Lugar ao Sul
  • Sobre nós
  • Autores
  • Convidados
  • Personalidade do Ano a Sul
    • Personalidade de 2017
  • Contactos
  • Sobre nós
  • Autores
  • Convidados
  • Personalidade do Ano a Sul
    • Personalidade de 2017
  • Contactos

Bem-vindo

Notas de uma quarentena improvável (19)

16/4/2020

0 Comments

 

Um escritor nunca morre

Por Anabela Afonso

Hoje o dia acordou para a notícia da morte do escritor Luís Sepúlveda que, por coincidência, terá tido a sua última participação num ato público precisamente em Portugal, na edição deste ano do Festival Correntes d'Escrita.
Por isso, hoje, este espaço, dará lugar à sua escrita, partilhando um texto publicado no livro Uma História Suja (2004), que resultou de uma seleção dos muitos textos que regularmente escrevia nos seus cadernos. O texto que escolhi é o que tem por título Acerca da Luz.

Imagem
Por AmonSûl - Dal vivo, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=656737


​Acerca da Luz

Nas ruínas da cidade maia de Chichén-Itzá erguem-se várias pirâmides orientadas de acordo com a deslocação solar, e todas elas têm esculpida uma serpente que desce da cúspide até à base da construção. Pelo lombo da serpente deslizou a Luz durante centenas de anos, e quando esta tocava no solo os Maias davam então por iniciado o dia. Todo o seu labor estava determinado pelo momento exacto em que a Luz e a terra se uniam fugazmente. Esse minúsculo momento de união entre o indiscutível, o inacessível, o incorpóreo, a Luz, e o mundo, era para eles a única eternidade possível, e assim o afirma o Popol-Vuh, o livro sagrado dos Maias: «A Luz desce pelas costas da serpente, deixa para trás o feito, já em sombras, e ao incendiar-lhe as fauces indica-nos o que faremos. Assim será até ao fim do tempo, que é o fim da Luz.»
Na Austrália, parei um dia para contemplar as estranhas figuras estáticas de dois aborígenes. Era a hora do crepúsculo e eles olhavam o horizonte mas o sol punha-se por detrás deles. Os corpos imóveis, uma perna levantada, com a planta do pé apoiada no joelho da outra, a que sustinha todo o corpo e os unia à terra argilosa. A cabeça altiva parecia ser o centro do equilíbrio, as mãos agarradas à longa lança e os olhos fixos num ponto indefinível do horizonte. De repente vi-os mergulhar num profundo sono, um primeiro, depois o outro, sem mudar de posição e sem mover um músculo. Dias mais tarde soube que no fim do dia cada aborígene escolhe um ponto incerto do horizonte e espera que a luz solar projecte a sua sombra até ele. Por essa razão param de costas para o poente, ignoram a singular beleza do ocaso australiano e esperam que sua longa sombra toque o pormenor da paisagem sobre o qual centram a sua atenção. Quando isso acontece, quando a sombra o cobre, é porque escureceu o universo, a Luz se cansou de nomear tudo o que existe, porque, garantem os aborígenes, a Luz convida a dar um nome ao que se vê e a soma dos nomes é a canção da Luz.
O Inverno passado, em Turim, assisti como convidado a um espectáculo de Luz e luminotecnia. Vários artistas italianos e de outras nacionalidades tinham iluminado as belas praças turinenses com os mais imaginativos jogos de luz e sombra. Junto do presidente da câmara, esperava pelo momento em que, da central de comandos, accionariam o prodígio, a força eléctrica correria pelas veias de arame e, como nos evangelhos, «far-se-ia Luz». Chegou o momento. Numa praça, a Luz desenhava arabescos sobre o empedrado, noutra, a Luz escrevia versos de Dante, Leopardi e outros grandes poetas, noutra ainda, a Luz criava realidades hologrâmicas, fontes, cascatas, blocos de gelo navegando num mar de ar. As pessoas aplaudiam, manifestavam a sua admiração e agrado, mas de repente algumas crianças irromperam sob os focos e reflectores para brincar com a Luz e, aí sim, o espectáculo teve por fim a esperada magnificência. Essas crianças, que abriam os braços e com os olhos fechados se banhavam de arabescos, versos e água virtual, outorgavam à arte luminotécnica a ingenuidade natural da Luz, porque a Luz é lúdica e ingénua. Não há espaço para o Mal sob o seu império.
No Japão conheci alguns idosos sobreviventes de Hiroshima. Eram todos cegos e quis saber se se lembravam do instante exacto em que rebentou a bomba, quando se consumou um massacre desnecessário para castigar a população civil de um país vencido. Um deles recitou qualquer coisa e mais tarde soube que eram uns versos de Kenzaburo Oe: «Alguns dizem que vimos uma grande Luz / Mas é mentira / Vimos a morte da Luz.»
No deserto de Atacama, muito perto do Valle de la Luna, erguem-se uns promontórios que de longe parecem menires, mas não são construções fruto do génio humano. Trata-se de restos tão antigos como o mundo, de vestígios erguidos como dedos indicadores que pedem a palavra para dizer algo de enorme transcendência. Pela manhã são pretos, quando o sol está no zénite adquirem um tom acobreado e, ao entardecer, com o sol, o velho deus Inti mergulhando no Pacífico, espalham uma luminosidade multicor, palpitante e violenta a princípio e que depois se vai mitigando até à total obscuridade.
 É o discurso da Terra, dos milhares de diferentes minerais que se foram formando no decurso de milhões de anos, e lembra-nos que a vida é efémera, frágil, e que este planeta é de todos e não dos donos do dinheiro. Ouvi esse discurso e fi-lo meu, graças à Luz, que é a cor da Vida.


​Os escritores nunca morrem. Vivem nos muitos mundos que as suas palavras nos ajudaram a descobrir e nos tantos outros que ainda temos por desvendar. Tantos quantos todos os livros que nos faltam ler.

​Boa viagem e que a Luz te acompanhe.

#Vaificartudobem

0 Comments



Leave a Reply.

    Visite-nos no
    Imagem

    Categorias

    All
    Anabela Afonso
    Ana Gonçalves
    André Botelheiro
    Andreia Fidalgo
    Bruno Inácio
    Cristiano Cabrita
    Dália Paulo
    Dinis Faísca
    Filomena Sintra
    Gonçalo Duarte Gomes
    Hugo Barros
    Joana Cabrita Martins
    João Fernandes
    Luísa Salazar
    Luís Coelho
    Patrícia De Jesus Palma
    Paulo Patrocínio Reis
    Pedro Pimpatildeo
    Sara Fernandes
    Sara Luz
    Vanessa Nascimento

    Arquivo

    October 2021
    September 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    December 2020
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    May 2020
    April 2020
    March 2020
    February 2020
    January 2020
    December 2019
    November 2019
    October 2019
    September 2019
    August 2019
    July 2019
    June 2019
    May 2019
    April 2019
    March 2019
    February 2019
    January 2019
    December 2018
    November 2018
    October 2018
    September 2018
    August 2018
    July 2018
    June 2018
    May 2018
    April 2018
    March 2018
    February 2018
    January 2018
    December 2017
    November 2017
    October 2017
    September 2017
    August 2017
    July 2017
    June 2017
    May 2017
    April 2017
    March 2017
    February 2017
    January 2017
    December 2016
    November 2016
    October 2016
    September 2016

    RSS Feed

    Parceiro
    Imagem
    Proudly powered by 
    Epopeia Brands™ |​ 
    Make It Happen
Powered by Create your own unique website with customizable templates.