Por Andreia Fidalgo Fala a Loucura: O que quer que os vulgares mortais digam de mim – e não sou tão tola que não saiba quanto de mal se ouve dizer da Loucura, mesmo entre os mais loucos – no entanto sou eu, só eu, a única que com o meu espírito alegro os deuses e os homens. A prova é evidente, pois mal apareci diante deste numerosíssimo auditório, logo os olhos de todos brilharam com uma súbita e insólita alegria, tão de imediato aliviastes o sobrolho carregado, e o vosso amável riso me aplaudiu alegremente que, na certa, me parece que todos os que vejo ao meu redor estais, como os deuses de Homero, ébrios pelo néctar, misturado com um pouco de nepente, enquanto instantes antes estáveis sentados, ansiosos e tristes, como se tivésseis escapado do antro de Trofónio. Quem nunca ouviu falar de Erasmo de Roterdão ou d’O Elogio da Loucura? A obra foi escrita pelo humanista em 1509, publicada pouco tempo depois, e tornou-se numa das obras mais famosas do Renascimento europeu, ainda lida nos dias de hoje. Erasmo de Roterdão foi um dos mais destacados intelectuais do seu tempo. O seu percurso deve ser entendido no âmbito de um movimento cultural que dominou o Renascimento e que ficou conhecido por Humanismo. Depois de uma época medieval marcada pelo teocentrismo, o Humanismo, muito inspirado pelos ideais da Antiguidade Clássica, devolveu o protagonismo ao homem, colocando-o no centro do mundo, numa postura marcadamente antropocêntrica. Numa perspectiva abrangente, o Humanismo corresponde à valorização do papel do homem neste mundo, à valorização das suas capacidades enquanto ser racional, e à valorização da sua acção transformadora. Nada disto significou, porém, que o Cristianismo tivesse perdido primazia. Erasmo de Roterdão dialogava particularmente com o Humanismo Cristão – a que, por sua causa, também podemos chamar de Erasmismo, uma vez que foi ele o seu principal percursor. O Humanismo Cristão, na visão erasmiana, pautava-se pela ideia de que a prática religiosa formalista da Idade Média deveria ser transformada numa prática religiosa interior e pessoal. Isso só seria possível de atingir, em pleno, pelo homem que fosse formado pela literatura clássica e transformado pelo Evangelho. As línguas e as literaturas clássicas seriam, pois, essenciais na formação do homem, mas era na Bíblia se encontrava a moralidade e o sentido da vida. Este pensamento erasmiano encerrava em si a ideia de que era possível a renovação e reforma da sociedade daquela época através da síntese entre a cultura clássica e o pensamento cristão. Erasmo era, assim, crítico do seu próprio tempo. Porém, enquanto pacifista que era, nunca defendeu uma cisão da Cristandade, como a que viria a acontecer com a Reforma de Lutero. O Elogio da Loucura insere-se precisamente nesta lógica reformista e crítica de Erasmo. Através da ironia, do sarcasmo e da sátira, o humanista cria uma personagem mitológica, a Loucura, filha de Pluto, deus da riqueza e de Neotetes, ninfa da Juventude, que se faz acompanhar pelo Amor-próprio, pela Adulação, pelo Esquecimento, pela Preguiça, pela Volúpia, pela Irreflexão, pela Moleza, pelo Festejo e pelo Sono Profundo. Erasmo utiliza a Loucura para explicar o comportamento de todos os que são criticados ao longo da sua obra, e a sua crítica passava por toda a sociedade, sendo que nem o Papa, nem os Príncipes escaparam incólumes. A Loucura, que fala na primeira pessoa, afirma que “nenhum homem pode viver de modo feliz se não for iniciado nos meus ritos e se não me tiver por propícia”. “A Fortuna ama os homens insensatos, os mais audazes, e agrada-lhe os que dizem: «A sorte está lançada!”. A Sabedoria, por outro lado, torna-os tímidos e é por isso que vedes os sábios no meio da pobreza, da fome e do fumo; vivem esquecidos, sem glória, sem simpatia. Os loucos, pelo contrário, nadam em dinheiro, tomam o governo do Estado, numa palavra, prosperam sob todos os aspectos”. Diria que a leitura de O Elogio da Loucura surpreende ainda nos dias de hoje pela sua actualidade. É certo que a sociedade é, actualmente, muito diferente daquela que Erasmo criticava, assim como os problemas que nos assolam são muito distintos. No entanto, a natureza humana parece não ter sofrido grandes alterações. Não raras vezes dou por mim a pensar que tanto do comportamento errático, alucinado e completamente amoral que por aí se vê, inclusivamente nas mais altas esferas, só se pode dever à presença de uma boa dose de loucura. Não será esta uma boa forma de o explicar? Na Loucura se contém a ganância, a sede de poder, de riqueza e de fama, o “salve-se quem puder”, a falta de amor ao próximo, a falta de humanidade. A Loucura exclui a sabedoria, exclui o bom-senso, exclui o racionalismo. A Loucura exclui o Humanismo e os seus valores intrínsecos de defesa da dignidade humana. A Loucura corrompe e destrói. Alastra-se, essa, sim, numa verdadeira pandemia difícil de exterminar. Mas, ainda há que a contrarie, quem lute contra essa corrente, quem coloque os valores humanistas à frente de tudo… Termino, recordando as palavras de António Rosa Mendes, grande Mestre que me iniciou no pensamento de Erasmo de Roterdão: “Para Erasmo, só a moral poderia salvar o mundo da autodestruição. As suas lições não perdem a sua premente actualidade e todos os que hoje reclamam a subordinação da política à moral são seus discípulos”. NOTA: A edição citada neste texto foi: Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura, edição bilíngue, trad. do latim e notas por Alexandra de Brito Mariano. Lisboa: Nova Veja, 2012.
4 Comments
Maria Antônia ajuda pereira
10/2/2021 14:47:38
Excelente...gostei imenso.
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Miguel
10/2/2021 18:21:53
Excelente texto Andreia, tempos difíceis são sempre tempos de loucura, essa loucura não é mais do que, Natureza Humana.
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Liliana Palhinha
12/2/2021 09:15:03
Muito bom e oportuno
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Nelson Mendes
12/2/2021 13:40:39
Óptimo texto. Erasmo de Roterdão foi um gigante da dialéctica, expecialmente tendo em conta a sua biografia e o contexto em que vivia, por exemplo a Inquisição.
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