Por Gonçalo Duarte Gomes Os livros são uma consciência. E, arriscando no esoterismo, são conscientes. Só assim se explica que, tantas vezes, entrem nas nossas vidas com uma oportunidade plena. Aconteceu-me recentemente com o livro de Sinclair Lewis, cuja edição em português é intitulada “Isso não pode acontecer aqui” (Dom Quixote, 2017). É um livro escrito nos Estados Unidos da América durante os anos da Grande Depressão, e publicado pela primeira vez em 1935. Retrata a subida ao poder de um populista que, alicerçado numa bem engendrada campanha comunicativa, explorando as fraquezas e desigualdades inconfessadas da América de então, consegue ganhar as eleições de 1932 ao candidato Roosevelt e ao Presidente Hoover, instaurando uma progressiva ditadura violentamente repressiva, de inspiração e pendor fascista e nacional-socialista. É um livro perturbador, por ser tão actual. Não apenas nos processos ilustrados – é considerado profético relativamente à eleição de Trump, praticamente um século antes da mesma, e longe da era da comunicação – mas, principalmente, nas causas que levam um povo a aceitar ceder a sua liberdade em troco de promessas que, verdadeiramente, nunca são cumpridas. Ora, em Portugal, o ritmo da agenda política dos últimos tempos, que, muitas vezes, anda ao ritmo das redes sociais, tem sido marcada pelo populismo. Pelo populismo dos populistas e pelo populismo dos que, dizendo-se o seu contrário, o combatem com populismo – mas um “populismo certo” ou “de bem”, no seu entender.
Exemplo mais recente e abrangente foi a campanha dos lábios pintados, dinamizada, fundamentalmente – lá está, temos que o abraçar – nas redes sociais. Através de uma boca insinuante e desrespeitosa para com Marisa Matias, André Ventura, qual menino Tonecas de andaime, tentou fazer uma graçola ordinária acerca da maquilhagem da candidata (a mesma que, tempos antes, só não lhe chamou pai, em directo, em horário nobre, num debate para as eleições presidenciais), enquanto fazia o mesmo em relação a todos os outros candidatos, com variados níveis de baixaria. Talvez para evitar discutir ideias, que manifestamente têm andado arredadas destas lides, e dar ânimo a campanhas mortiças, muitos aproveitaram o caso para ver nisto um ataque à condição feminina, até mesmo uma agressão aos direitos humanos (diminuindo aqueles que verdadeiramente o são, numa crescente tendência de esvaziamento de significância das palavras) – tomara os avós bêbados, os esqueletos fantasmas ou os operários betos terem tantos defensores! Marisa Matias viu-se assim transformada numa Elizabeth Arden do espaço virtual, emulando o relato segundo o qual a pioneira empresária da cosmética teria distribuído batom vermelho às sufragistas que, em 1912, marchavam diante da sua recém-aberta loja na 5.ª Avenida, em Nova Iorque. Visualmente poderosa e comunicacionalmente estrondosa, a campanha alastrou a vários sectores, e até oponentes políticos aproveitaram, de forma solidária, a boleia promocional. Podendo dizer-se que nunca é demais defender os direitos da Mulher – o que é verdade – para mais num contexto em que ainda muito há a fazer até que se possa falar de equidade, o que é facto é que o jogo, se assim o quisermos entender, acabou a ser jogado nos termos do adversário. Porque, em demagógico contragolpe, mais do antecipado e calculado, Ventura veio dizer que, em vez de se pintarem lábios vermelhos por frivolidades – não era seguramente a ofensa como arma de campanha que estava em causa, porque os agora ofendidos haviam aplaudido as ofensas de Marisa em sentido contrário – deviam pintar-se lábios de preto pelos cancros que afligem o regime, tais como corrupção (excepto os casos em que o próprio tem algum tipo de envolvimento), favorecimento da banca (Luís Filipe Vieira excluído, como sabemos) ou a falta de preparação do Serviço Nacional de Saúde no quase ano que antecedeu o actual momento da pandemia, pese embora se tenham gasto, comme il faut, milhões e milhões. Como qualquer jargão regado com a dose certa de verdade para esconder as verdadeiras intenções, pegou como contrafogo no pasto seco que é o confronto político destes dias. O caudal ecológico é um conceito aplicado à gestão de cursos de água, regra geral perante a perspectiva do seu represamento num determinado ponto, que pretende estimar a percentagem do caudal médio dessa linha de água que deve continuar a fluir livremente, de forma a garantir o abastecimento que salvaguarde a subsistência e protecção de espécies e ecossistemas a jusante. Se quisermos, qual o fio de água que deve passar na torneira para que se possa matar minimamente a sede. Na política já vamos tarde para aplicar o mesmo conceito. Há muito – tal como na América de Sinclair Lewis ou de… Trump – que as elites estão tão entretidas a tratar dos seus interesses e agendas sectárias, que negligenciam os mínimos que garantem às pessoas dignidade nas suas vidas e, principalmente, esperança num futuro melhor. Nesse processo, abrem-se fendas na confiança que o grosso das pessoas deposita nos processos e instituições democráticas, ou em coisas como ciência ou factos. Passa a valer tudo. E assim, quando o elevador social está sistematicamente ocupado pelos mesmos, aqueles que inapelavelmente têm que ir pelas escadas – ou até resignar-se a não abandonar nunca o rés-do-chão – cedo ou tarde predispõem-se a aceitar a promessa de boleia com que um qualquer ascensorista de monta-cargas lhes acene, mesmo que vazia de intenção. Pior, os eternos habitantes do piso térreo podem mesmo aceitar um dia a proposta, infinitamente mais atrevida, e baratinha, de um qualquer trolha político com uma carrinha de caixa aberta e umas ferramentas reluzentes, de demolição de todo o edifício democrático, para posterior (re)construção, agora ao gosto dos esquecidos. Que, obviamente, nunca acontecerá, ficando depois todos a viver na rua, expostos às agruras do Inverno que, invariavelmente, uma ditadura, seja de direita ou de esquerda, representa. Tornou-se assim abismal, de resto, a quantidade de pessoas que, nesta campanha labial, assumiu não ter o hábito de votar, mas que neste sufrágio – ah, o heroísmo – até vão fazer o favor de exercer o dever que até agora negligenciaram. Todas as eleições são importantes, mas foram todas as que antecederam esta, e os seus resultados, o berçário da actual situação. Os populismos são difíceis de tratar (inevitavelmente, alguém trará à baila o paradoxo da tolerância, sempre importante nesta reflexão) pois, como boa parte das desculpas, evitam-se na origem, mais do que se resolvem. Porque têm que ser compreendidos e atacados nas suas causas, e não apenas nos sintomas. Não sei que lábios se podem pintar, ou de que cor, para combater, esse sim, flagelo. Só talvez recomendar a leitura de textos como este, de Sérgio Sousa Pinto (“A República à deriva”, Gradiva, 2020), e a receita que contêm.
2 Comments
Miguel
21/1/2021 17:55:24
São sempre diversas, as causas e rastilhos do extremismo, de um e do outro lado, do espectro ideológico politico
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Gonçalo Duarte Gomes
26/1/2021 17:38:37
Infelizmente, temo que uma das grandes lacunas deste tempo seja precisamente o consumo literário. Diverso, plural. E, logo depois, a sua digestão. Que, basicamente, se alcança melhor através da discussão e do debate, sério, íntegro, coerente.
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