Por Gonçalo Duarte Gomes Na mitologia grega, Cassandra é uma das filhas de Príamo, rei de Tróia, que tem a particularidade de ter sido abençoada pelo deus Apolo com o dom da profecia, e simultaneamente amaldiçoada pela mesma divindade – depois de se ter recusado a dormir com ele – com o absoluto descrédito das suas previsões. Cassandra ficou assim marcada como a maluquinha da aldeia, facto que levou a que ninguém prestasse atenção aos seus avisos relativamente à iminente destruição de Tróia às mãos dos gregos, e muito menos aos seus apelos para que o fatalmente traiçoeiro Cavalo de Tróia fosse destruído, em vez de acolhido no interior dos inexpugnáveis muros da cidade. Também ligado à história de Tróia está Aquiles, herói grego que foi morto por Páris – outro dos filhos de Príamo e engatatão responsável por toda a confusão que levaria à queda da cidade, gerada com o rapto de Helena – através de uma seta envenenada cravada no seu calcanhar, ponto único de uma vulnerabilidade mística, obtida através da imersão nas águas do mágico rio Estige. Infelizmente, tudo isto se reúne no bem real Algarve, em particular neste momento desafiante que a região, o país e o mundo enfrentam, por força de uma pandemia que sobre nós se abateu. Ponto prévio: a pandemia do COVID-19 representa uma séria e grave ameaça à saúde pública mundial, num desafio inédito para várias gerações, pelo que ninguém está isento de responsabilidades na hora da adopção de comportamentos preventivos.
Dito isto, não há razão para, subitamente, tudo ficar mais variado (ou coronado) que um xalavar de caranguejos! Se no ano passado, aquando da greve dos motoristas de substâncias perigosas, mergulhámos numa adaptação do universo distópico do Mad Max, agora parecemos querer recriar o imaginário de um qualquer apocalipse zombie, confundindo as necessárias e responsáveis precauções a ter, com infundados e alarmistas medos do fim dos tempos. Para tal tem contribuído uma espectacular mediatização do vírus COVID-19 (não confundir nunca com informação) que, desde a criação de autênticos campeonatos da infecção até à desumanização das suas vítimas mortais, nos tem dado um pouco de tudo o que de pior este tempo da sociedade do espectáculo tem. Vai daí, criaturas maravilhosas que somos nós, pessoas, brindamo-nos uns aos outros com desinformação, pânico, alarmismo, corrida desnecessária às grandes superfícies, açambarcamento (filmes serão feitos em torno do papel higiénico, doravante), desorientação generalizada, ganância desmedida e desavergonhada (vendas de máscaras e de gel desinfectante a preços de autêntica filantropia), estupidez crónica (festas temáticas com chamadas falsas para o INEM e sunsets massivos em praias), etc., etc., etc.. entre outros mimos. Tudo sempre com grande impunidade, comme il faut. O sacrossanto, e muito português, direito a fazer merda. As redes sociais então, são espaços tóxicos de desolação e ruído. Desde o post do conhecido do amigo de um primo, que trabalha nas Urgências, ao testemunho da tia da colega que está em quarentena, há de tudo. E, entre gritaria e baixaria, pouco se aproveita, sendo já difícil a separação entre trigo e joio, e ainda mais a utilização do potencial positivo que estes recursos representam num tempo em que se pede recolhimento, serenidade e informação. Não tem ajudado a grande especialidade do Governo: procrastinar, adiar, furtar-se a responsabilidades, omitir-se de decisões difíceis (se ao menos a criação de uma taxa ou imposto resolvesse), funcionar mais como comissão de acompanhamento e centro de imprensa. Aconteceu noutras ocasiões, exemplarmente com Pedrógão (alguns – não muitos, é facto – não esquecem), e agora, com esta situação. Não sendo este um tempo para divisões, também o não é para ingenuidades ou esquecimentos. Este cenário interrompeu-se ontem quando foram finalmente anunciadas ao País novas e mais drásticas medidas para tentar conter e mitigar ao máximo, seguindo exemplos que iam já sendo dados, embora casuisticamente, pelo poder local, um pouco por todo o território nacional. Ajudemos todos ao seu sucesso e eficácia. Faltarão ainda outras medidas, ainda mais restritivas, mas aguardemos e, acima de tudo, pratiquemos o autocontrolo e o bom senso nos nossos comportamentos e atitudes. No Algarve em particular, este momento de crise expõe, dramaticamente, os dois grandes calcanhares de Aquiles da região, para os quais tantas e tantas Cassandras têm avisado. Desde logo, a vulnerabilidade da economia, neste modelo de monocultura turística, para o qual a região foi alegremente encaminhada, sacrificando em seu nome tudo e todos. Depois de tantas “balas”, feliz mas circunstancialmente evitadas, eis que chega o momento sobre o qual ninguém queria ter razão: a economia do Algarve a enfrentar um colapso iminente, e quase instantâneo, por total falta de procura turística. A principal preocupação são as pessoas (empresários incluídos) que se vêem privadas das suas fontes de rendimentos, sentimento ampliado pelas reptilianas lágrimas vertidas pelos responsáveis do sector, que agora vêm dizer que afinal o milagre económico do Algarve precisa de ser suplementarmente ajudado, já que tanto lucro passado não gerou qualquer tesouraria capaz de enfrentar adversidades ou proteger socialmente os seus recursos humanos. Curiosamente, esta era a indústria que, ainda há semanas, batia com a mão no peito, cantando os inúmeros prémios e espantosa dinâmica. Esperemos que não seja tão mau quanto parece, embora não seja possível antever o tremendo impacto que esta pandemia terá na economia – não só algarvia mas global. Novamente, o tempo não é de divisões. Mas seria bom aprender algo para o futuro, pois ultrapassada a presente crise, as vulnerabilidades não se alterarão. O segundo, e ainda mais dramático, calcanhar de Aquiles: a saúde. Se há legítimas dúvidas relativamente à preparação e capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde ante o tremendo desafio que enfrenta, estas tornam-se certezas dilacerantes no que ao Algarve diz respeito. Há no entanto um sinal claro de esperança: as fantásticas pessoas que, nas mais variadas estruturas e equipamentos de saúde e/ou de apoio e retaguarda, tantas vezes sem as necessárias condições, realizam milagres, em defesa do próximo. Bombeiros, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, auxiliares, todos os homens e mulheres que nas últimas e nas próximas semanas, talvez meses, têm estado e estarão na linha da frente do combate à epidemia. Todos e todas são autênticos heróis e artífices do impossível. Não será fácil para ninguém, para eles e elas muito menos. Compete-nos a nós facilitar, prevenindo e seguindo as orientações oficiais. E lembrando que lidamos com gente, não autómatos. Humana como todos nós, com medos (por si, pelos seus), ansiedades, dúvidas, cansaço, erros. Exijamos, portanto, mas com a necessária compreensão. Voltando a Tróia. Importa sempre lembrar que da cidade arruinada escapou Eneias. E que seria a sua descendência que viria, mais tarde, a fundar Roma, a cidade eterna. A noite é sempre mais escura antes da alvorada. Mas, infalivelmente, o Sol volta a nascer. Cuidem-se e cuidem do próximo. Sem alarmes, apenas com responsabilidade.
1 Comment
Miguel
16/3/2020 11:47:50
Mais uma vez (hábito já) pouco de relevante poderia acrescentar ao seu texto Gonçalo, ressalvo apenas que a "merda" feita pelo português foi feita pelo dinamarquês, pelo Belga, Espanhol, Grego etc etc ou seja, os cenários que por cá tivemos repetiram-se por todo o lado, não crescemos com liberdades individuais limitadas, e pelo facto de felizmente ainda não termos atingido um estado de calamidade, inconscientemente desvalorizamos, é humano. Como é a solidariedade o sacrifício e todo o cocktail de acções que nos caracteriza e separa dos demais seres deste planeta. Esperava-se mais e mais rapidamente acções governativas naquela que é (independentemente do posicionamento ideológico) a primeira e mais básica obrigação de qualquer Estado : a defesa da integridade territorial e da população - assim esperemos que esta pandemia passe, baixe de intensidade, haja medicação etc, que o calor algarvio por cá pelo menos seja mesmo uma barreira e sobretudo que estejamos à altura moral, cívica e sobretudo humana para lidar com os tempos difíceis que ainda teremos, cumprimentos!!
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