Por Gonçalo Duarte Gomes Aqui há um par de anos, por ocasião do incêndio que devastou o que sobrava do Palácio da Fonte da Pipa, em Loulé, escrevi um artigo intitulado “No Palácio da Fonte da Pipa cabe todo o Algarve” (pode ser lido aqui). E alicercei essa afirmação num facto facilmente verificável: por mais apaixonado que seja o discurso oficial em torno dos valores patrimoniais, da identidade e de todas as outras pérolas do prontuário do politicamente correcto, impõe-se na prática uma plúmbea realidade de ignorância e negligência que, invariavelmente, redunda na perda desses mesmos valores, dessa mesma identidade, e na sucessão de casos que compõem uma algaraviada cacofónica no que a património diz respeito. Dúvidas houvesse, o recente caso da Vivenda Compostela, na Praia da Rocha, em Portimão, lá nos brindou com mais uma machadada consentida no cada vez menos que vai restando de elementos patrimoniais por aquelas bandas, mostrando que estes tristes resumos do Algarve se conseguem encaixar afinal em muitos outros locais. No caso, não por força de um acidente ou imprevisto, mas de um processo licenciado pela autarquia, que previa, preto no branco, a demolição deste edifício icónico, que estava inclusivamente inventariado para classificação pela autarquia. Ou seja, quem acha que aquilo deve ser classificado autoriza que seja destruído. Confuso? Só para quem tenha aterrado agora cá no feudo. Como se já não bastasse toda a indignidade inerente a um processo com tais características, decidiu a Câmara Municipal de Portimão piorar o caso. Começou por uma graciosa, mas vigorosa, sacudidela de água para o capote do anterior executivo autárquico, chamando a atenção para o facto da licença datar de 2011, tendo o actual executivo iniciado funções apenas em 2013. Aparte a solidariedade política e partidária de quem partilha a mesma cor, e a grande dignidade institucional desta atitude, não deixa de ser interessante o facto de ter havido uma prorrogação da licença em 2015... Seguidamente, anunciou que ia suspender o Plano Director Municipal, para evitar a repetição destas situações. Recentemente, o município de Loulé procedeu a suspensões parciais do seu PDM para, por exemplo, prevenir a materialização de ocupações que entendeu serem lesivas da qualidade urbana e de um correcto modelo de gestão costeira. Mas fê-lo a uma escala (física e estratégica) um bocadinho diferente do que aqui se passa, que são obras de “alteração” – nunca mais a lei consagra a figura da obliteração ou do esbardalhamento – de moradias... Aqui tenho que dar o braço a torcer a quem torce em absoluto o nariz perante este expediente, manifestamente de recurso, preferindo a revisão integral dos PDM (com o que também concordo em absoluto). Salvatore stupido... penitenziagite! A seguir veio o músculo, com o embargo do que havia autorizado e negligenciado por completo – foi necessária uma onda de indignação na virtualidade das redes sociais para que as estruturas competentes do Município acordassem para o que na realidade se passava – por possíveis “desconformidades” no processo de demolição face ao projecto aprovado. Talvez a lentidão do mesmo. Enfim, um circo de horror institucional. E foco-me apenas neste nível porque, por muito que custe, o promotor privado, e até mesmo o projectista da nova obra – ainda que, conforme divulgado, no caso seja autarca – têm o direito de ser brutos que nem chapas onduladas no que ao património diz respeito, se assim o entenderem. São os órgãos da Administração Pública que depois têm o dever de tentar proteger os elementos de valor estratégico em cada nível de decisão. Administrando. Encaminhando a expansão e a modernidade para os espaços adequados para o efeito, salvaguardando o que deve ser salvaguardado e preservando, noutros espaços que são de outros tempos, a memória de nós próprios. Porque são geografias imateriais – ainda que alicerçadas em terra, pedra e madeira – que importa recordar, vivendo-as hoje, é certo, mas com as marcas de ontem, a textura e a graça, o seu legado, a história que nos contam, sobre eles, os que já partiram, mas também sobre nós, os que lhes sucedemos. Pode não conseguir, é certo. Porque também não vale a pena pensar que é tarefa fácil. Em justiça, e embora a Vivenda Compostela, ao contrário do Palácio da Fonte da Pipa, não conste do ensaio Portugal em ruínas, da autoria de Gastão de Brito e Silva (publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2014, e disponível por um trio de euros em qualquer Pingo Doce, pelo que não se trata de nenhuma obra esotérica), volto a esse livrito. Porque lá consta, num exercício de honestidade intelectual, uma verdade também ela inescapável neste tema do Património: qualquer país que tenha a felicidade de contar com um tão vasto inventário de elementos patrimoniais como é o caso de Portugal, irá sempre ter dificuldades em preservar a totalidade ou sequer a maior parte desses elementos, pelo simples facto dos dons da ubiquidade, da omnisciência e da omnipotência estarem reservados a meia dúzia de amigos imaginários. E do tempo da degradação – por ruína, alteração ou substituição – correr sempre mais veloz e voraz que o da preservação. Mas que pelo menos tente, de forma séria e coerente. Por vias legais e... políticas, que é afinal aquilo para que elegemos decisores, em detrimento da implementação de sistemas mecânicos de mera verificação de requisitos regulamentares. Caso contrário, diria um consagrado intelectual de andaime, é vê-los falar, falar, falar, sem os ver a fazer nada… A não ser – e perdoem-me o tal termo técnico – proverbiais cagadas em termos de gestão... ou falta dela.
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