Notas de uma quarentena improvável (7)

A chover e a fazer sol, e as bruxas a fazer pão mole

Por Anabela Afonso

Sou neta de uma padeira que, se estivesse viva, comemoraria este ano um século. Com ela aprendi o cheiro do pão acabado de sair do forno de lenha, ainda bem cedo pela manhã, a sensação do estalar do pão ainda quente a partir-se nas nossas mãos, e o sabor do fio de azeite, ou da manteiga a derreter-se no pão ainda a fumegar, na primeira dentada.

​Nos dias de chuva e sol, tal como muitos destes que temos tido ultimamente, que coincidiam com os dias de amassar o pão, sempre lhe saía este dizer: "A chover e a fazer sol, as bruxas a fazer pão mole". Percebi agora, a fazer uma breve pesquisa para escrever esta nota, que seria uma adaptação do provérbio "A chover e a fazer sol, as bruxas no farol a comer pão mole".

​A verdade, é que gosto mais da versão do ditado da minha avó. Havia qualquer coisa de feitiçaria naquela arte que ela tinha de amassar o pão- Era uma coisa cheia de segredos. Como as mãos deviam virar a massa; o ritmo com que amassava;  qual o recipiente certo onde a trabalhar (sempre o alguidar de barro); a temperatura da água quente que ia vertendo; as rezas que no final fazia para benzer a massa que ficaria a levedar; as mantas que lhe punha por cima para manter o calor no ponto certo; a camada de farelos por cima de uma das mantas, mas que por sua vez também tinham que ser cobertos. Enfim, nada ali era feito sem ter um significado especial que só ela sabia explicar.

Era todo um ritual que só ela sabia fazer, e o certo, é que nunca mais voltei a comer pão a saber-me tão bem como aquele. 

​O pão parece funcionar como uma garantia de sobrevivência, como o alimento que sabemos nutrir-nos o suficiente para enganarmos a fome, mesmo que não tenhamos mais nada para comer. Deve ser por isso que vemos tanta gente a fazer pão pela primeira vez. Não é por acaso que também se diz que em "casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão". Enquanto tivermos pão, por pior que seja a situação, cá nos havemos de arranjar. E pão fresco, pelos vistos, não nos está a faltar.

Para esta nota, pedi uma ajuda especial, para um texto ou poema bonito sobre o pão. Chegou-me, assim. a sugestão do poema do Brecht que agora partilho:

THE BREAD OF THE PEOPLE

Justice is the bread of the people
Sometimes is plentiful, sometimes it is scarce
Sometimes it tastes good, sometimes it tastes bad.
When the bread is scarce, there is hunger.
When the bread is bad, there is discontent.

Throw away the bad justice
Baked without love, kneaded without knowledge!
Justice without flavour, with a grey crust
The stale justice which comes too late! I

If the bread is good and plentiful
The rest of the meal can be excused.
One cannot have plenty of everything all at once.
Nourished by the bread of justice
The work can be achieved
From which plenty comes.

As daily bread is necessary
So is daily justice.
It is even necessary several times a day.

From morning till night, at work, enjoying oneself.
At work which is an enjoyment.
In hard times and in happy times
The people requires the plentiful, wholesome
Daily bread of justice.

Since the bread of justice, then, is so important
Who, friends, shall bake it?

Who bakes the other bread?

Like the other bread
The bread of justice must be baked
By the people.
​ Plentiful, wholesome, daily.
 
Para terminar, deixo-vos também com a música do José Mário Branco, Pão Pão, e com este link para o pdf da letra , disponível no arquivo online da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Aproveitem! #Vaificartudobem