Por Gonçalo Duarte Gomes Haja saúde, e da boa! Quem nunca ouviu este tradicional cumprimento, afável e humano, revelador de um dos traços identitários mais marcantes de um Algarve predominantemente rural, que era dominante na região até há uns anos? Com a crescente "urbanização" algarvia (mais no sentido cultural do que no geográfico) as distâncias afectivas entre as pessoas tendem a crescer na directa proporção em que as distâncias físicas se encurtam pela concentração. E o bom velho "haja saúde" parece cada vez mais relegado para a condição de delicatessen coloquial. Isso... e prudente aviso a todos os que prezem a sua vidinha, especialmente no Algarve. Porque nesta região, vacilar em termos de saúde é mais ou menos o equivalente a seguir o conselho inscrito na entrada do Inferno de Dante, e abandonar toda a esperança à entrada. O Luís já escreveu sobre isso esta semana, dando continuidade a um debate/reflexão de há muito aqui no Lugar ao Sul.
O que acaba por ser uma coisa chata, há que reconhecê-lo, não obstante o carinho que tenho por todas as penas que aqui escrevem. Especialmente porque, e adaptando uma conhecida anedota, quando um Governo promete que vai fazer algo, vai fazer. Não é preciso estar a lembrar a cada 4, 8, 12 ou 30 anos... Não vou, portanto, contribuir para essa picuinha irritante de reclamar pelos cuidados de saúde que faltam, pela preparação - ou falta dela - para lidar com o vírus truculento da actualidade, etc., etc., etc.. Porque não sei o suficiente (excepto já ter penado nas Urgências do Hospital de Faro e ter tido familiares próximos alvo de tratamentos que roçam a mais absoluta incúria, e também boas experiências em alguns serviços de especialidade) e porque nunca mais me safava dessa empreitada, uma vez que, infelizmente, esta anedota em que a piada somos nós – cidadãos – vale para questões de saúde, mas pode facilmente resvalar para a economia, mobilidade, segurança e tudo o mais que há muito muito tempo é prometido neste El Dorado, que tantas vezes parece um El Latonado. Isto acontece graças à total impunidade com que se pratica o acto de dizer que se vai fazer algo quando na verdade não se tem a mínima intenção de cumprir. Estivesse em causa a colocação de um prego na parede para pendurar na parede lá de casa aquele quadro piroso que alguém ofereceu numa efeméride esquecida, e não haveria problema de maior. Só que não. Nesta coisa da democracia, as promessas não cumpridas e as mentiras em geral são gravosas, porque minam o pilar fundamental deste regime político, que é a confiança dos cidadãos votantes nas pessoas em quem delegam a administração da coisa e do interesse público, nas instituições, nos partidos, nos processos. Quebre-se esse laço, e entra-se no campo do vale tudo, incluindo o hoje tão badalado populismo. Quando as aldrabices são acompanhadas por intróitos carregados de superioridade moral ou de propaganda económica alusiva a autênticos milagres, é a morte não do artista, mas da própria arte. Porque rapidamente alguém aproveitará essa brecha para enfiar um dedo acusador, directamente apontado ao óbvio: se há a consciência do que tem que ser feito, e os recursos para o fazer, só fica a faltar... a vontade. Ou então alguém mente. E muito. Há muito tempo. Esse grito da nudez do rei ecoará bem alto em franjas da população que não só não encontram respostas aos seus problemas quotidianos – do tipo que uma preocupante parte dos agentes que "profissionalmente" sequestraram a política nacional desconhece, por falta de experiência no mundo real, longe do livre-trânsito partidário – como ainda têm que suportar paternalistas atestados de menoridade (votam mal [talvez só devesse votar quem vota da maneira certa, para facilitar?], são ignorantes, deixam-se enganar, são ingénuos) por parte daqueles que, de alegado sucesso em exaltado sucesso, vão cavando sucessivos buracos em que se enfiam gerações actuais e vindouras, invariavelmente graças a opíparos regabofes e desvarios com o dinheiro público. Que dão para tudo, menos para aquilo de que as pessoas sentem realmente falta. Muito à semelhança do Algarve. Correndo sérios riscos de estar enganado, parece-me que é nesta amena pradaria que pastam os temidos populistas, ruminando pacientemente as preferências das massas e as – cada vez maiores – lacunas que as oligarquias deixam por tratar na vida das pessoas, enquanto tratam das suas próprias vidas ou promovem agendas sectárias a troco de aprovações de orçamentos ou silêncios coniventes face a realidades que antes faziam os mudos gritar histericamente, arrancando cabelos. Depois basta dizer umas verdades – mais ou menos enviesadas, consoante a necessidade – e propor umas medidas – mais ou menos exequíveis, consoante a oportunidade – que lancem uma onda, e é cavalgá-la. Até onde der. E nós estamos a criar condições para um tubo bem longo, com grande nota artística... Desde Orwell a Chomsky, os alertas para isto já assumiram várias formas. Mas seguem ignorados pela Intelligentsia. Era interessante ponderar estas coisas, na próxima vez que virem alguém a bater com a mão no peito em indignada revolta contra “o populismo”, enquanto o alimenta, por acção ou omissão. E pedir diferente. É que nunca nenhuma doença se curou atacando apenas os sintomas, sem tratar da causa. Entretanto, a realidade corre. Ou, como diria James Carville: “É a democracia, estúpidos!”. E temos a que fazemos.
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