Por Andreia Fidalgo Diz o ditado popular que para haver São Martinho, não pode faltar “lume, castanhas e vinho”. Tradicionalmente, neste dia fazem-se os magustos, que são grandes fogueiras em torno das quais se juntam as famílias e os amigos e onde se assam as castanhas, fruto tão apetecido desta época. Além disso, a acompanhar, bebe-se jeropiga, água pé ou vinho novo, ou seja, é também o dia no qual se prova o vinho da última vindima. A lenda, todos conhecemos: um soldado romano chamado Martinho de Tours (séc. IV), num gesto de profunda humanidade, teria dividido o seu manto com um mendigo num dia muito chuvoso e gelado; o gesto foi divinamente compensado com o súbito desaparecimento da tempestade, substituída por um sol esplendoroso. O bom tempo durou três dias e o milagre ficou conhecido como o “Verão de São Martinho”. Desde então, sempre por esta altura do ano, somo agraciados com alguns dias estivais em pleno Outono. Na região algarvia, como em qualquer outra, esta tradição também se celebra. Mas falar de castanhas, neste lugar ao sul, significa falar obrigatoriamente de Monchique, onde o clima é propício à existência de castanheiros, ainda que actualmente a área que estas árvores aí ocupam seja muito inferior à de outros tempos. Para invocar os castanheiros de Monchique, façamos uma breve incursão a alguns testemunhos. O botânico alemão Heinrich Friedrich Link, na sua viagem ao Algarve realizada em 1799, ao chegar a Monchique, descrevia: “Deixa-se o cume da serra à direita e, no sopé da mesma, depois de se terem feito quatro boas léguas no deserto, encontra-se subitamente um vale estreito com castanheiros, campos cultivados e casas. O vale inflecte para a esquerda e chega-se ao lado sul da serra, que panorâmica! Na encosta, por entre bosques de castanheiros, jardins totalmente cobertos de laranjas e limões, rodeada de fundos vales românticos banhados por riachos sussurrantes, encontra-se a encantadora povoação de Monchique. (…) Os bosques de castanheiros servem aqui principalmente para a engorda dos porcos (os presuntos de Monchique são também afamados), as castanhas não são tão usadas como alimento, por isso as árvores não se enxertam como em Portalegre. Em parte cultivam-se os castanheiros como mata de corte, porque depois se utilizam frequentemente como estacas nos vinhedos, como aros e em outras necessidades semelhantes. Uma série destes bastões está constantemente a ser transportada em burros para o Algarve.” (Notas de uma viagem a Portugal, Lisboa, BNP, 2005, pp. 253-254) O testemunho de Link corrobora a realidade algumas décadas anterior, quando pela época do Marquês de Pombal se tomaram várias medidas para beneficiar a produção e comercialização das madeiras de castanheiro da zona de Monchique, então muito apreciadas pela sua qualidade e muito requeridas, inclusivamente para construção da iluminista Vila Real de Santo António. Mas este testemunho também nos deixa perante uma outra realidade: à época, as castanhas não seriam muito utilizadas como alimento pela população, servindo essencialmente para uma outra função igualmente importante que era a alimentação dos porcos. Algures com o passar do tempo, o hábito mais generalizado de consumir a castanha ter-se-á introduzido e firmado nas tradições locais. Em 1955, José António Gascon escrevia o seguinte: “No Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) saía muita gente para os campos para tratar dos “magustos” que, como se sabe, são fogueiras ao ar livre, em que se assam castanhas, havendo o costume de as pessoas que neles tomavam parte se tisnarem umas às outras, por brincadeira, com carvões retirados das fogueiras, depois de apagadas. (…) No Dia de São Martinho (11 de Novembro) costumava e costuma ainda abrir-se a prova e venda do vinho novo.” (Subsídios para a Monografia de Monchique, Faro, Algarve em Foco Editora, 1993, p. 363) Além do consumo de castanhas, este testemunho relembra-nos uma outra realidade igualmente comum: os magustos têm origem nas comemorações do Dia de Todos os Santos. Segundo o etnógrafo José Leite de Vasconcelos, o magusto era um testemunho de um antigo sacrifício em homenagem aos mortos: nalgumas localidades a tradição era preparar-se, à meia-noite, uma mesa com castanhas para que os mortos da família as pudessem ir comer, sendo que mais ninguém nelas tocava porque se dizia que estavam “babadas dos defuntos” (Opúsculos Etnologia, vol. VII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938). Felizmente, nos dias que correm, comer a castanha pelo Dia de Todos os Santos ou pelo São Martinho já não tem um significado tão lúgubre. O magusto é, sobretudo, um momento convivial, de alegria. E bem precisamos da alegria de uma boa degustação, em dias tão tristes como os que vivemos. Que as restrições a que estamos sujeitos e o confinamento não sejam motivo para nos impedir de comer castanha assada acompanhada de uma boa jeropiga, nem de usufruir do Verão de São Martinho. A castanha até pode estar cara, mas pelo menos o sol ainda é gratuito.
1 Comment
Nelson Mendes
15/11/2020 14:13:14
Obrigado pela divulgação histórica! Valeu a pena porque aprendi algo:)
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