a conversa neste ou noutro qualquer sentido, mas dei por mim a pensar que é este “entretenimento artístico” aquilo que o métier (um galicismo é inevitável a falar de cultura...) preferencialmente discute, enquanto a cultura acontece e lhes passa ao lado. Consequência de um elitismo na cultura semelhante ao que na política origina as previsíveis surpresas de eleição dos underdogs populistas? Não sei… Mas o resultado acaba por ser semelhante. Isto porque parece faltar uma visão integradora do fenómeno cultural, que dê coerência ao conjunto da cultura erudita e da cultura do dia-a-dia, aquela que nasce do quotidiano de um povo, das suas formas de ocupar e viver os territórios, e que cunha a sua identidade nas paisagens, mas que é, de alguma forma, um parente pobre desta douta família. Como acontece a qualquer ovelha negra, fica posta de parte, desconsiderada, e a sua gestão entregue à sorte e a curiosos. Um exemplo simples, mas para mim representativo, dos efeitos desse abandono passou-se recentemente no Largo de S. Sebastião, em S. Brás de Alportel, onde, no âmbito da “modernização” de um estabelecimento comercial, foi destruído um velhinho painel publicitário de azulejos da marca algarvia de refrigerantes Jaguar, num processo exemplificado na imagem abaixo. Minudências, dir-se-á.
Os painéis de azulejos da Jaguar, tal como os da Schweppes, Mabor General (cujo painel electrónico, no edifício homónimo, em Portimão, não resistiu também à “modernidade”) e outros que ainda se vão encontrando, pese embora tratarem-se de objectos concebidos para efeitos comerciais, são testemunhos importantes de um tempo, não apenas pelo grafismo utilizado (em muitos casos, autênticas expressões artísticas), mas pela representatividade da forma como o consumo e sua comunicação eram vividos no arranque da sua era e, não menos importante, pelas icónicas imagens urbanas (principalmente) que vincaram. Não há um génio da lâmpada (ou da garrafa), como no conto de Aladino, mas um genius loci, um espírito do lugar. E quem diz isto, diz outras pequenas coisas. São portanto memórias da construção da nossa identidade regional ao longo dos tempos (no caso da Jaguar então ainda mais, tal como outras marcas algarvias entretanto desaparecidas, caso da Simão, da Sóbom, da Vitalima ou do refrigerante O Melhor, entre outras) que, numa sociedade evoluída e bem resolvida, interessaria preservar. Neste caso, tal não aconteceu. Mesmo tratando-se de um imóvel localizado no coração de uma vila que se assume e vende como pitoresca e amante das suas raízes e memórias, localizado também num Centro Histórico que é inclusivamente objecto de delimitação de uma Área de Reabilitação Urbana (cujo objectivo é facilitar e promover, de forma mais ágil, a revitalização e renovação, mas preservando a memória e o património) e sobre o qual vigora um Plano de Pormenor com regulamentação específica para elementos decorativos, e que tem ainda criada uma Comissão de Preservação – ainda que quase sempre excluída dos temas importantes. Mesmo com tudo isto, esta singela memória (facílima de integrar em qualquer renovação com gosto e “arte”), parte da imagem urbana deste largo, não resistiu ao ascetismo saloio de uma “arquitectura” descontextualizada, que marcou o compasso deste "makeover". E, nos nossos núcleos históricos regionais, frequentemente desprovidos de elementos patrimoniais que constituam monumentos, a riqueza faz-se do conjunto das tais pequenas coisas. Desaparecendo isso, desaparece o todo, que é maior do que a mera soma das suas partes. Estanco Louro, autor da brilhante monografia O Livro de Alportel, já no início do Séc. XX alertava para os riscos do que designou por “diletantismo mental” na construção do futuro… mas ninguém o ouviu. Não se trata de fazer uma tempestade num copo de água (ou, no caso, garrafa de refrigerante). Trata-se, isso sim, de não conseguir calar a estupefacção pelo facto de não aprendermos rigorosamente nada com os erros do passado. E porque a tipificação adoptada por Gil Vicente se mantém actual, obviamente o que importa aqui é, mais do que o caso, o princípio. Porque não é ocorrência isolada. Olhão, com as “densificações”, torres e “novas configurações espaciais”, que em bacocos planos ameaçam o carácter dos seus bairros históricos, transformando-os em ridículos ensaios de onanismo intelectual ou cenários turísticos, em vez de tecidos vivos e vividos, será apenas mais um exemplo. A gestão das zonas históricas, cascos velhos, o que se queira chamar, deve fazer-se, sem dúvida, orientada para o futuro (não falo em progresso porque esse conceito carece de aprofundada reflexão e discussão). Mas com a sensibilidade que o seu carácter exige, garantindo continuidade na evolução. Quer isso dizer que não basta dizer que se tem a questão no centro das prioridades de gestão, ou que é um desígnio programático, ou tretas e chavões do género. É preciso saber ou ir buscar quem saiba, é preciso falar, ouvir e escutar. Compreender. E só depois intervir. Tanto se teme a sensibilidade de calhau do Trump americano, e tão pouca atenção se dá às "trumpalhadas" que se vão fazendo na gestão doméstica. Por isso mesmo, e já que a questão existencialista do elitismo na cultura está em pleno tratamento, acho que vou propor uma outra, não menos pertinente: Onde param as elites da gestão patrimonial?
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