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Bem-vindo

Não se esqueçam de incendiar os museus!

12/6/2020

18 Comments

 
Por Gonçalo Duarte Gomes

Um álbum de fotografias é muito mais que um álbum de fotografias.

Ao revisitar registos do passado, encontramos de tudo um pouco. Memórias de quem nos era próximo e já partiu, imagens de felicidade que perduram no nosso coração, penteados e roupas de fazer corar de vergonha as pedras da calçada, objectos que marcam momentos da nossa vida, para o melhor e para o pior. Amor, saudade, dor, alegria, tristeza, nostalgia, esperança, uma miríade de experiências e sentimentos que são, na sua combinação, o que faz de nós o que somos, e as bases em que assentamos o nosso presente e lançamos o nosso futuro.

Com algumas vivemos bem, com outras temos mais dificuldade em lidar. Desse equilíbrio dinâmico faz-se o nosso crescimento. Se pessoas que usaram chumaços hoje não estão dispostas a repetir a graça, tal deve-se, em boa parte, ao ocasional recontro que têm com esse passado negro, imortalizado em fotos geralmente granuladas e mal reveladas, que as fazem pensar sobre más escolhas de guarda-roupa.

O património, nas suas variadas formas, não é outra coisa senão o álbum de fotografias de um povo.
Imagem
Ilustração de Banksy, a propósito do derrube da estátua de Edward Colston, em Bristol
​
Quando os gauleses, liderados por Breno, invadiram Roma no Séc. IV a.C., pouco restou da cidade para contar história. E pouco restou de Roma para contar História. Porque o património foi apagado, colocando desafios acrescidos à historiografia daquele período, conforme Tito Lívio bem relatou. Tal deveu-se ao facto do fascínio inicial que os invasores sentiram pela arquitectura e esplendor da capital da então República Romana, ter sido seguido por um desequilíbrio emocional (inveja, incompreensão, o que seja) que redundou na destruição de tudo aquilo com que se cruzaram.

A delapidação do património cultural dos vencidos pelos vencedores é uma prática ancestral. É a via rápida para a fragilização e obliteração da sua identidade e da resiliência e resistência que lhe estão associadas. É a derrota do espírito, a juntar à do corpo, alcançando a subjugação completa. No Algarve acontece muito, com a destruição das paisagens tradicionais e do que significam em termos culturais, a representar a vitória de um determinado sistema e modelo sobre um outro, que se apaga para não mais lembrar.

Utilizando o brutal assassinato de George Floyd como detonador, um movimento há muito orquestrado de saneamento histórico e de revisionismo e revanchismo ideológico, assente em discursos de ódio – racista mas não só – entrou em velocidade de cruzeiro.

Não pretende o fim da discriminação racial, étnica, religiosa ou cultural. Não pretende estabelecer relações de humanismo fraterno entre pessoas que se tornam indistintas nessa condição. Pretende acentuar a clivagem e a segregação em e entre grupos – brancos, pretos, amarelos, vermelhos, dextros, canhotos, altos, baixos, gordos, magros, hetero, homo, assim, assado – para os organizar em novas relações de poder e subordinação (com uma suposta “culpa histórica” a servir de força motriz e aríete), assim tomando as rédeas de um novo processo de discriminação racial, étnica, religiosa ou cultural, mas à luz dos preconceitos “certos”. Pretende impor um entendimento único, higienizado de acordo com certos padrões, inócuo, acrítico. Pretende que ninguém pense sobre o que quer que seja, deixando isso nas mãos das pessoas “certas”, que atempada e oportunamente fornecerão orientações de pensamento, comportamento e discurso.

Até lá, aguardamos sossegados, caladinhos, obedientes, preferencialmente com medo. Como escravos.

Entretanto, multidões instrumentalizadas – que, como se sabe, são organismos sempre caracterizados por grande discernimento e assertividade – lançam-se com afã na tarefa primeira de qualquer acto de conquista: a destruição do património para erosão da memória. E, porque se alicerça e alimenta de ignorância e anacronismo, não tem sequer a preocupação de tentar fazer parecer ter qualquer critério.

Nem cor ou lado, até porque estamos no ponto do paradoxal fenómeno em que extremos diametralmente opostos se tocam. Escrevendo sobre isso, Churchill (conhecido fascista, de acordo com o pensamento que lhe pichou a estátua), referindo-se então à oposição entre comunismo e fascismo, disse que lhe faziam lembrar o Pólo Norte e o Pólo Sul. Embora se localizem nos antípodas, uma pessoa que acordasse em qualquer um não conseguiria distingui-los. Talvez houvesse mais pinguins num, ou mais ursos polares no outro, mas no fundo, haveria gelo, neve e um furioso vento cortante.

Vai daí, a vaga de vandalismo e censura avança, um pouco por todo o Mundo, sem grandes esquisitices de arte ou género. Estátuas, palavras, músicas, filmes, séries de televisão, tudo está a engrossar uma lista de itens proibidos que promete envergonhar o Index Librorum Prohibitorum da Inquisição. Porque incomodam, ofendem, contrariam o pensamento dominante, não correspondem aos valores contemporâneos.

Reflectir e aprender através do património cultural é uma grande trabalheira. Perceber que embora hoje não se ergam estátuas a um esclavagista, é importante ver no espaço público que tempos houve em que eram personalidades respeitáveis da comunidade, para a partir daí pensar no assunto e inscrever ensinamentos que evitem a repetição de erros no futuro. A turba que neste momento percorre ruas reais e espaços virtuais, não o quer fazer.  Perante o incómodo que os penteados de gosto duvidoso e os chumaços da História lhes provocam, não controlam as suas emoções, partindo então para a gratuitidade da tentativa de controlo dos comportamentos dos outros.

Mas, se em tempos a ignorância, mesmo sendo atrevida, era obrigatoriamente envergonhada, libertou-se de tais grilhões graças ao efeito amplificador das redes sociais e de um jornalismo que deixou de o ser – dá voz a quem diz que chove e a quem diz que não chove, sem abrir a janela para ver se realmente está a chover – passando a ser descarada e glorificada.

Vai daí deparamo-nos com casos que, não fosse o dramático da situação e a sombra que faz adivinhar no futuro, seriam risíveis. E nem falo da petição para demolição da Torre de Belém – que existiu mesmo, já agora, e com assinaturas, entretanto encerrada!

Em Lisboa, a estátua do Padre António Vieira foi vandalizada, pelos vistos por ser símbolo da opressão colonialista. Pondo de parte o anacronismo na análise da questão de fundo, e naturalmente não se pedindo a um vândalo que estude antes de agir, no caso, ignorar o humanismo e o papel precursor no debate sobre a necessidade de abolição da escravatura que António Vieira teve – num tempo em que a escravatura era prática de tal forma radicada na sociedade e no pensamento que até nos quilombos brasileiros de escravos fugidos havia escravos e, pior, escravos alforriados tornavam-se grandes traficantes de escravos – e que inclusivamente lhe granjeou grandes dificuldades e inimigos, é demasiada imbecilidade.

"A estatuária deixará de ser a bandalheira que é, pelo menos em Portugal", terá pensado o Ventura de pacotilha, pleno de auto-satisfação, enquanto descarregava o aerossol colorido.

Não faltaram avisos. Desde Orwell a Bradbury, sempre fomos alertados para este dia. Porque isto já antes havia sido visto, de diferentes formas.

Nas perseguições de Sula, no Terror de Robespierre, na bücherverbrennung (queima de livros) nacional socialista (nazi) alemã, na Grande Purga do comunismo estalinista, no derrube das estátuas de Lenine nos sucessivos momentos da queda da Cortina de Ferro, na destruição dos Budas de Bamiyan pelos Talibã ou da cidade de Palmira pelo Estado Islâmico. Em tantos momentos em que o critério para a destruição foi a discordância, o incómodo da memória e o medo da aprendizagem, que verdadeiramente capacita o ser humano como criatura pensante.

Estupidamente, utilizamos as distopias não como manual de navegação, mas antes como manual de instruções para a construção de um mundo ainda pior.

Assim de repente, parece-me que devem imediatamente partir para a censura de Aristóteles, que n’A Política aceitava a escravidão por conveniência e por natureza, além da inferioridade da mulher face ao homem. A própria Utopia, de Thomas More, aceita a escravatura como condição, ainda que não inapelável, e mutável. Os Lusíadas imortalizam os Descobrimentos, esse empreendimento abjecto, pelo que Camões será de arder numa gloriosa pira. E Pessoa, um seu groupie literário, igualmente! Mas, caramba, não nos fiquemos por aí. Porque a violência contra animais é também ignóbil, metam Moby Dick, de Herman Melville, na trituradora, já que glorifica a caça à baleia. A estupidez é o limite, malta!

Tanto para queimar, tão pouco tempo para o fazer... ah, e por favor, não se esqueçam de incendiar todos os museus. Até não sobrar nenhum. Em Lagos, o acto de vandalismo perpetrado contra o Museu local já é um bom princípio...

É sabido que os momentos de fúria das massas são decisivos para a transformação da Humanidade e para a construção da História. Mas quem quer o progresso da Humanidade para algo melhor – e que bem precisamos, disso ninguém discorda – tem que começar por ser algo melhor.

Que não apenas um vândalo.

Até porque quando toda a gente é empurrada para extremos, não sobra ninguém no meio para estabelecer pontes. E é de pontes que precisamos, não de trincheiras.

​Enquanto posso, permitam-me então ao censores e inquisidores agora acordados: bardamerda.
18 Comments
Pedro Semedo
12/6/2020 15:29:59

Muito bom. Obrigado.

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
12/6/2020 16:39:37

Obrigado eu, Pedro.

Reply
Jorge Pereira
12/6/2020 16:51:25

Parabéns! De uma grande clareza do ponto de vista histórico e humano. Obrigado.

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
12/6/2020 16:57:34

Obrigado, Jorge.

Reply
Mjp
12/6/2020 17:05:18

Obrigada pelo texto. Sinto-me numa encruzilhada e este texto ajuda-me a grudar o que penso. Tantos anos em que sabia o que estava mal e como enfrenta-lo são agora postos em causa por movimentos que parecem doença infantil pela forma como se orientam depressa e sem questões. Obrigada de novo.

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:35:16

A questão é de extrema complexidade, e tudo menos linear. Aliás, as dúvidas são mais do que as certezas.
O apagar da História e a erosão da memória apenas contribui para aumentar a confusão, pois sem referências e ensinamentos do passado, estamos destinados a repetir os mesmos erros.
Do que necessitamos é da consolidação definitiva de valores nucleares humanistas, aplicados no presente e no futuro.

Reply
Miguel
12/6/2020 18:04:43

Sem nada mais a acrescentar caro Gonçalo, imediatamente ao ler o primeiro paragrafo interrogava-me se iria fazer uma comparação com o Algarve e assim o fez nos exactos moldes em que a imaginei, esperemos que o desejo de mudanças para melhor com reivindicações mais que justas mas obstruídas por um voluntarismo excessivo, seja eventualmente temperada de bom senso.

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:38:08

Miguel, infelizmente tenho sérias reservas.
A discussão, mesmo por parte de pessoas com responsabilidades, detém-se em questões de forma e não de substância. Fica refém de seitas, de facções.
Estamos longe de ter os valores nucleares de humanismo e solidariedade que aqui importam bem consolidados na sociedade.

Reply
José Ferreira
12/6/2020 18:43:42

Muito bom...

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:40:06

Muito obrigado.

Reply
Jose Faria
12/6/2020 22:05:06

Óptimo

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:40:25

Obrigado.

Reply
José Mendes Bota
13/6/2020 10:47:17

Penso que não conheço Gonçalo Duarte Gomes. Mas tenho muito prazer em tê-lo encontrado (por mero acaso facebookiano) nesta prosa tão acertada e necessária face à pandemia de insensatez que varre o mundo. Parabéns.

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:41:33

Muito obrigado.
Esta pandemia em particular leva um já longo período de incubação. E não há forma de encontrarmos vacina ou cura eficaz!

Reply
Maria Dias
13/6/2020 10:47:52

" É de pontes que precisamos, não de trincheiras"...

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
13/6/2020 12:39:42

Largas e sólidas pontes, para que todos possam nelas caber e atravessá-las.

Reply
João Sousa
16/6/2020 17:32:20

Muito bom artigo Gonçalo, tal como nos vens habituando. Precisamos de pontes, não de trincheiras. Abraço

Reply
Gonçalo Duarte Gomes
16/6/2020 20:48:45

O problema, João, é a quantidade de gente que só quer ver o mundo a arder...

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