Nem COVID-19, nem políticas, nem missais. Alterações Climáticas no Algarve tratam-se com festivais.17/4/2020 Por Gonçalo Duarte Gomes Os vírus são uma bicheza estranha. Em boa verdade, não são sequer uma bicheza. Uma coisa, vá. A estranheza vai ao ponto de os transformar nos verdadeiros gatos de Schrödinger, alegremente vogando num limbo entre aquilo que convencionamos como vida e morte (peçam a alguém capacitado para o explicar, afinal de contas isto é só um escrito que provavelmente apareceu numa rede social!). E é curioso pensar que esta capacidade quase esotérica é alcançada com um genoma muito simples, linear. Nestes tempos de pandemia, não deixa portanto de ser interessante ver como parte da humanidade, do alto da complexidade helicoidal, pensante (alegadamente até racional) e tecnologicamente poderosa do seu ADN, deposita tantas esperanças de mudança do Mundo precisamente no cagagésimo que é um vírus. Não tenho ideia que do quadro sintomático da COVID-19 e das suas sequelas constem as artes mágicas. Assim sendo, não vislumbro que apenas por pensamento positivo consigamos, no pós-pandemia, confrontados com todos os restantes problemas – novos e velhos – com que teremos que lidar, fazer com que sejam os ursinhos carinhosos e os unicórnios a dominar, pastando placidamente num global campo de felicidade e humanismo. Fiem-se no vírus e não corram... Sei bem que desdenhar de ursinhos carinhosos e unicórnios nesta fase não é trendy, e soa até um bocadinho ominoso. Mas, acreditem ou não, não se trata de pessimismo. É antes um apelo veemente ao realismo, ou seja, ao meio-termo entre o psicadelismo do #vaificartudobem e o niilismo do #vaitudocorrermal.
Esse fiel da balança diz-nos que esta pandemia, embora assustadora (mas aparente e felizmente não tão mortal quanto inicialmente se previa), é apenas um desafiante interlúdio noutras questões que temos para tratar à escala planetária, embora vá deixar marcas significativas. Entre essas questões – a fome no mundo, por exemplo, que mata milhões – encontra-se a da adaptação às alterações climáticas, algo que tem merecido, inclusivamente, chamadas de atenção por parte do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres (que infelizmente não tem conseguido aliar às suas boas intenções um papel forte de liderança mundial na procura de entendimentos e soluções). Não que sobre muito tempo ou ânimo às pessoas para pensar no que seja, presas entre a mediatização ad nauseam da pandemia e as dificuldades, incertezas e angústias que tanta gente enfrenta neste momento. Mas o mundo continua a girar e a vida vai continuar. Nesta semana, a AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve deu boa prova disso, promovendo, e muito bem, um webinar subordinado à relação entre COVID-19 e as alterações climáticas (dando continuidade a uma política de constante divulgação do tema – ver aqui). A pertinência desta discussão é total, face à cada vez maior relevância que os desequilíbrios ambientais têm no surgimento de crises de saúde pública como a presente (ver aqui). Foram aí apresentados alguns números interessantes, como por exemplo (e salvo algum erro de percepção) o facto de, por força da paralisação mundial causada pelo vírus, ter havido uma redução de emissões de CO2 tal que se projecta que, no final do ano de 2020 tenham sido lançados 1.600 milhões de toneladas a menos desse gás para a atmosfera, por comparação com o ano de 2019. Mais interessante se torna, se pensarmos que as projecções iniciais apontavam para um 2020 com 470 milhões de toneladas de CO2 a mais em relação a 2019. Ora, resolve isto o problema das alterações climáticas ou da poluição atmosférica? Claramente não. Este período que atravessamos, por longo e interminável que nos possa estar a parecer, não passa de um curto – curtíssimo – intervalo na insanidade em que se tornou a nossa exploração dos recursos mundiais. A solução joga-se a longo prazo e só será possível com reduções significativas e sistemáticas das emissões, e não com quebras pontuais e ainda por cima fortuitas. Como referia uma das oradoras, numa feliz metáfora, o combate à COVID-19 é um sprint, enquanto que o combate às alterações climáticas é uma corrida de fundo. No caso do Algarve tudo se joga no campo da adaptação. Nunca é demais recordar que somos uma região com elevada exposição aos efeitos ampliadores das alterações climáticas, particularmente em três vectores: aumento do nível médio do mar, aumento da frequência e intensidade de fenómenos climatéricos extremos e agravamento da incerteza nos já por si irregulares padrões de precipitação, com tendência para a redução da quantidade total e, consequentemente, maior escassez de recursos hídricos. Nesta sessão foi naturalmente abordado o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve (PIAAC-Alg), ferramenta em que a região investiu significativamente, de forma a melhor poder informar as suas tomadas de decisão. E novamente foi reafirmada a sua premissa estratégica, que passa pela manutenção das disponibilidades hídricas actuais e, a partir daí, uma optimização de redes de distribuição de águas, de práticas de utilização desse mesmo recurso e de políticas e tipologias territoriais, aproximando usos às aptidões paisagísticas e às disponibilidades de recursos. Tornou-se aí clara uma incoerência estrutural na abordagem da AMAL a esta questão. Sendo o PIAAC-Alg o documento fundamental de apoio à decisão nestas matérias, e sem que quaisquer outras medidas de fundo tenham sido tomadas, como se explica a intenção da AMAL, que é pública, de reinvindicar junto do Governo a construção de uma nova barragem? A esse propósito, o Prof. Filipe Duarte Santos foi peremptório ao afirmar que, perante a tendência identificável nos últimos 30 anos na Península Ibérica, de redução acentuada da precipitação total anual, qualquer solução que aposte no reforço do abastecimento por captação superficial é meramente política, nada tendo a ver com ciência. O próprio PIAAC-Alg demonstra isso. No que diz respeito ao que designa como “Caminhos de adaptação para a disponibilidade hídrica”, e no contexto de uma avaliação multicritério das medidas e acções propostas no âmbito dos recursos hídricos, não elege a barragem como via a seguir, optando inequivocamente pelo melhoramento das actuais políticas (gestão de redes incluídas) e reutilização de águas. De resto, na comparação entre o investimento numa barragem ou remodelação de infra-estruturas de rega, de sistemas urbanos de abastecimento de água ou diminuição de necessidades de água nos espaços verdes urbanos, considera que a primeira representa um investimento muitíssimo maior (construção e manutenção), para resultados mais tardios, e com externalidades negativas associadas. Nos restantes vectores críticos – aumento do nível médio do mar e fenómenos climatéricos extremos – o problema “novo” remete para luta antiga: contenção e, quando possível, reversão da ocupação de áreas biofisicamente sensíveis como a faixa litoral, as ilhas-barreira ou zonas afectas ao funcionamento da rede hidrográfica (leitos de linhas de água e áreas inundáveis), entre outras. Estranhamente, a única medida para já anunciada pela AMAL foi a intenção de realizar, quando possível, um festival anual e itinerante de música (mas não só) para sensibilização dos mais jovens. Isto reforça a imagem de “região de cigarras” que o Algarve tem, em que a primeira solução para tudo é sempre a festarola. Os mais jovens, em nome do seu futuro, mais do que música ou sensibilização (com recurso a gastos significativos de energia, gerando toneladas de resíduos e obrigando a deslocações/emissões), necessitam de acção. E precisam, como todos nós, de melhor e diferente decisão política. E de compromisso. Com o futuro colectivo, e não com agendas particulares ou sectoriais. No encerramento do webinar, o presidente da AMAL destacou um problema com que todos os decisores regionais, a diferentes níveis, são e serão inegavelmente confrontados: as repercussões sociais e económicas desta crise. Manifestou os seus receios relativamente a uma eventual secundarização da questão das alterações climáticas face a tal desafio, no próximo ano ou par de anos. Compreendendo-se as suas preocupações (enquanto presidente da AMAL e autarca), importa reter que as mudanças necessárias para combater as alterações climáticas passam por encontrar rumos para novos modelos territoriais e económicos, que optimizem equilíbrios e reduzam vulnerabilidades. A economia resolve-se na ecologia. Nos tempos que se seguem, teremos que falar muito, e muito a sério, sobre isso.
2 Comments
Miguel
19/4/2020 14:16:19
E pegando no comentário que teci ao texto da cara Anabela, acrescento o pragmatismo neste que faço em relação ao seu; acredito que, caso este vírus se torne mais um em circulação anual como a gripe (mesmo havendo vacinas anuais) que de facto algumas mudanças no padrão das deslocações, do turismo seja alterado no sentido da contenção.
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Gonçalo Duarte Gomes
20/4/2020 16:48:34
Caro Miguel, uma leitura do passado recente inclina-me para o regresso à (a)normalidade.
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