Um dos aspectos mais gratificantes nesta ideia do Lugar ao Sul é verificar o carinho com que é recebido por tantas pessoas. Quando a esse carinho se junta entusiasmo e generosidade, dessa mistura nascem momentos felizes como o de hoje, em que este canto, deste Lugar, recebe a visita de alguém como a Andreia Fidalgo. Aceitando um desafio lançado quase em jeito de provocação, a Andreia vem aqui partilhar um olhar sobre o presente e futuro do Algarve, contido não apenas nas suas fronteiras, mas para lá delas plenamente projectado e afirmado, enquanto parte relevante de um todo bem maior. Um olhar solidamente alicerçado num conhecimento e entendimento profundo do seu passado, fruto de alguma da mais notável e eloquente investigação histórica produzida não apenas a Sul, mas em horizontes bem mais vastos. Resta apenas agradecer a sua generosa partilha. Gonçalo Duarte Gomes Por Andreia Fidalgo Há algum tempo, numa troca de ideias sempre estimulante com o Gonçalo Duarte Gomes sobre a minha tese de doutoramento em curso, achou ele por bem lançar-me a provocação de partilhar aqui, no Lugar ao Sul, algumas reflexões que estabelecessem a relação entre os meus temas históricos e o Algarve dos dias de hoje. Achei o repto interessante e pertinente, sobretudo porque defendo convictamente a ideia de a História, enquanto área disciplinar, tem uma importância que vai muito além da aquisição de conhecimentos sobre um determinado acontecimento ou personagem históricos; o estudo da História permite ao cidadão actual assumir uma atitude crítica face ao seu próprio tempo, na medida em que lhe permite posicionar-se mais esclarecidamente no presente, com consciência do passado e da herança histórica que o (en)forma. Não poderia, pois, recusar este desafio. A referida tese de doutoramento trata das reformas económicas de inspiração iluminista que foram implementadas na região algarvia entre as últimas três décadas do século XVIII e as duas primeiras do século XIX, ou seja, nos últimos 50 anos do Antigo Regime em Portugal. O primeiro impulsionador destas reformas foi o Marquês de Pombal e, na realidade, o caso de estudo algarvio já de si muitíssimo interessante, é-o ainda mais se relembrarmos a sua singularidade, pois trata-se da única região portuguesa que foi alvo de um plano específico de actuação reformista por parte da Coroa. E porquê a única? Longe do que seria de esperar, a súbita atenção do Ministro de D. José à região não foi somente motivada pelo alarmante estado de subaproveitamento crónico das potencialidades económicas algarvias; também o foi, é certo, mas o que preocupou verdadeiramente Pombal foi o facto de se ter apercebido que existia, em pleno reino, uma parcela de território praticamente isolada, que vivia o seu quotidiano quase sem lei nem rei, cujos proventos económicos escapavam praticamente por inteiro ao Erário Régio e estavam, em parte, nas mãos de interesses estrangeiros. Situação verdadeiramente inconcebível perante um Estado que se queria forte, coeso e, em suma, Absoluto. Os diagnósticos realizados à época evidenciavam os mais diversos problemas económicos, em distintos domínios. A abundância das pescarias, sobretudo de sardinha no sotavento algarvio, era amplamente explorada por uma comunidade de catalães sediada na praia de Monte Gordo, porém, os impostos desta actividade tão lucrativa escapavam quase por inteiro aos cofres da Coroa; já as almadravas, destinadas às pescarias consideradas reais ou privilegiadas – isto é, ao atum e à corvina –, e cujos lucros revertiam directamente para a Coroa, estavam em estado de ruína e abandono desde o terramoto de 1 de Novembro de 1755. Da agricultura, essencialmente mediterrânica, obtinham-se escassos rendimentos, uma vez que os lavradores que exploravam as propriedades fundiárias estavam sujeitos a elevados encargos financeiros devido aos contratos usurários ilicitamente estabelecidos pelos senhorios. Quanto ao comércio, essencialmente sustentado pelos frutos regionais – tais como o figo, a amêndoa, a alfarroba, a laranja da China (doce), aos quais acresce a cortiça – tinha em Faro o seu principal centro de actividade e encontrava-se sob o monopólio de homens de negócios ingleses, logo, nas mãos de interesses alheios à região. Assim, apesar das imensas potencialidades da região algarvia, com a sua agricultura mediterrânica e as suas abundantes pescarias, quando a Coroa Portuguesa voltou para ela o seu interesse deparou-se com um território ruralizado, economicamente deprimido, marcado por um processo de decadência que se tinha progressivamente acentuado desde finais de Quinhentos, altura em que a região deixara de suscitar o interesse da Coroa por ter perdido a sua função estratégica de apoio às praças portuguesas do Norte de África. Um território marcado, também, por uma acentuada desigualdade social, na qual predominava uma elite local essencialmente composta pela “gente nobre da governança da terra” e pelo clero prebendado, que para além de ocupar, respectivamente, os cargos de administração concelhia e os cargos diocesanos, constituía também o mais rico grupo da região, com uma riqueza proveniente da posse das terras, que dominavam e davam a explorar mediante o estabelecimento de contratos contrários às leis em vigor. Não cabe aqui referir pormenorizadamente todas as medidas reformistas que então o Marquês de Pombal iria implementar para inverter o estado de estagnação económica da região algarvia, num plano coerente e bem desenhado, descrito na própria época como a “Restauração do Reino do Algarve”. Bastará referir que, para incentivar as pescas no sotavento algarvio, para aumentar a capacidade de fiscalização do Estado, e para incrementar uma indústria tradicional de beneficiação da sardinha, se vai fundar, na margem direita do Guadiana, voltada a Espanha, Vila Real de Santo António, sem qualquer dúvida o testemunho mais visível no território do projecto pombalino de “Restauração”. Bastará também relembrar que, para animar as pescarias reais, se substituem as antigas almadravas pela Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, a última das grandes companhias monopolistas pombalinas a ser criada. Ou, bastará ainda recordar que, para fazer frente às desigualdades da sociedade algarvia e ao poder da elite local, se vão implementar medidas que procuravam acabar com os contratos usurários que ilicitamente se praticavam na região. No entanto, houve uma medida pombalina que foi absolutamente notória a todos os níveis, quer pelo facto de ser transversal a vários domínios económicos, quer pelo profundo significado histórico que encerra para o Algarve: a lei de 5 de Fevereiro de 1773, que procurava abolir a “odiosa diferença” entre o Reino do Algarve e o Reino de Portugal no que respeitava aos impostos cobrados. É que, até à data, os produtos que saíam da região para o restante Reino de Portugal, assim como os que entravam, pagavam impostos mais elevados, idênticos aos produtos de um/para um qualquer reino estrangeiro. Como se o Algarve fosse, de facto, um reino à parte. Ora, esta medida legislativa encerra em si um significado muito mais amplo, na medida em que deixa transparecer uma região com as suas idiossincrasias, com as suas particularidades e com uma identidade muito própria. Uma região simbólica e honorificamente designada por “Reino”, após a conquista definitiva por D. Afonso III, em 1249, sem nunca o ter sido efectivamente; uma região que pelas suas condicionantes geográficas específicas possui uma delimitação fisicamente visível do restante território português, com uma extensa serra a norte, o rio Guadiana a Este e o Atlântico a Oeste; uma região que precisamente por causa das suas condicionantes históricas e geográficas específicas, se viu atreita a um relativo isolamento, que se reflectiu que na forma como os “de cá” viviam, não raras vezes à margem da lei, mas também na forma quase exótica com que era encarada pelos “de lá”, isto é, pelos que viviam no Reino de Portugal. Afinal de contas, até a correspondência expedida do Algarve e para aqui dirigida pagava os mesmos portes de envio que a do vizinho Reino de Castela! O projecto de “Restauração do Reino do Algarve” empreendido pelo Marquês de Pombal foi, assim sendo, a primeira grande tentativa de esbater as fronteiras económicas – mas, em última análise, também identitárias e culturais – que separavam o Reino do Algarve do restante Reino de Portugal. Os problemas da sua eficácia (ou falta dela) são tema para a tese de doutoramento em curso, mas cabe aqui ressaltar, pelo menos, os esforços empreendidos pelo Estado, naquele período de ilustração, para melhorar a situação económica da região e para resolver vários dos problemas de que esta sofria, integrando-a no restante Reino de forma mais justa e equilibrada. Ora, neste sentido, e dando um salto de cerca de 250 anos até aos dias de hoje, cumpre relembrar o quão afastados nos encontramos desse período em que se procurou eliminar a “odiosa diferença” de que padecia a região, e cumpre questionar se não nos encontramos mesmo numa época em que os problemas que actualmente a afligem são quase olhados com uma odiosa indiferença por parte da classe dirigente. Tentar comparar realidades económicas tão distintas como a do Algarve dos finais do Antigo Regime e a do Algarve dos dias de hoje, quase inteiramente absorvida pelo turismo, seria certamente um exercício supérfluo para a ocasião. O que não é, talvez, um exercício desprovido de sentido, é o de procurar reflectir sobre a forma como a região tem sido sucessivamente encarada pelo Governo nos últimos anos, diria mesmo décadas. Não é de todo despiciendo pensar numa região que reivindica, ano após ano, cuidados de saúde mais condignos para os seus habitantes, ou transportes públicos que consigam, de facto, corresponder às necessidades da população local, dos que nos visitam, e às especificidades do território, ou melhores e mais capazes infraestruturas viárias – apenas para mencionar alguns problemas estruturais! – e que ano após ano vê as suas reivindicações passarem muito ao largo de qualquer agenda política. Não é de todo despiciendo pensar numa região que tem um papel tão relevante no sector turístico nacional, mas que o turismo, per se, não se auto-sustenta se não for acompanhado de uma estratégia de desenvolvimento regional sustentável, de incremento de outros sectores económicos (agricultura, pescas, indústria), de melhoria da capacidade de resposta dos serviços, de desenvolvimento de infraestruturas públicas e privadas, a vários níveis – o que beneficiaria tanto os que cá residem, como os milhares que anualmente nos visitam. Por isso, questiono se não estaremos hoje, e se não temos estado nas últimas décadas, perante uma odiosa indiferença do Governo para com a região? E questiono, também, se essa indiferença não contagia, como uma outra face da mesma moeda, a própria população algarvia? Basta invocar aqui as percentagens da abstenção nas eleições do passado dia 6 de Outubro: no distrito de Faro, a abstenção atingiu os 54,2%, empatada com o distrito de Vila Real e só superada, em Portugal continental, pelo distrito de Bragança, que chegou aos 55,1%. Valores percentuais estes que ficam bem acima da média nacional, já de si elevadíssima, de 45,5%. Ainda que pudéssemos entrar aqui em discussão algo complexa sobre o(s) significado(s) da elevada taxa de abstenção, não poderemos também, eventualmente, olhar para estes valores como um sintoma da indiferença generalizada da população algarvia perante a falta de alternativas eleitorais e perante a permanente falta de soluções para os problemas regionais, legislatura após legislatura? Talvez, neste caso, a indiferença se esteja a pagar com indiferença… Teremos passado nós, em 250 anos, de uma iniciativa de esforços concertados para exterminar a “odiosa diferença” que separava o Algarve do restante território português, integrando-o nas políticas nacionais, para o actual alastramento pernicioso de uma odiosa indiferença, amplamente espelhada no desinteresse da classe dirigente pela região? Claro que não. Isto é, obviamente, o projecto pombalino, per se, não foi sinónimo de sucesso no contorno ao esquecimento da região por parte do centro de poder, como se daí em diante a região tivesse passado a ocupar um papel relevante no panorama nacional. Na verdade, este projecto de “Restauração” até serve para nos relembrar que esse esquecimento era crónico, que se manteve durante séculos, e que inclusivamente ainda se vai manter na época subsequente. Porém, este mesmo período da nossa História também pode servir para nos recordar que a indiferença perante as necessidades regionais não tem de ser o caminho a seguir e que nós, enquanto cidadãos bem formados, não a podemos, nem a devemos tolerar. Andreia Fidalgo é “algarvia, natural de Castelo de Vide”. Sou filha de pai castelo-vidense e de mãe culatrense, e ter nascido na “Sintra do Alentejo” é um privilégio de que muito me orgulho – afinal de contas, trata-se indiscutivelmente da mais bonita vila do Alto Alentejano. O meu coração, porém, pertence ao “ardente Algarve impressionista e mole”, à Ria Formosa, e, especialmente, a Olhão, essa terra misteriosa de açoteias, de mareantes, de mirantes, onde vivo desde os cinco anos de idade – ainda que com alguns interregnos, é certo! Nasci em 1986, ano em que o Cometa Halley veio visitar a Terra e, claro, anunciar o aparecimento de uma nova estrela: eu mesma! Abri os olhos pela primeira vez no início do Outono, pouco mais de nove meses depois de Portugal ter entrado para a CEE, pelo que só se pode daí inferir, obviamente, que estive a aguardar estrategicamente que o país reunisse condições económicas mais favoráveis para me receber condignamente. Não que isso me tivesse servido de muito… Concluí a licenciatura em Património Cultural, na UALG, em 2008, precisamente no annus horribilis da crise financeira mundial, o que não me facilitou nada a vida de recém-licenciada. Não esmoreci e nunca abandonei a Academia, num percurso sempre dedicado à investigação histórica e, actualmente, além de dar aulas de História Moderna na FCHS-UALG, sou doutoranda no ISCTE-IUL, no Programa Interuniversitário de Doutoramento em História. A tese, que espero finalizar dentro em breve, versa sobre as reformas económicas de inspiração Iluminista de que a região algarvia foi alvo nos finais do Antigo Regime. Congrega, pois, a minha preferência pelo estudo da Época Moderna e da História Económica com o meu tema de eleição: o Algarve. Sou apartidária. Sou tendencialmente agnóstica. Os meus tempos livres ocupo-os com leituras, com a simplicidade de um passeio pelo campo ou à beira-mar (ou à beira-Ria), e com exercício físico, seja indoor ou outdoor. Adoro animais, especialmente gatos, seres infinitamente superiores a todos os outros. A minha cor preferida é o verde, a cor da Natureza, da Fertilidade e da Esperança.
6 Comments
João
11/10/2019 14:25:48
Um texto cativante e de leitura fácil. Parabéns fico a aguardar mais colaborações.
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Andreia Fidalgo
11/10/2019 21:43:50
Muito obrigada! Terei todo o gosto em colaborar mais vezes, se considerarem que é pertinente e útil. Lembro sempre o lema da Academia das Ciências: "Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria" (Se não for útil o que fizermos, a glória será vã).
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Maria Isabel Noya de Sousa Oliva
12/10/2019 21:37:51
Fico muito feliz por alguém dara conheceressa parte da nossa história, confesso que não sou alheia a este conhecimento pois meu pai possui uma Obra de Dr.Alberto Iria Distinto Historiador que foi presidente da Academia de História de Liboa , essa Obra foi oferecida a meu pai por esse seu grande amigo, livro esse que possuo. Grata pelo seu interesse em partilhar esse conhecimento.
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Daniela Nogueira
12/10/2019 07:59:24
Também quero ler mais! Fico a guardar novas participações 😉 😘
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Andreia Fidalgo
13/10/2019 11:42:08
Muito obrigada, Daniela. Sempre que for pertinente e relevante, tenho todo o gosto em colaborar com o Lugar ao Sul. Beijo.
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Miguel
16/10/2019 14:09:33
Uma contundente e incisiva análise do período histórico que muito condiciona e influencia o actual Algarve.
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