Por Gonçalo Duarte Gomes
Sou um matraquilho. Aquando da composição do meu genoma, algo correu dramaticamente mal, e as sequências específicas de ácidos nucleicos que permitem a sintonia do corpo com o sortilégio cósmico da música ficaram de fora dos meus X e Y. Resultado: sou incapaz de dançar. Nem sequer ouso tentar, na certeza de que tal espectáculo equivale a algo na proximidade de uma morsa a ter um ataque epiléptico. Ou, então a uma coreografia do Ian Curtis, que é igualmente deprimente, mas infinitamente mais estilosa. Mas, tal como os andróides sonham com ovelhas electrónicas, também os matraquilhos sonham com danças…
Aqui mesmo, no Lugar ao Sul, tivemos o privilégio de assistir, em primeira mão, e ao vivo e a cores, à poderosa alquimia que permite ao Júlio Resende transformar a Ria Formosa em música.
A música tem então a capacidade de captar essências etéreas, e traduzir o que, de outra forma, ficaria incompleto ou amputado. Em tempos li, num dos ensaios do poeta e filósofo naturalista Gary Snyder acerca do impacto causado pelo contacto civilizacional entre o movimento colonizador do Norte da América e os nativos americanos, que a forma definitiva de castração cultural dos segundos se consumou quando deixaram de dançar e cantar. Porque era na espontaneidade das suas danças e cantares tradicionais que os nativos americanos se encontravam com o mais íntimo de consigo próprios. Era através das coreografias e melodias que ressoavam os ecos da sua identidade, gravada no antanho, celebrada no presente e projectada no futuro. Sempre antiga, mas sempre contemporânea. Imaterial, mas palpável. Cortado esse laço umbilical, o ânimo das comunidades definhava, e com ele rapidamente se exauria o espírito da mesma, eliminando todos os traços de quem em tempos haviam sido. Há pouco tempo, a lembrança desse texto regressou-me, em estilo de epifania, ao espírito presente.
Conheci o projecto A música portuguesa a gostar dela própria há alguns anos, não sei precisar quantos. E desde então muito o aprecio. No entanto, e porque nestes tempos de loucura informativa as solicitações nos levam a uma atenta dispersão, em certa medida o contacto perdeu-se.
Bem mais recentemente, tive oportunidade de conhecer o mentor desse projecto, o Tiago Velhinha Pereira, num improvável encontro. O tema era paisagem, mas lá se apresentava um tipo que grava danças e cantares, despreocupadamente dizendo que não sabia se o que fazia era paisagem ou seu símbolo. E que não queria saber, pois o que sabia efectivamente, é que é um “guerreiro da memória”, e que luta diariamente para a preservação dessa lembrança. Depois, cada um que faça com ela o que a consciência ditar. A lembrança do canto, mas também da dança. A tal que em nós, como nos nativos americanos, faz de nós quem somos. Nestas coisas de paisagem, e principalmente quando se fala da sua descaracterização, a maior parte das atenções concentra-se nos aspectos biofísicos. A vegetação que é cortada, o relevo que é alterado, o leito de cheia da ribeira que é ocupado, a infiltração de água que deixa de ocorrer, as massas de ar que passam a circular de forma diferente. No entanto, e por paradoxal que possa parecer, a degradação que introduzimos neste sistema é quase insignificante à escala do mesmo. Nos sistemas biofísicos, a dinâmica é vector de direcção constante. O sentido é que pode mudar. E esse é aferido na nossa perspectiva, já que o planeta seguirá indiferente a sua trajectória até ao dia em que o nosso Sol colapse. Porque o Homem é a variável mais frágil da equação que teima em adulterar. É por isso que a reprodução do rasgo criativo e da centelha que, nascida na e da paisagem, condensa o espírito humano na palavra – dita ou cantada – é tarefa bem mais difícil. Porque uma vez perdido, é irrecuperável. A sua sobrevivência faz-se de continuidade, boca a ouvido, passada de geração em geração. Eram os nossos anciãos e anciãs quem através daqueles registos nos falava. Ao cortar-lhes o pio, cortámos o fio do tempo. Interrompemos a memória, e já não escutamos o antanho. E uma geração que não escuta os seus antigos é geração sem memória.
Sem memória dos caminhos percorridos, das vistas, do calor, do frio, da agrura, da candura, da caótica melodia polifónica de chapins, cigarras, melros, rãs e bichezas afins, do vento nos salgueiros e freixos, das últimas águas de Primavera correndo nos seixos.
Sem memória das açoteias cheias, das enxadas, das bestas, dos sons das aldeias, das alegrias e das tristezas, dos barcos varados e dos frutos secos ao Sol arrojados. Porque os campos se calaram, e nos valados, nos vales, nos balcões, nas ribeiras, nos alpendres, nas praias, nos serões, já só reina o silêncio, mesmo que ruidoso.
Há toda uma paisagem que se aquietou, sob o manto silenciador da morte e do abandono. Há todo um Algarve que já não canta. Muito menos dança. Um Algarve que se perde, com cada memória que desvanece, com cada lengalenga que se esquece, cada velho que morre. Um Algarve que se esquece de si mesmo.
Seguimos então, sem cantar nem dançar, sem ideia do que fomos e sem saber ainda somos. Perdidos. Não porque a memória tenha que ser hoje reproduzida, mimetizada, fantasiada, romanceada. É precisamente pelo contrário. Para que não esqueçamos o longo e duro trajecto que até aqui nos trouxe, e os erros e aprendizagens realizadas. Porque a memória serve de guia. Mas apenas para o utilizador atento.
Foi assim que, no topo do castelo de Aljezur, pairando sobre a paisagem, mas nela vertiginosamente mergulhados, todos nós que assistimos ao espectáculo “Quem manda aqui sou eu!”, que é fruto da inspirada reunião de esforços do Tiago e do Sílvio, e que brilhantemente contou com os algarvios OrbLua, fomos convidados a escutar.
E ao ver ranchos folclóricos a adejar, mandadores a voar, velhinhas de acordeão a flutuar, dizeres e cantares a lançar-se ao vento, no confronto com o silêncio que revelam na paisagem, aí percebi que, mesmo nós, que nos achamos atentos, “temos andado muito distraídos de nós próprios”. E quis dançar e cantar novamente. Mesmo sendo matraquilho.
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