Por Gonçalo Duarte Gomes Há 11 anos, Portugal dizia a si mesmo que se ia limpar! Não, não se propunha erradicar a corrupção, esse lastro que nos submerge e impede de rumar a uma condição de maior desenvolvimento e justiça social, mas apontava a um objectivo igualmente lírico: num só dia, a população iria lançar mão à obra para limpar o lixo que, um pouco por todo o lado, feria as nossas paisagens! A inspiração, como não podia deixar de ser, vinha de fora.
Na Estónia, em 2008, foi organizada uma campanha denominada “Let’s Do It!”, para limpar o lixo do País. A iniciativa mobilizou cerca de 4% da população daquele país, recolhendo mais de 10.000 toneladas de resíduos, realizando em horas o que demoraria ao seu Governo provavelmente anos a fazer – e com custos certamente astronómicos. Em Portugal, a 20 de Março de 2010, 100.000 pessoas – 1% da população – lançaram mãos à obra de limpar, na sequência de uma campanha prévia de identificação e localização (uma coisa então rudimentar chamada Google Maps deu uma grande ajuda, sendo tudo coordenado através de uma plataforma online) de lixeiras e depósitos ilegais de resíduos. Estima-se que, nesse dia, tenham sido recolhidas e encaminhadas a destino final autorizado (sem cobrança de taxas) cerca de 50.000 toneladas de lixo. Para além de tomar nas suas mãos a tentativa de resolução de um problema que identificava como grave, demonstrando que, com vontade e cooperação, era possível fazer mais e melhor, a sociedade civil pretendia, de alguma forma, enviar um sinal muito claro aos que poluíam e às entidades públicas que, por omissão, lhes davam larga margem de manobra e ofereciam um regime de impunidade. Uma espécie de grito de revolta da cidadania, direccionado à vilania (ou à porcaria e aos porcos) e à burocracia incapaz e conivente. Contra o conformismo e o cepticismo. No final do dia, nunca pilhas de lixo pareceram tão bonitas, filtradas por um sentimento de profunda alegria e realização, em comunhão com tanta gente que, em uníssono, se tinha conseguido unir e mobilizar para fazer algo. Só em S. Brás de Alportel, no concelho onde participei, 62 voluntários, 4 entidades (Associação Al-Portel, Câmara Municipal, Algar e Sofareia), apoiadas por 4 viaturas de recolha de resíduos e 1 autocarro, limparam por completo 7 de 8 zonas identificadas, recolhendo 9,5 toneladas de lixo. 11 anos volvidos (que é sempre um número interessante, pois dá um ano de folga à medida “redonda” de uma década), apesar do orgulho de poder dizer “eu estive lá, com tantos outros”, verifica-se que a ideia, não obstante toda a sua generosidade, e o empenho de todas as pessoas que a abraçaram, acabou por não vingar. Ainda que muitos dos locais limpos até hoje assim se mantenham, outros surgiram, e a poluição dispersa mantém-se um problema, um pouco por toda a parte. A vigilância e fiscalização relativamente a esta matéria é praticamente nula e, pior que tudo, ineficaz na sua dimensão dissuasora (da recuperadora é melhor nem falar). Quem poluía, não só não se sentiu responsabilizado e/ou sensibilizado, como viu no esforço dos demais cidadãos um respaldo e validação para as suas acções, na muito chica-esperta certeza de que atrás de si virá sempre alguém para limpar a porcaria que deixam. O evento deixou como legado a AMO Portugal – Associação Mãos à Obra Portugal, que dinamizou repetições (hoje em dia, ocorrem sob a bandeira do World Cleanup Day, uma iniciativa global) e outros eventos, sempre no âmbito de voluntariado e tendo por objetivo dar meritórios exemplos de limpeza. Mas não voltou a atingir a dimensão ou a ilusão de 2010. A sensação que ficou é que, do esforço colectivo para dar o exemplo e exigir mais, resultou nada para além do imediato. A Administração fez pouco caso do Estado – que somos todos nós – desiludindo-o no seu mandato e missão de serviço. Pior, tentou transformar cidadania em serviços públicos gratuitos e demissão de responsabilidades. Os poluidores continuaram alegremente a poluir, rindo-se, de caminho, do trabalho dos restantes. Ou seja, desiludimo-nos a nós próprios. Falhando enquanto sistema, fazendo pouco do empenho e, parece-me mais importante, das expectativas das pessoas. Da crença de que, dessa vez – por uma única vez – fosse diferente, para melhor, com resultados duradouros, rompendo o fado, o pessimismo, o negativismo. É certo que isso não impediu, nem impede, a participação neste tipo de iniciativas, nem lhes retira o mérito intrínseco. Mas os efeitos mais profundos desta desilusão colectiva em que nos repetidamente nos afundamos cavam cicatrizes com reflexos perversos no nosso tecido cívico e social (para não falar dos impactos ambientais), pois quebram o ânimo, toldam o optimismo, e impedem a construção das relações de confiança e boa-fé que orientam sociedades saudáveis. Não mata, mas vai moendo. Para o vírus da desconfiança, da divisão e do descrédito, não há vacina. Só mesmo efeitos secundários. Apesar de tudo, será que ainda conseguimos descobrir, em nós, uma cura?
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