Por Gonçalo Duarte Gomes Pedindo desculpa por evocar a memória de um herege em plena Sexta-feira Santa, é-me impossível, nestes tempos, não lembrar a expressão que Galileu Galilei terá proferido quando, após aquela persuasão boa que só a Inquisição sabia ter, renegou a sua teoria heliocêntrica perante um tribunal do Santo Ofício: e pur si muove! Galileu manteve assim a sua resistência interna perante as circunstâncias que externamente o obrigavam – uma promessa de morte agonizante é sempre um argumento a tender para o decisivo, em qualquer discussão – a desdizer aquela que era a sua certeza científica. Uma resistência que, real ou fruto de invenção para engrandecimento da situação, ganhou a dimensão de símbolo do confronto entre razão e fé. Hoje estes dois domínios voltam a confrontar-se. Mas sem se perceber muito bem quem é quem, e quem defende o quê. Há tempos, Rui Amores defendia, num artigo de opinião publicado no jornal Barlavento, a suspensão imediata de todos os processos de participação pública por entender que os constrangimentos que impendem sobre a população condicionam a sua capacidade de consulta e até de apreciação dos procedimentos. Considerava mesmo estarem em causa alguns princípios fundamentais do direito administrativo, como o princípio da colaboração dos os particulares ou o próprio princípio da participação.
Os processos de participação pública são invariavelmente desproporcionais. Enquanto que a sua promoção é dinamizada por estruturas profissionais, remuneradas para o efeito e os calendários das consultas ocorram em períodos socialmente complicados (épocas festivas, férias escolares, pandemias [!], etc.), a apreciação da comunidade é, invariavelmente, feita ou por directamente interessados – cuja capacidade de apreciar e idoneidade de defender o bem comum fica naturalmente enviesada – ou por meia dúzia de carolas voluntários que, isoladamente ou nas poucas estruturas associativas de defesa do ambiente que vão continuando a operar, sacrificam tempo pessoal e familiar (e por vezes até do profissional) para se darem ao trabalho de pensar um pouco sobre a organização comum das nossas paisagens e, consequentemente, das nossas actividades e modelo territorial, de que depende inteiramente a justiça social. Portanto, as actuais circunstâncias não introduzem a desproporção neste debate – até porque a questão das consultas presenciais está hoje relativizada pela disponibilização da informação online, canal preferencial da maioria das participações – mas antes “apenas” a agravam, pelas mais variadas razões, não sendo a menor delas a preocupação generalizada com a pandemia. Aqui importa dizer que não integro a corrente de fé daqueles utilitaristas que deificam a Economia, não hesitando sequer, para esse efeito, em promover uma espécie de eugenia etária, que sacrifica os mais velhos e frágeis no altar do primado do cifrão, numa reedição da “peste grisalha” do deputado Carlos Peixoto em conjunto com a reinterpretação economicista da teoria de John Gay, para quem a vontade de Deus (aqui substituído pelo Euro) era o único critério de virtude. Mas sei que a Economia é também fundamental. Fundamentalmente quando serve a gestão da casa que a Ecologia permite conhecer e interpretar, o que inclui servir valores mais altos, como por exemplo a salubridade, a vida e a dignidade humana. Olhando para a realidade, como não rir, não é? Ora o Universo tem um sentido de humor perverso, e, numa perfeita pescadinha de rabo na boca, parte da dignidade humana é também o trabalho, não apenas enquanto actividade geradora de rendimentos, mas também como factor de valorização do indivíduo – um dos aspectos mais gravosos do desemprego é a anulação da pessoa afectada enquanto membro activo da sua comunidade, o que tem um impacto brutal na psique (excluindo-se naturalmente indigentes militantes). Tenho defendido, e defendo, que não nos podemos deter numa bolha de medo. O mundo não vai acabar, e o tempo de planear o que faremos a seguir, e como iremos sarar as feridas abertas, é agora. Mas entre essas feridas encontram-se, claramente, os desequilíbrios ambientais que o modelo perseguido até agora, de crescimento contínuo (“enough is never enough”), tem causado. Seja à esotérica escala mundial, ou à bem mais próxima, do nosso Algarve. Nós por cá ficámos expostos – dúvidas houvesse – como um erro crasso de modelo: descaracterizado na sua paisagem e cultura, exaurido em recursos fundamentais (como a água, pese embora a situação ao nível do solo tenha melhorado com as chuvas recentes, ainda que o abastecimento continue em situação grave), profundamente assimétrico, completamente exposto a dinâmicas externas que não controla – apesar de bravatas – e dominado por um tecido empresarial desprovido de responsabilidade social ou espírito solidário, que origina um mercado de trabalho geralmente desqualificado e mal remunerado. Uma análise dos tais projectos em consulta pública (o portal Participa.pt é uma importante ferramenta) vemos que boa parte corresponde precisamente a projectos de natureza imobiliária associados ao turismo, destinados a cavar mais fundo o buraco em que nos encontramos. Isto não se altera do dia para a noite, é certo. Mas ficamos a saber que afinal conseguimos produzir outras coisas, até daquelas que se importam muito mais caras, porque simplesmente "não era possível" uma alternativa. O turismo algarvio terá que ser parte da solução, e continuará a ser um sector importantíssimo da actividade económica regional. Aliás, não se prevendo que a ordem mundial mude também ela instantaneamente, continuaremos a precisar de riqueza. Mas, para que algo se altere, algo tem que mudar, e para o novo nasça, tem que ser criado espaço. Não, como dizem alguns, evocando José Régio, com os olhos doces, estendendo-nos os braços, e seguros de que seria bom que os ouvíssemos, que o COVID é a oportunidade ideal para, na região, se abandonar o modelo litoralizado, promovendo o avanço da “sustentabilidade” para o interior. Tendo em conta o que passa por “eco” na linguagem dos promotores imobiliários (basta ver, por exemplo, a aberração do Ombria Resort), seria claramente um caso da carraça a mudar de cão. Recuperando Galileu, demonstrou, contra Deus e o mundo, que a terra se move continuamente em torno do Sol. Não será portanto este ou qualquer outro vírus a alterar essa circunstância. Mais do que parado, o mundo está quebrado. Pela falta de solidariedade, pela falta de ética, pela total quebra do humanismo. Por isso, tal como na discussão gerada por Galileu, temos que debater o que se move em torno do quê. Se acharmos que é importante mudar o actual paradigma, sim, é também no nosso quintal que claramente temos que repensar o que vamos fazer daqui para a frente. Ainda que não tenhamos naturalmente que parar para o fazer, claramente temos que abrandar, para poder discutir com tempo e discernimento. E portanto, sim, seria bom ver sinais de que a Administração Pública está atenta a estas questões, e que não é apenas uma máquina de processamento burocrático automático. Tomando uma posição política, de gestão activa dos processos em análise, e não passiva ou reactiva, com opções claras. Queremos, neste momento, continuar a colocar os ovos (da Páscoa, se quiserem) todos no mesmo cesto, criando mais compromissos territoriais e consagrando “direitos” associados a um modelo que nos deixa tão mal preparados para a adversidade? Vejam lá isso.
1 Comment
Miguel
10/4/2020 13:54:01
Pois é caro Gonçalo, mais do que outra coisa qualquer, esta crise - tal como outras- mostra a falta de preparação para cenários semelhantes, e a aversão ao pensamento de longo prazo.
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